Ato público marca os 10 anos do rompimento da barragem de Fundão em Belo Horizonte
Atingidos reivindicam regulamentação da PNAB, fortalecimento das assessorias técnicas independentes e transparência nos processos de reparação

Dez anos após o maior desastre-crime socioambiental da história do Brasil, atingidos e atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), voltaram às ruas na quarta-feira (5) para cobrar justiça e reparação integral. Em Belo Horizonte, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) realizou um ato público que reuniu centenas de pessoas atingidas vindas de diversas regiões da bacia do Rio Doce, do litoral capixaba, da bacia do Paraopeba e do sul da Bahia.
A agenda, que marca uma década do crime socioambiental cometido pela Samarco, Vale e BHP Billiton, foi mais do que uma manifestação simbólica de memória, foi também um espaço de luta concreta. Durante o ato, pessoas atingidas e lideranças do MAB entregaram ao Governo Federal uma carta com um conjunto de reivindicações urgentes voltadas à efetivação dos direitos das famílias atingidas, muitas das quais ainda vivem em condições precárias e sem acesso pleno à reparação.



O ministro da Secretaria-Geral do Governo Lula, Guilherme Boulos, e a ministra de Direitos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo, marcaram presença no ato. Dez anos após o desastre-crime de Mariana, Boulos reforçou a necessidade de promover a reparação na Bacia do Rio Doce.
“É importante dizer que o que aconteceu há 10 anos em Mariana não foi um desastre, foi um crime cometido pela Samarco. E o crime demanda reparação. Reparação ambiental, reparação social e humana para as comunidades, as pessoas e as famílias que sofreram com os efeitos desse crime. E, por isso, o presidente Lula, logo que entrou no seu terceiro mandato em 2023, orientou uma repactuação do acordo”, relembrou Guilherme Boulos.

A ministra Macaé Evaristo destacou que a garantia dos direitos só é possível através da luta. “A mensagem para os atingidos é uma mensagem de dizer que essa memória desse crime que aconteceu, só é possível a gente estar aqui e ter um novo acordo em função da luta dos atingidos, que não são somente atingidos, são pessoas, são indígenas, é população quilombola, povos e comunidades tradicionais, pescadores artesanais, agricultores familiares”, disse.
“A gente está falando de milhares de pessoas que vivem e que constroem e que nesse momento fazem a luta não só para a gente nunca mais esquecer desse crime, mas para que a gente adote políticas públicas para não deixar que outros episódios como esse se repitam. São essas pessoas que vão reconstruir, é quem nos aponta uma possibilidade de reconstrução”, afirmou a ministra.

Para Joceli Andrioli, liderança nacional do MAB, os dez anos do crime da Vale em Mariana reafirmam a luta nacional por justiça e reparação. “Nós temos uma carta muito importante, a nível nacional, pedindo que o governo federal acelere a regulamentação da PNAB, que é a Política Nacional de Direitos das Pessoas Atingidas. É fundamental que o Estado brasileiro se organize cada vez mais para impedir novos crimes e para reparar os que já aconteceram”, afirmou Joceli.
Segundo ele, o movimento também pede que o governo federal volte sua atenção à situação vivida pelas famílias atingidas em Brumadinho e na bacia do rio Paraopeba.
Renata Rodrigues, atingida do Território 3 (Vale do Aço), destacou a importância do ato como símbolo de resistência e unidade entre os atingidos. “Estar aqui é parte de uma grande jornada de luta que une os atingidos de Mariana e de Brumadinho. Sem a luta, nós não vivemos. Quero ressaltar que nós não podemos aceitar a diminuição das ATIs.”

Renata também reforçou a necessidade de reconhecimento de territórios e comunidades que seguem invisibilizadas no processo de reparação. “Tem atingidos que ainda não foram reparados. Tem quilombos que não foram reconhecidos. Tem comunidades tradicionais que não estão no Anexo 3 para serem reconhecidas. Assim como no extremo sul da Bahia, em Nova Viçosa, que também está lutando por reconhecimento. Dentro da repactuação, dentro do novo acordo, nós não tivemos participação – não fomos convidados para estar na mesa.”
Já Henrique Lacerda, coordenador institucional da Aedas no programa Médio Rio Doce, reforçou que, mesmo após uma década, a luta das pessoas atingidas permanece viva. “Apesar dos 10 anos do rompimento da barragem de Fundão, o povo atingido segue em luta e na esperança de que a reparação chegue até suas comunidades. Agora, num novo momento, com o novo acordo do Rio Doce, há muita expectativa com os projetos comunitários, com o PRR, o PTR e outras iniciativas que surgem no âmbito coletivo da reparação. O povo atingido segue lutando, organizado e em busca de uma reparação integral.”
Bacia do Paraopeba
O acordo firmado entre Estado de Minas Gerais, Instituições de Justiça e a mineradora Vale S.A., responsável pelo desastre-crime do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, tem demonstrado seu esgotamento e ineficiência frente à demanda por uma reparação de fato na vida das pessoas e comunidades atingidas da Bacia do Paraopeba e Represa de Três Marias.
Um exemplo notório foi o encerramento, em outubro, do Programa de Transferência de Renda (PTR), parte do acordo destinado a cumprir a função de auxílio emergencial. As pessoas atingidas encontram-se desamparadas financeiramente em um cenário de agravamento de danos socioeconômicos e socioambientais nas comunidades ao longo da calha do Rio Paraopeba.
“Reivindicamos que o governo federal apoie também a luta em Brumadinho, para garantirmos a reparação do povo, o direito à ATI e o fortalecimento da política de direitos dos atingidos em todo o Brasil”, concluiu.
Carta-reivindicação

Durante o ato, uma carta com reivindicações foi entregue ao ministro Guilherme Boulos, novo titular da Secretaria-Geral da Presidência da República. Entre as principais demandas apresentadas, o documento reforça temas que já vêm sendo discutidos no contexto do novo acordo de reparação.
O MAB reivindica a regulamentação da Política Nacional dos Atingidos por Barragens (PNAB) e a criação de um órgão e de um fundo nacional voltado à garantia de direitos das pessoas atingidas.
Outro ponto central é o pagamento de aluguel emergencial para famílias de Barra Longa ainda não reconhecidas na repactuação, até que medidas definitivas de reassentamento sejam implementadas. O movimento também cobra a aprovação e execução do projeto de quintais produtivos, que visa fortalecer a soberania alimentar nas comunidades atingidas e garantir o acesso à água potável.
A carta propõe ainda que o primeiro edital de projetos comunitários seja lançado em janeiro de 2026, com foco em ações de educação, comunicação popular, geração de energia, produção de alimentos saudáveis e atividades educativas para crianças e jovens.



O ministro Guilherme Boulos abordou a pauta durante entrevista coletiva na ALMG. Ele destacou a responsabilidade do seu ministério no acompanhamento da participação social das comunidades atingidas.
“Queremos lançar esses editais, no máximo, no início do ano, para garantir que sejam contratados. E esses projetos de apoio às comunidades, que totalizam R$ 5 bilhões sejam contratados e efetivados no início do ano que vem. Então, o presidente Lula tem um compromisso com a reparação”, afirmou.
Outras pautas destacadas incluem a criação de um programa de melhorias sanitárias e acesso à água, com uso de tecnologias como filtros de nanotecnologia e osmose reversa; e a implantação de um Centro de Educação Continuada em Políticas Públicas e Tecnologias para Atingidos e Atingidas, que ofertará cursos técnicos, superiores, de idiomas e programas de intercâmbio e formação.
Na área da saúde, as pessoas atingidas cobram a publicação de um edital para a formação das turmas de vigilantes populares em saúde e a criação de um centro de referência especializado na saúde dos atingidos da bacia do Rio Doce e do litoral capixaba.
Por fim, o movimento solicita a instalação de uma mesa de diálogo permanente com o Governo Federal, para garantir participação e acompanhamento das tratativas que envolvem a reparação integral não apenas do desastre de Mariana, mas também do crime socioambiental cometido pela Vale em Brumadinho.
Atingidos entregam ofício ao TRF6

Durante o ato público em Belo Horizonte, pessoas atingidas e representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) também protocolaram ofícios ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6). Os documentos cobram providências e diálogo sobre temas centrais do processo de reparação.
No ofício encaminhado ao TRF6, o MAB solicita a realização de uma reunião para tratar de violações de direitos e impunidade, pede a quebra do sigilo dos processos de monitoramento do novo acordo da bacia do Rio Doce, e reivindica o reconhecimento da Comunidade Quilombola de Gesteira, a ampliação do prazo para emissão do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e a garantia de moradia digna às famílias de Barra Longa.
Atingidos em luta contra retrocessos na bacia do Paraopeba

Durante a tarde da jornada de lutas promovida pelo MAB, representantes das regiões atingidas da Bacia do Paraopeba e Represa de Três Marias se reuniram com a presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para discutir as pautas que estão para ser apreciadas pelo tribunal. Entre elas, a Ação Civil Pública que pede a criação de um Novo Auxílio Emergencial para a região atingida. Essa ação está parada desde 24 de abril, quando foi acatado um recurso da mineradora Vale contra a decisão da 1ª Instância.
As lideranças destacaram a necessidade de um posicionamento célere do TJMG para evitar o agravamento de vulnerabilidades no território atingido pelo desastre-crime, uma vez que a população já não conta mais com o pagamento mensal do Programa de Transferência de Renda (PTR), que foi encerrado em outubro. O PTR era parte do Acordo Judicial de Reparação, assinado em fevereiro de 2021, e seu encerramento retrata a ineficiência do acordo em promover a reparação na Bacia do Paraopeba, que convive diariamente com o agravamento dos danos socioeconômicos e socioambientais, em um cenário de incertezas sobre a efetivação da reparação.
A atingida Camina Moreira, de Brumadinho, destacou que o acordo não tem possibilitado a retomada da qualidade de vida na região. “Hoje eu pedi que seja passada a lei pela nossa dor, pela fome do povo que não espera. Dizer também que a gente não vai desistir. Se for preciso, vamos voltar e vamos acampar aqui, mas não desistiremos da luta. Vamos nos manter unidos e cobrar do governador Zema, que fez um acordo sem a participação dos atingidos nos impossibilitando de ter uma vida digna, sem água, sem nada”, afirmou.
Sobre o diálogo no tribunal, a atingida Edalgisa Martins, da comunidade Santa Ana, de Igarapé, avaliou como positiva, mas garantiu que vão seguir exigindo agilidade no julgamento. “Eu saí bem esperançosa. Mas se na segunda-feira a gente ver que estão nos empurrando com a barriga, voltaremos. Usem o fim de semana para recuperar as energias para vir na próxima semana todos unidos. Juntos nós venceremos essa indiferença da justiça. Ela vai ter que nos ouvir. Nós somos os protagonistas, nós temos o direito e nós vamos exigir e viremos quantas vezes forem necessárias”, disse.
As pessoas atingidas prometeram voltar a se manifestar caso o tribunal não dê respostas às demandas da população. Desde a semana passada, mobilizações têm acontecido em municípios atingidos. Na terça-feira (28/10), manifestantes iniciaram a ocupação da linha férrea operada pela empresa MRS no município de Mário Campos. Na quinta-feira (30/10) o ato alcançou outro trecho dos trilhos da ferrovia, no município de Brumadinho. Foram mais de 50 horas de reivindicações.
“Realizamos a maior manifestação decorrente do crime da Vale e, se for preciso, realizaremos quantas for, porque o direito tem que ser garantido. É com luta, porque é só assim que eles vão entender que o povo está unido mais do que nunca”, destacou o atingido Silas Fialho, do município de Brumadinho.
Outro ponto que foi dialogado com a presidência do Tribunal foi a exigência das lideranças atingidas das Regiões 1 e 2 pela manutenção da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) enquanto assessoria técnica independente. Uma série de movimentações das Instituições de Justiça (IJs) nos últimos meses têm comprometido o direito à ATI na Bacia do Paraopeba. O corte de recursos para o acompanhamento do Anexo I.1, especialmente na R1 e R2, resultou em um processo de desmobilização da equipe técnica da Aedas. Desde 15 de outubro, todos os trabalhadores do Projeto Paraopeba entraram em aviso prévio.
As IJs, por sua vez, publicaram, no dia 31/10, um edital para escolha de uma nova ATI para as regiões, mas que foi prontamente repudiado pelas pessoas atingidas. Durante a manhã da jornada de lutas, em um ato simbólico, lideranças das Regiões 1 e 2 queimaram o edital. Para Michelle Rocha, atingida da comunidade Monte Calvário, região do Citrolândia, de Betim, a retirada da ATI que acompanha os atingidos é uma afronta aos direitos assegurados na PEAB e PNAB. “Não vamos aceitar a retirada da Aedas do território. Vamos queimar esse edital”, afirmou.
Atos de solidariedade
Em diversas partes do país, a data também foi marcada por atos de solidariedade. Em Belém (PA), atingidos e atingidas realizaram uma manifestação em frente à sede da Vale, em apoio às lutas das populações da bacia do rio Doce, do Paraopeba e do litoral capixaba. O grupo denunciou a impunidade das mineradoras responsáveis pelos crimes de Mariana e Brumadinho, e expôs que as violações cometidas pela mineradora se estendem a outros territórios da Amazônia e a diferentes países onde a empresa atua.
Os manifestantes também denunciaram o uso do espaço da COP30 pela mineradora Vale para projetar uma imagem de sustentabilidade diante da comunidade internacional. Segundo o grupo, a mineradora tenta se apresentar como referência em transição ecológica, mas continua destruindo territórios, comunidades e vidas, sem reparar de forma justa e integral os danos causados por suas atividades.
Texto: Thiago Matos e Diego Cota com contribuição de Luciano Alvim – Equipe de Comunicação da Aedas


