Mulheres dos territórios atingidos de Minas realizam seminário para dialogar sobre o Programa para Mulheres
Com a presença de representantes de 11 territórios atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão e das Instituições de Justiça de Minas Gerais, cerca de 200 mulheres dialogaram sobre a destinação do recurso de R$ 1 bilhão previsto no acordo, além da ampliação da participação social

Na tarde da última segunda-feira (31), cerca de 200 mulheres atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, representantes de 11 territórios de Minas Gerais, reuniram-se em Timóteo-MG para discutir o futuro do processo reparatório após o Acordo de Repactuação e o Programa para Mulheres, que está sob responsabilidade das Instituições de Justiça.
O encontro foi promovido pelas Assessorias Técnicas Independentes que atuam junto às pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão na Bacia do Rio Doce em Minas Gerais: Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), Cáritas Diocesana de Governador Valadares, Cáritas Diocesana de Itabira, Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais, Centro Agroecológico Tamanduá (CAT) e Centro Alternativo de Formação Popular Rosa Fortini.
Também participaram do encontro, representantes das Instituições de Justiça por meio das promotoras Dra. Shirley Machado de Oliveira, Coordenadora Adjunta do Núcleo de Acompanhamento de Reparações por Desastres (NUCARD); Dra. Mariana Cristina Pereira Melo, da Coordenadoria Regional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente da Bacia do Rio Doce (COERDOCE); Dra. Samira Trindade, do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Apoio Comunitário, Inclusão e Mobilização Sociais (CAO-Cimos), do Dr. Bráulio Santos Rabelo de Araújo, Defensor Público Estadual, e da Gabriela Cristina Ramalho, Assessora Jurídica do Ministério Público Federal.
A força da voz das mulheres atingidas
O encontro iniciou com falas de representantes de cada território, que destacaram as principais violações de direitos que marcaram a trajetória das mulheres atingidas nos últimos nove anos. As demandas levantadas incluíram a necessidade de critérios claros para a destinação do recurso, maior participação nos processos decisórios e a inclusão de mulheres que ficaram de fora do cadastro de atingidos.
“Nós queremos construir como será o direito das mulheres. Cada território quer sentar e decidir como será o melhor para sua comunidade. Nós do Quilombo de Gesteira não vamos aceitar esse processo de exclusão. Nós [Quilombo de Gesteira] queremos estar no anexo 3 e os demais direitos que terá para os outros povos também. Queremos construir os direitos” Simone Silva (Quilombo de Gesteira – Território Barra Longa)
“Ocorreram diversas separações, mulheres que não conseguem participar dos projetos das casas, o que gera conflitos familiares. Mulheres ameaçadas de morte por maridos… Isso ocorre não apenas em Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, ou Ponte do Gama… não sei se isso é pelo homem se achar superior. Mas a Samarco, Vale e BHP, contribuem para que isso ocorra” Mônica (Território de Mariana)
“Vocês já decidiram critérios de como essa quantia será repartida por toda a Bacia? Antes de tudo, precisamos saber do critério, para que, em cima disso, vermos se queremos auxílio financeiro ou algo mais. São muitas mulheres que ficaram de fora.” Maria da Penha (Território Rio Doce/Santa Cruz do Escalvado e Comunidade de Chopotó)
“Não fomos incluídas da maneira certa no cadastro integrado. Esse fato impediu e segue impedindo que a gente consiga receber alguma indenização. Meu marido já recebeu, estou no cadastro com ele e não tive direito a receber nenhum centavo.”
Conceição de Pádua (São Domingos do Prata) -Território 01
“Pedimos, também, a criação de espaços representativos e de decisão, como a formação de um grupo de trabalho com as mulheres atingidas de todos os Territórios, acompanhadas de nossas Assessorias Técnicas, que garantam participação direta das mulheres atingidas da Bacia do Rio Doce.” Sandra Gonçalves (Revés do Belém) – Território 02
“Será que vai existir essa integralidade? Como vai ser esse direito de participação? Não estamos mais aguentando vir em reunião, isso não é participação. Participação é quando nós falamos, nós sabemos fazer movimento.” Maria Madalena (Quilombo Ilha Funda) – Território 03
“Espero sinceridade, que esse dinheiro do fundo das mulheres, seja direcionado para as mulheres. Que as Instituições de Justiça cobrem da Samarco transparência.”
Joelma (Governador Valadares) – Território 04
“Pedimos a proteção de nascentes e apoio à retomada econômica das mulheres”
Marilúcia Gonçalves (Galiléia) – Território 05
“Quais direitos nós temos sendo mulher de pescador que acordava cedo pra colocar rede? Nós vendíamos peixe pra ter nossa renda, a gente não vende mais peixe, mas também não tem renda”
Rita de Cássia (Conselheiro Pena) – Território 06
“O trabalho doméstico das mulheres não é visível; as mulheres cuidam das famílias que ficaram doentes também, mas as mulheres não recebem nenhum tipo de cuidado; as mulheres empreendedoras, agricultoras estão desamparadas; a justiça falhou novamente com o PID, pois o direito das mulheres a acessar essas medidas não está sendo considerado.”
Marília Vieira (Itueta) – Território 07
“Sabemos que esse dinheiro não vai acabar com as nossas dores e as nossas tristezas. As crianças foram nascidas e criadas nos nossos territórios, as crianças também tem que ser reconhecidas como atingidas.”
Nilsa Abreu (Aimorés) – Território 08

Respostas das Instituições de Justiça e encaminhamentos
Durante o Seminário, as Instituições de Justiça apresentaram respostas aos questionamentos levantados pelas mulheres e destacaram que a gestão do fundo seguirá critérios técnicos e participativos. Segundo Gabriela Cristina Ramalho, “o fundo foi criado para ser gerido pelas Instituições de Justiça, e estamos preparando um termo de referência para contratação da empresa responsável pela administração do recurso. Esse processo de escuta das atingidas é essencial para garantir que as decisões sejam justas e representem as reais necessidades das mulheres da Bacia”.
As promotoras ressaltaram ainda a importância de criar espaços de participação das mulheres atingidas na tomada de decisões. Também foi reforçada a necessidade de assegurar que o recurso seja utilizado para a promoção da autonomia econômica das atingidas, por meio de ações específicas para este grupo.
Entre os compromissos assumidos pelas IJs, destacam-se:
- O recurso de R$ 1 bilhão será gerido pelas Instituições de Justiça (IJs), e os critérios de destinação ainda precisam ser construídos de forma participativa. Está em elaboração um Termo de Referência para contratação de uma entidade gestora, e as IJs já realizaram duas reuniões sobre o tema. A gestão do recurso deve garantir que os benefícios sejam distribuídos de maneira igualitária em toda a Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba;
- As IJs reafirmam o compromisso de construir o Programa para Mulheres de maneira transparente e participativa. O MPMG se comprometeu a levar em consideração as demandas das mulheres atingidas na elaboração dos critérios de distribuição dos recursos. Haverá continuidade no diálogo com as atingidas para garantir que haja escuta qualificada durante a implementação do programa;
- As IJs reconhecem que houve discriminação de gênero na formulação do acordo e destacam a necessidade de medidas corretivas, o objetivo é evitar que a reparação gere novas injustiças e assegurar que mulheres invisibilizadas no cadastro sejam contempladas.As IJs têm realizado reuniões semanais com as empresas para discutir ajustes na reparação, incluindo revisão de cadastros.

Histórico e contexto
Desde o rompimento da barragem de Fundão, em 2015, as mulheres atingidas da Bacia do Rio Doce enfrentam um processo de reparação marcado por desigualdades de gênero e pela falta de reconhecimento de seus direitos. As atividades que garantiam autonomia financeira, como a pesca, a agricultura e o comércio informal, foram duramente impactadas, aprofundando sua vulnerabilidade socioeconômica. Além disso, a lógica patriarcal adotada nos programas de indenização as classificou como dependentes de maridos ou parentes homens, dificultando seu acesso direto aos programas e indenizações. Esse cenário agravou problemas de saúde física e mental, como ansiedade, depressão e insegurança alimentar.
A implementação dos programas de reparação pela Fundação Renova reforçou a exclusão das mulheres. O modelo de cadastramento priorizou apenas um membro por família, geralmente um homem, restringindo o acesso das atingidas aos auxílios financeiros. Além disso, a falta de atualização do cadastro impediu que mudanças familiares, como falecimentos ou divórcios, fossem consideradas, amplificando o contexto de injustiças. Mesmo nos novos programas indenizatórios pós-repactuação, as mulheres continuam enfrentando barreiras burocráticas e informacionais que dificultam sua plena reparação.
O Acordo de Repactuação, assinado em 25 de outubro de 2024, prevê a criação do Programa para Mulheres, com um fundo de R$ 1 bilhão destinado exclusivamente à reparação e promoção dos direitos das atingidas. O recurso será de responsabilidade das Instituições de Justiça, que poderá contratar entidade gestora, e deverá financiar ações que garantam autonomia financeira, desenvolvimento social e acesso a direitos fundamentais.

Manifesto das Mulheres Atingidas
Ao final do encontro, as mulheres elaboraram um manifesto que reforça suas demandas e reafirma a necessidade de uma reparação integral e justa. O documento destaca a urgência de critérios claros e participativos para a destinação do recurso, o reconhecimento do trabalho invisibilizado das mulheres atingidas e a garantia de que o Programa para Mulheres realmente beneficie esse grupo.
Entre as principais denúncias e exigências pontuadas no Manifesto, estão o pedido para o reconhecimento de todos os danos sofridos pelas mulheres, que em sua maioria foram consideradas invisíveis durante o processo de reparação. Confira:
“O que relatamos aqui é o que denunciamos há nove anos e o que já foi tecnicamente diagnosticado pelos experts e pelas Assessorias Técnicas Independentes neste tempo que estão em campo. Os danos vão além do material e do financeiro. Sofremos danos morais, que geram sentimentos de desvalorização pessoal e conflitos em nossas relações sociais, aumentando nossa vulnerabilidade no ambiente doméstico.
Não fomos ouvidas em nenhum momento desse processo. Não houve medida de reparação pensada por nós e para nós, mulheres atingidas. Apenas em agosto de 2024, às vésperas de completar 9 anos do Rompimento da Barragem, houve o reconhecimento judicial através da propositura de Ação Civil Pública referente aos danos às mulheres: fomos vítimas de um modelo patriarcal de cadastro; fomos discriminadas no processo de reparação; fomos violentadas em todos esses anos do processo de Reparação Integral!”