O maior trem do mundo continua a atravessar o tempo, como uma lembrança da infância e da vida, arrastando inúmeros vagões de minério e deixando um rastro de destruição. O maior trem do mundo transporta parte dos corações tejucanos. 

Comunidade do Tejuco (Brumadinho) | Fotos: Felipe Cunha

A breve narrativa a seguir, rica em significado, carregada de luta e reconhecimento comunitário enquanto comunidade tradicional, retrata a história de uma das moradoras da comunidade do Tejuco, em Brumadinho. 

Maria de Fátima, de 59 anos, mais conhecida por Zizinha, nasceu no Tejuco e nunca viveu em nenhum outro lugar. Nem pretende. A comunidade, cuja história tem séculos, faz parte de toda identidade de Zizinha. 

Desde a infância, Zizinha cresceu ouvindo e vivenciando os impactos da mineração e, como muitos outros moradores de sua comunidade, também acabou trabalhando na indústria minerária. 

Zizinha trabalhou de forma braçal na mineração quando seus filhos ainda eram pequenos. 

“Trabalhei quebrando pedras com uma marreta e enchendo caçambas de pedras”, relembra.

Quando trabalhava na mineração como quebradeira de pedras, Zizinha costumava pegar pedras grandes e, se conseguisse, rolava para um outro lugar para quebrá-la. Se não conseguisse, ela quebrava ali mesmo. “Carregava as pedras em um carrinho e enchia a caçamba. Usava picareta e marreta para quebrar as pedras”, diz.

Até hoje, como marca desse tempo, tem uma cicatriz em seu pé, pois naquela época não havia sapatos adequados, então ela ia trabalhar de chinelo. Um dia, quando estava quebrando uma pedra, um ‘fiapinho’, como disse Zizinha, cortou seu pé e ela enrolou um lenço em volta para cuidar do ferimento. Zizinha sempre gostou de lenços e acessórios assim. Uma colega alertou-a, dizendo que ela deveria ir embora porque seu pé poderia inflamar, mas Zizinha precisava ganhar seu dia de trabalho e tinha que ficar até as 16 horas. Ela juntou o restante das pedras, colocou na caçamba e foi para casa. 

Maria de Fátima, mais conhecida por Zizinha, pousando para uma foto no Córrego do Feijão | Foto: Felipe Cunha

Ao chegar em casa, cuidou de seus filhos e preparou o jantar. No dia seguinte, não conseguiu trabalhar devido ao inchaço em seu pé. Ao invés de receber assistência, o dono da mina se recusou a fazer qualquer coisa, não pagou um centavo e ainda ficou devendo duas caçambas de pedras que Zizinha havia retirado. Ela explicou para o dono que não tinha escolha senão trabalhar de chinelo naquele dia e que não cortou seu pé de propósito. No entanto, o dono da mineradora não ofereceu ajuda e a dispensou do trabalho, dizendo que não podia fazer nada. 

Zizinha e seu primo Vandeco, ambos lideranças comunitárias do Tejuco | Foto: Felipe Cunha

Em seguida, Zizinha trabalhou em uma granja e relembra: “Nosso sustento vinha da granja. Ah, na granja, enquanto capinava cana e milho, encontrei um machado de pedra, possivelmente indígena. Uma vez, enquanto puxava a terra, a pedra apareceu e eu percebi que era um artefato pré-colonial.” 

Zizinha lamenta a presença de outras mineradoras no território, como a Mineral do Brasil que minera nas redondezas do Tejuco: “A Mineral do Brasil, outra empresa de mineração que invadiu a comunidade, está causando muita perturbação com britadores, poeira e lama, e nós não temos estrutura adequada para lidar com isso. Eles só estão interessados em seus próprios interesses, e nós, a comunidade, não importamos para eles. Quando tentamos abordar a empresa, nem sequer somos autorizados a entrar.” 

Uma das áreas de extração minerária no Tejuco | Foto: Felipe Cunha

O impacto da mineração está se tornando cada vez mais presente no Tejuco. 

“Antes, o impacto era menor quando a Mineral do Brasil operava do outro lado da serra. Hoje, eles estão minerando na vista e próximo de nossas casas”, diz Zizinha.

Zizinha também trabalhou na Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale S.A, nos meados dos anos 2000, onde seu cargo era ajudante de jardim. No entanto, ela afirma: “Não tinha nada de jardim naquele trabalho. Eu roçava talude, carregava entulho em um caminhão, e desde aqueles dias, nós já nos preocupávamos com a possibilidade de a barragem se romper.” 

Zizinha e o futuro do Tejuco | Foto: Felipe Cunha

Após o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrido em janeiro de 2019, em Brumadinho, tudo mudou para Zizinha. Ela perdeu familiares e amigos no desastre-crime. Além dessa perda irreparável, sua autonomia hídrica também foi comprometida. Ou melhor, destruída, assim como sua soberania alimentar. Esse desastre-crime, causado pela mineração, mais uma vez, fragmentou parte de sua identidade. 

Muro do Tejuco escrito: “Vale assassina, cadê meu amigo?” | Foto: Felipe Cunha

Antes do “boom” da mineração no Tejuco, a comunidade era caracterizada por vastas plantações e uma abundância de água. Zizinha recorda: “Havia muitas frutas, como araçá, pequi, cabacinha. A cada época do ano, tínhamos algo novo para colher. Maçãzinha, pera, abacaxi do campo, gabiroba, cagaiteira. Tudo isso era da natureza, não precisávamos cultivar. Era uma fartura.” 

A comunidade do Tejuco era referência em termos de modelo de vida socioambiental e agroflorestal. No entanto, agora, parece que o foco principal é a extração do minério: “Minério de tolo. Se fala que tem minério, eles arrancam a força”, diz Zizinha. 

Áreas naturais da comunidade do Tejuco | Foto: Felipe Cunha

Relembra que, antes, tudo era abundante: “Ninguém passava fome ou sede; tínhamos comida de sobra. Agora, se você não lutar, passará fome. Antes da invasão das grandes mineradoras no Tejuco, colhíamos frutas do campo, tomávamos banho em águas naturais e bebíamos da água das nascentes. A água descia limpinha.” 

O maior trem do mundo, com cinco locomotivas, continua a atravessar o tempo, como uma lembrança da infância e da vida, arrastando inúmeros vagões de minério e deixando um rastro de destruição. 

Força aos corações tejucanos! 

Fotos e texto: Felipe Cunha | Aedas

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