DESCASO. Moradores convivem com instalações de saneamento básico que têm causado problemas de saúde pública e danos socioambientais 

Entrada da comunidade do Pires, localizada na ZAS, área de maior risco em caso de rompimento | Foto: Felipe Cunha/Aedas  

Quando falamos em racismo ambiental, muitas vezes pensamos em algo distante. Mas ele está presente no cotidiano, sobretudo em territórios negros e indígenas, historicamente expostos a desastres-crimes ambientais e a ausência de infraestrutura. Em Minas Gerais, Estado que mais minera no Brasil, essa realidade se confirma, entre outras comunidades, no Pires, em Brumadinho. Entre os diversos danos no Pires, está o do saneamento básico. 

O sistema que foi imposto na comunidade do Pires, em Brumadinho

Estação de tratamento de esgoto unifamiliar. A foto evidencia a dificuldade de manutenção, transferida para os moradores | Foto: Felipe Cunha/Aedas 

A partir de um Termo de Compromisso firmado entre o Ministério Público e a Vale S.A. logo após o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, Pires, que está situada na Zona Quente, foi contemplada com diversas obras de infraestrutura, entre elas, uma solução para a questão do esgotamento na comunidade.   

Porém, o desejo da comunidade do Pires de ter saneamento básico adequado, com o tempo, se tornou um grande problema de saúde púbica e socioambiental. Não sendo consultada e, portanto, isolada das decisões sobre qual seria o modelo de esgotamento mais adequado, a comunidade foi coagida pelos técnicos da empresa PRS Ambiental, para que aceitassem um sistema de tratamento de esgoto desconhecido, decidido de forma verticalizada. A proposta de uso dessa tecnologia despertou dúvidas na comunidade, tanto sobre sua capacidade de tratamento e eficiência, quanto de manejo, em todos os momentos de exposição e discussão dos técnicos com às pessoas atingidas sobre as obras de saneamento e seu funcionamento. Há relatos de casos em que moradores estão sendo processados na esfera municipal por não aceitarem a “tecnologia” implementada.   

O desejo da comunidade do Pires de ter saneamento básico adequado, com o tempo, se tornou um grande problema de saúde púbica e socioambiental.

Inicialmente, em 2019, a solução imposta pela Vale S.A. e a terceirizada PRS Ambiental, foi a implantação de 03 Estações de Tratamento de Esgoto Coletivas, que utilizariam uma rede coletora de esgoto para direcionar o efluente para o local de tratamento, e que utilizaria o método de Biodigestão Anaeróbica, para depois descartá-lo no rio em qualidade aceitável.     

Na época, apenas 30 residências iriam receber as Estações de Tratamento de Esgoto (ETE’s) Unifamiliares, que já no processo de instalação das primeira unidades começaram a apresentar problemas como: modificações estruturais nos encanamentos dos terrenos e residências sem autorização do proprietário, instalações em locais próximos a cisternas, cozinhas, em ambientes fechados como garagens – com riscos de explosões – ou em locais de alagamento, gerando risco de contaminação, e falta de informações sobre funcionamento e manutenção destas ETE’s Unifamiliares.   

Enquanto eram instaladas as unidades familiares, no resto da comunidade era realizada a implantação das redes coletoras de esgoto que ligavam as residências a um entroncamento principal que levaria para as ETEs Coletivas. Em 2022, num dos momentos de exposição das empresas junto à comunidade, as pessoas atingidas identificaram que os locais propostos para a instalação das ETE’s Coletivas (ETE 02 e ETE 04) não eram apropriados devido a exposição às cheias do Rio Paraopeba.  

Estação de Tratamento de Esgoto coletivo desativada após exposição às cheias do Rio Paraopeba | Foto: Felipe Cunha/Aedas

Algum tempo depois as empresas responsáveis, admitiram o erro técnico em reunião com a comunidade, mas não apresentaram nova proposta para a substituição do tratamento coletivo. Pouco mais de 1 ano depois, em nova reunião para exposição de informações sobre o andamento das obras de reparação, as empresas Vale e PRS Ambiental, surpreenderam as pessoas atingidas com um novo número de ETE’s Unifamiliares implantadas, de 30 para 83 unidades, contemplando quase a totalidade das casas na comunidade com esse tipo de sistema.    

A grande maioria destas ETE’s Unifamiliares foram implementadas de forma autoritária, com ameaças e até notificações judiciais às pessoas que não se sentiam informadas o suficiente para aceitar a implementação em suas residências.    

Veja o manual de instalação entregue para as famílias que receberam a ETE unifamiliar sem a devida instrução ou treinamento

Outro aspecto do racismo ambiental ao qual o território está sujeito se evidência na transferência de responsabilidade dos serviços públicos às pessoas atingidas e a negligência das instituições responsáveis acerca do assunto. Diante desse cenário de abandono institucional se criaram dinâmicas de “passa e repassa”, onde a Vale afirma que a responsabilidade é da Prefeitura, que transfere para a COPASA, para em seguida ser transferida a Prefeitura e assim por diante, infringindo sistematicamente o direito ao saneamento básico, garantia constitucional evidenciada pela Lei nº 11.445.   

Enquanto isso, as ETE’s Unifamiliares, foram abandonadas pela empresa PRS Ambiental, que orientou que as pessoas atingidas deveriam fazer análises do tratamento de esgoto de suas residências e adequar o sistema para garantir os parâmetros legais de descarte do efluente. No entanto, não ofereceu nenhum tipo de suporte técnico especializado e ainda jogou nas mãos das pessoas atingidas a responsabilidade sobre a limpeza manual do sistema e a destinação adequada dos resíduos perigosos a saúde humana e ao meio ambiente.   

Considerando que a comunidade não tem acesso à uma Coleta de Resíduos Sólidos (CRS) eficiente, esse processo aparentemente simples de limpeza se torna uma atividade de risco a saúde humana, onde as pessoas ficarão expostas a resíduos contaminados com diversas bactérias presentes no esgoto.   

Além de todos os transtornos já impostos à comunidade — com obras mal planejadas e mal executadas, sistemas de coleta e tratamento de esgoto que não funcionam e que tendem a gerar apenas prejuízos e violações de direitos, ao invés de melhorias — a situação se agrava com o despejo irregular de esgoto no Rio Paraopeba.  

Foto: Felipe Cunha/Aedas

Através de visita em campo, nota-se que o esgoto coletado por meio da saída dos sistemas de biodigestores, que não estão operando de maneira satisfatória, vem sendo lançado in natura no Rio Paraopeba, sem qualquer tipo de tratamento, no ponto de coordenadas -20.151971, -44.173357.  

Modelo esquemático do sistema de esgotamento implementado | Fonte: Aedas, visita de campo em 08/08/25; dados ANM 
Modelo esquemático do sistema de esgotamento implementado | Fonte: Aedas, visita de campo em 08/08/25; dados ANM 

Laudo técnico aponta falhas em sistema da Vale e aponta danos no solo e riscos à nascente 

Diante de tanta violação de direitos, alguns moradores se mobilizaram para a confecção de uma vistoria técnica, realizada pela própria prefeitura e defesa civil, na qual o engenheiro Geólogo Julio Cesar Mulatti, do departamento de Perícia e Avaliações, evidencia que um dos sistemas já está “gerando danos no solo por causa de infiltrações devido a um problema operacional da ETE, em parte do quintal (local onde passa um córrego com uma nascente)”, e aponta medidas corretivas, como mostra o documento abaixo.  

Relatório de Vistoria Técnica, elaborado pela Defesa Civil de Brumadinho 

O relatório completo, segue em anexo. 

As lideranças das comunidades têm tentado diversas estratégias na busca de uma solução para essa questão. Até hoje já foram feitos ligações, reuniões e diálogos com Defesa Civil, Vale S.A., Promotoria de Brumadinho na figura da Dr. Ludmila Reis e a confecção de um abaixo assinado, que já tem mais de 60 assinaturas, o que corresponde 75% das famílias que receberam a ETE em suas residências e pedem soluções para os problemas enfrentados. Porém, até o momento não houve nenhum resultado efetivo a respeito do tema para a comunidade. Dentre as solicitações realizadas pelas pessoas atingidas aos órgãos competentes, estão os seguintes pontos:  

  1. A imediata vistoria técnica das ETEs instaladas na Comunidade dos Pires;  
  1. A apuração das responsabilidades pela má execução e falta de manutenção do sistema;  
  1. A garantia do direito da comunidade a um serviço público de saneamento básico eficiente, seguro e de qualidade, de responsabilidade do poder público, conforme previsto na legislação vigente;  
  1. A reparação integral dos danos causados, evitando a revitimização das famílias já atingidas pelo desastre da VALE S.A.  

Instalação de ETEs unifamiliares contamina cacimbas utilizadas por famílias no Pires 

Laudos laboratoriais encomendados pela própria Vale S.A. à Prefeitura de Brumadinho revelam que a instalação das Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) unifamiliares na comunidade do Pires, em 2023, trouxe sérios danos à qualidade da água consumida pelas famílias. A equipe técnica da Aedas analisou mais de 25 laudos de uma cacimba, entre agosto de 2022 e março de 2025, de uma residência do Pires. Até 2023, não havia registro de contaminações ou alterações relevantes nas amostras; no entanto, após a implementação das ETEs, começaram a surgir alterações. Em 2024, essas alterações se tornam recorrentes, apareceram níveis anormais de alumínio em uma amostra, além de bário, manganês e coliformes totais em praticamente todas as amostras até 2025. Na última visita de uma agente de saúde, em junho de deste ano, os resultados apontaram contaminação da água desta cisterna historicamente preservada e utilizada pela família, que foi orientada a não utiliza-la mais. O que antes era fonte de orgulho e garantia dos modos de vida agora se transformou em motivo de preocupação, com a família se sentindo violada pelos danos das ETEs em seu direito fundamental à água de qualidade. 

Confira abaixo os laudos da cacimba

Comunidade faz ofício e abaixo-assinado denunciando falhas e riscos nas ETEs instaladas pela Vale.

Leia:

Outras preocupações da comunidade após instalação das ETEs 

Foto: Felipe Cunha/Aedas

A comunidade manifestou preocupações com possíveis danos estruturais decorrentes da instalação das ETEs. Segundo relatos, o piso da Igreja Evangélica Assembleia de Deus está afundando, assim como o da Igreja Católica São José dos Pires. Além disso, um morador da Rua Beira Linha, cuja casa foi construída sobre barranco, teme que a proximidade da ETE possa aumentar o risco de desabamento, especialmente em períodos de chuva. A liderança local pretende solicitar uma visita da Defesa Civil para avaliação desses locais.  

Vale chama de reparação, mas Pires vive nova violação 

Rejeito do rio Paraopeba transportado acima da comunidade do Pires | Foto: Felipe Cunha/Aedas 

O caso das ETEs na comunidade do Pires, em Brumadinho, evidencia o racismo ambiental: comunidades negras e periféricas, já atingidas por um desastre-crime, têm seus direitos violados novamente. Soluções precárias são impostas sem consulta, decisões são tomadas sem participação, e os moradores acabam responsabilizados por problemas que deveriam ser resolvidos por políticas públicas e pela reparação integral da empresa.  

Sueli Araújo, liderança atingida do Pires relatou que a obra emergencial acabou gerando ainda mais danos ao cotidiano da comunidade: “Minha casa tem ETE e traz muito problema pra mim e outros moradores, o mau cheiro, nós que temos que limpar, e nós que vamos ter que comprar o material para fazer limpeza e nem sabemos onde comprar, inclusive fizeram uma rede de esgoto na minha rua e colocaram uns PV (bueiro) que está vazando”.  

Bueiro com vazamento na rua Beira Linha, no Pires | Print de vídeo enviado por moradora da comunidade

O saneamento, que deveria garantir saúde e dignidade, tornou-se mais uma fonte de risco. Sob a aparência de “obras de reparação”, perpetua-se a injustiça ambiental e a negação de direitos básicos, especialmente quando comunidades negras têm suas vidas colocadas em segundo plano.  

Racismo Ambiental em Minas 

Ponto de encontro em caso de acionamento de sirene no Pires | Foto: Felipe Cunha/Aedas

Se colocarmos uma lupa no desastre-crime em Brumadinho causado pela mineradora Vale S/A., percebemos que existem agravamentos diversos que dialogam diretamente com o racismo ambiental, em uma das comunidades atingidas sistematicamente é o Pires que fica situada na Zona Quente, epicentro do crime.  

Entendemos como uma das ramificações do racismo ambiental qualquer medida, prática, atividade ou ação pública que afete ou prejudique – direta ou indiretamente e de forma diferenciada, por ação ou por omissão – pessoas, grupos, comunidades ou territórios por motivos de raça ou cor (“Princípios e Diretrizes para o Enfrentamento do Racismo Ambiental no Brasil”, 2023

Quando olhamos então para o Estado que mais minera no Brasil, percebemos que o racismo ambiental existe no cotidiano e na realidade da população, como mostra os dados abaixo:  

80% das barragens de mineração existentes em Minas Gerais atualmente estão localizadas em territórios cuja maioria da população é negra

Brumadinho ainda abriga 22 barragens de mineração, sendo 4 em situação de emergência – três em nível 1 e uma em nível 2, que já exige evacuação -, 10 com alto ou médio Dano Potencial Associado (capazes de causar mortes e destruição) e 10 com alto ou médio risco de falha (Categoria de Risco).

68% da população residente nos 27 municípios atingidos pelo desastre-crime em Brumadinho são negras.

  

Localização Pires e ZAS das barragens da Vale S.A | Fonte: Aedas com dados ANM: 07/08/2025

 No Brasil, o racismo ambiental é evidenciado em territórios onde a maioria da população é negra e/ou indígena, expostas a desastres, crimes ambientais e ausência de infraestrutura, promovida pela exploração de grandes empresas, seja elas do agronegócio ou da mineração.   

Mulheres negras são mais atingidas por vulnerabilidades após rompimento da Vale 

De acordo com o Registro Familiar da Aedas, a comunidade do Pires possui cerca de 62% da população negra, quando aprofundamos os dados de vulnerabilidade e extrema vulnerabilidade, das 57 demandas que recebemos entre os anos de 2022 a 2025, 100% são de pessoas negras e 79% de mulheres negras, evidenciando dessa forma agravamentos a partir do rompimento e definindo essa comunidade como uma Zona de Sacrifício, sendo expostos sistematicamente à poluição, contaminação, degradação dos ecossistemas, falta de infraestrutura e riscos à saúde humana, em nome do desenvolvimento econômico e da exploração mineraria.     

Em relação as demandas registradas 42% estão direcionadas a falta de informação e participação nos espaços decisórios, principalmente em relação a Vale S/A, uma vez que a empresa repete as práticas ao não fornecer à população informações sobre as condições de segurança da estrutura existente para receber os materiais provenientes da dragagem do rio Paraopeba no ponto de confluência com o Ribeirão Ferro-Carvão. O rejeito está sendo depositado em uma área acima da comunidade, o que reforça a sensação de insegurança entre os moradores, que vivem sob constante medo de um novo rompimento e sob incertezas quanto à qualidade do solo, da água e do ar, além da falta de acesso à informação e possibilidade de participação social na implementação dos projetos que a comunidade precisa.    

Nessa mesma perspectiva 35% das demandas estão relacionadas com esses projetos, sendo eles:  problemas em relação as instalações das estações de tratamento de efluentes unifamiliares e coletivas; atrasos em relação a construção do centro de convivência na comunidade, perdurando por mais de 3 anos; não realização da reforma da igreja comunitária, problemas com o asfalto colocado pela mineradora; além de problemas com o abastecimento de água e energia elétrica.   

  

Diagrama elaborado a partir dos registros de demandas na base de dados da AEDAS

Essas demandas evidenciam o racismo ambiental na comunidade, considerando que a população é tratada como invisíveis pelas políticas de planejamento, desenvolvimento e pela mineradora causadora do crime, evidenciando o caráter racializado, além da retenção de direitos territoriais e da exclusão da comunidade atingida dos processos decisórios sobre o uso e manejo de seu território.   


Reportagem: Equipe Marcadores Sociais das Diferenças (MSD), Mobilização e Comunicação