Recurso da Vale rejeitado: Entenda os fundamentos do voto do Relator sobre Liquidação Coletiva, Perícias e Inversão do Ônus da Prova
Os argumentos da decisão reforçam vitórias na busca pela reparação dos danos individuais homogêneos

Foto: Isis de Oliveira/Aedas
No dia 13 de março, os desembargadores do TJMG rejeitaram recurso da Vale contra a decisão que reconheceu a possiblidade da liquidação coletiva dos danos individuais, a legitimidade das Instituições de Justiça para representar as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, e autorizou a inversão do ônus da prova.
A seguir serão apresentados os argumentos da empresa poluidora contra a decisão acima citada e, mais abaixo, os argumentos do Desembargador Relator Leite Praça, que rejeitou os embargos da mineradora.
Argumentos da mineradora poluidora Vale S.A.
Em síntese a Vale argumenta:
- Existência de omissão na decisão quanto ao aproveitamento dos resultados das chamadas periciais 2, 3, 55 e 58, que tratam dos direitos individuais e que ainda estão em andamento, durante a fase de liquidação;
- Violação à coisa julgada, tanto em relação ao Acordo (2021), quanto à Decisão Saneadora (2019), pois entende que o primeiro previu a continuidade das perícias para identificar os danos individuais, e o segundo manteve o processo na fase de instrução de provas, de modo que nenhum dos dois documentos referências para a reparação previu expressamente a possibilidade da liquidação coletiva;
- Afirma que a decisão embargada foi omissa quanto à impugnação contra a criação de plataforma eletrônica para a fase de liquidação coletiva;
- Pondera que a decisão é contraditória quanto à legitimidade das Instituições de Justiça de representar as pessoas atingidas na fase de liquidação coletiva;
- Afirma haver contradições no entendimento dos magistrados acerca da natureza da liquidação coletiva;
- Segue se manifestando de forma contrária à inversão do ônus da prova, sob o argumento de que os autores da ação – Instituições de Justiça – possuem capacidade técnica e financeira de produzir as provas.
- Questiona o andamento da perícia ao mesmo tempo da liquidação, sob o argumento de que os resultados podem ser alterados e comprometer a liquidação iniciada;
- Por fim, afirma haver uma relação obscura entre a liquidação coletiva e o Acordo de 2021, posto que o Acordo não previu liquidação coletiva;
Argumentos dos desembargadores

Sessão de julgamento realizada no dia 13 de março, no TJMG | Foto: Isis de Oliveira/Aedas
O voto proferido pelo Desembargador Relator Leite Praça, acompanhou integralmente os Desembargadores Marcus Vinícius Mendes do Vale e Carlos Henrique Perpétuo Braga. Segue abaixo os temas questionados e os argumentos para rejeitar os embargos da Vale:
1. Perícias em andamento
O desembargador relator retomou a distinção entre a perícia da fase de conhecimento e a necessidade de perícia na fase de liquidação. Enquanto a primeira tinha caráter amostral, a segunda visa individualizar os danos, não havendo sobreposição de objetivos. Afirma que a manutenção da liquidação coletiva não impede o aproveitamento dos resultados da perícia em curso, desde que seja compatível com a liquidação.
2. Violação à Coisa Julgada
O relator afirma que a decisão embargada enfrentou esta questão e concluiu que o Acordo não excluiu a possibilidade de liquidação coletiva dos direitos individuais homogêneos, tampouco limitou a atuação das Instituições de Justiça no dever de representar as pessoas atingidas. Argumenta que a decisão saneadora não previu que o processo não deveria conter uma fase de liquidação.
Recorda a exclusão dos danos individuais homogêneos e supervenientes do Acordo, razão pela qual a liquidação coletiva deve ser considerada para contemplar esses danos, tendo em vista a reparação integral. Nas razões da decisão embargada, a liquidação coletiva de sentença busca individualizar os danos e a quantificar as indenizações, complementando a decisão judicial, sem qualquer afronta à coisa julgada. De igual modo, considera que os acordos extrajudiciais não vinculam todos os atingidos, nem esgota todas as formas de reparação.
3. Ausência de manifestação quanto à plataforma eletrônica
O desembargador Leite Praça considera que esta discussão não foi objeto central do agravo que gerou a decisão embargada. Aponta que os argumentos principais da Vale no Agravo estavam em torno da possibilidade da liquidação coletiva, da necessidade de nova perícia, da inversão do ônus da prova e da legitimidade ativa das Instituições de Justiça.
Entende que a reparação deve ser conduzida de forma célere e eficaz, garantindo que os direitos individuais homogêneos sejam satisfeitos de maneira ampla, de modo que a plataforma eletrônica se apresenta como meio operacional e não um fundamento determinante para a discussão.
Considera que questionamentos sobre a adequação técnica da plataforma eletrônica podem ser discutidos em momento oportuno no processo da liquidação coletiva, sem comprometer o andamento da reparação.
4. Ilegitimidade Ativa das IJs e Natureza da Liquidação Coletiva
O Relator afirma não haver contradição entre os votos, pois os demais desembargadores convergiram quanto ao resultado do julgamento. Ademais, a jurisprudência do STJ admite que a liquidação coletiva pode ocorrer tanto nos termos do art. 97 do CDC (liquidação tradicional) quanto do art. 100 do CDC (reparação fluída).
Complementa que a liquidação coletiva no caso concreto se justifica diante da relevância social dos danos causados pelo rompimento da barragem de Brumadinho, não havendo que levar em consideração a inércia dos atingidos para justificar a legitimidade das Instituições de Justiça. Entende que a legitimidade das IJs é um meio processual para garantir a reparação dos danos.
Atesta que a existência de ações individuais não impede a liquidação coletiva dos direitos individuais homogêneos, tendo em vista a baixa quantidade de ações individuais perante o tamanho dos danos.
Conclui que “é legítima a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública na liquidação coletiva, independentemente da modalidade aplicada (art. 97 ou art. 100 do CDC), sendo esse um instrumento adequado para garantir a efetividade da reparação”.
5. Inversão do ônus da prova
O Relator justifica a inversão do ônus da prova quando há hipossuficiência da parte ou dificuldade na produção da prova pelas pessoas atingidas. Neste caso, a inversão do ônus se dá pela assimetria de informações entre os atingidos e a empresa, e não na capacidade técnica dos legitimados – as IJs.
Reforça que a atuação das IJs é de defesa das pessoas atingidas, que individualmente teriam dificuldades para provar a existência, extensão e valores dos danos.
Afirma que “em ações coletivas ambientais ou consumeristas, a inversão do ônus da prova é regra para facilitar a efetividade da reparação e evitar o desequilíbrio processual entre as partes”. A inversão do ônus se aplica devido ao grau complexidade técnica que envolve os danos decorrentes do rompimento, o que demanda perícias e análises de informações que são de controle da Vale. Para o desembargador, a inversão do ônus decorre da necessidade de garantir uma liquidação eficiente e justa dos danos individuais homogêneos.
O desembargador pondera que não há prejuízo para a Vale com a inversão do ônus da prova, posto que a empresa poderá produzir suas próprias provas e contestar os valores apurados, em respeito ao processo legal e ampla defesa.
6. Relação obscura entre a liquidação coletiva e o Acordo
Para o Relator, o Acordo não se opõe a liquidação coletiva, ao tratar da continuidade das perícias, que visam a individualização dos danos. Leite Praça afirma que “o AJRI não exclui a liquidação coletiva, mas sim complementa o processo de apuração dos danos”.
Por fim, o Relator rejeitou os embargos e afirmou que o interesse da Vale é discutir novamente assuntos já decididos, revelando descontentamento da empresa com a conclusão do julgamento.
Confira o voto na íntegra:
Os argumentos desta decisão são importantes, pois reforçam as vitórias que a população atingida tem conquistado ao longo desse processo em busca da reparação dos danos individuais homogêneos, dentre eles a liquidação coletiva, a inversão do ônus da prova e o reconhecimento da legitimidade das IJs para defender o direito das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Brumadinho.
Importante destacar que ainda cabem outros recursos contra esta e outras decisões, como o recurso especial para os tribunais superiores.
Texto: Equipe de Estratégias Jurídicas da Reparação (EJR) da Aedas Paraopeba