Vale tenta suspender decisão que garante continuidade de auxílio financeiro às famílias atingidas pelo rompimento em Brumadinho
A mineradora contestou em duas instâncias com os mesmos argumentos

Em resposta à decisão judicial que determinou a continuidade do Programa de Transferência de Renda (PTR) — ou a implementação de outro auxílio emergencial — para as famílias atingidas pelo rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, a mineradora Vale apresentou contestação e interpôs um agravo de instrumento, com o objetivo de suspender os efeitos da medida.
A decisão é resultado de uma ação judicial proposta por entidades que representam as pessoas atingidas, e visa garantir a permanência de um auxílio financeiro que assegure condições mínimas de vida digna até que haja uma reparação integral dos danos causados pelo desastre.
Vale contesta em duas instâncias com os mesmos argumentos
Em primeira instância, a Vale apresentou contestação com argumentos muito semelhantes aos que utilizou posteriormente no agravo de instrumento, recurso por meio do qual tenta suspender os efeitos da decisão liminar. A empresa insiste em dizer que a obrigação de pagar o PTR já estaria encerrada desde a assinatura do Acordo Judicial de Reparação, homologado em 2021.
Além disso, no julgamento do agravo, o Desembargador Leite Praça, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, declinou da competência da 19ª Câmara Cível, destacando que o caso não envolve entes públicos e trata-se de discussão entre pessoas jurídicas de direito privado:
“No caso em exame, repiso, trata-se de lide entre pessoas jurídicas de direito privado, discutindo questão de competência residual, sem qualquer participação de entes públicos que pudesse atrair a competência absoluta desta 19ª Câmara Cível em razão da matéria ou das pessoas envolvidas. Diante do exposto, DECLINO DA COMPETÊNCIA e determino a redistribuição do feito a uma das Câmaras de Direito Privado, conforme as disposições regimentais.”
— Des. Leite Praça, TJMG.
Em outras palavras, o Desembargador disse que não possui jurisdição para julgar este processo e o encaminha para outra câmara seguir com o julgamento. O processo tramitará e será julgado por outros desembargadores.

Entenda os principais argumentos da Vale no recurso
1. Que o PTR não pode mais ser discutido judicialmente
A Vale afirma que não tem mais obrigação de pagar o PTR, porque essa questão teria sido encerrada com o Acordo Judicial de 2021. Contudo, a realidade nos territórios mostra que a reparação está longe de ser concluída, e as famílias ainda não reconstruíram seus modos de vida.
2. Ataques às associações de atingidos
No agravo, a empresa tenta deslegitimar as associações que representam os atingidos, alegando que não são parte do acordo e questionando seus estatutos. A Aedas repudia esse ataque, que compromete o direito à representação coletiva e ao acesso à Justiça das pessoas atingidas.
3. Tentativa de desqualificar a Política Nacional dos Atingidos por Barragens (PNAB)
A Vale alega que a PNAB (Lei 14.755/2023) seria uma norma “abstrata”, sem força para alterar o conteúdo do acordo. Essa posição ignora o caráter normativo e vinculante da legislação, aprovada após décadas de luta dos atingidos em todo o Brasil.
4. Alegação de que não há atrasos na reparação
A empresa afirma que as ações de reparação previstas no acordo estão sendo cumpridas, o que não justificaria um novo pagamento do PTR. No entanto, as comunidades vivem o oposto: limpeza do rio incompleta, estudos lentos e ausência de medidas efetivas de reparação para grande parte das famílias.
5. Suposta “irreversibilidade” da decisão judicial
A Vale não alegou risco de prejuízo financeiro direto. Seu argumento foi o de que, uma vez feito o pagamento do auxílio, os valores não poderiam ser restituídos posteriormente, por se tratar de verba alimentar recebida por terceiros de boa-fé. Como a empresa expressou no recurso:
“Deve-se registrar, ainda, que a tutela de urgência sequer poderia ser concedida pela decisão agravada em razão da irreversibilidade da medida, nos termos do art. 300, § 3º, do CPC. Ora, uma vez efetuado novo pagamento da VALE à FGV e, consequentemente, realizada a efetiva transferência dos valores aos beneficiários, a verba será recebida por terceiros de boa-fé, com natureza alimentar, tornando-se, portanto, irrepetível.” — Trecho do Agravo de Instrumento interposto pela Vale
Vale tem plena capacidade financeira para manter o PTR
É importante destacar que na ação judicial proposta pelas entidades que representam as pessoas atingidas, foi argumentado que a empresa Vale registrou em 2024 um lucro líquido de R$ 31,6 bilhões, além de um EBITDA de US$ 4,1 bilhões, o que revela um desempenho financeiro robusto. Desde o rompimento da barragem em Brumadinho, a Vale já acumulou R$ 347 bilhões em lucros. O valor necessário para manter o PTR representa uma fração mínima desses montantes, o que reforça a viabilidade e legitimidade da decisão judicial.
A luta das famílias atingidas é pela dignidade
A decisão judicial que determina a continuidade do auxílio financeiro não representa privilégio, mas sim a garantia de um direito mínimo diante da ausência de reparação integral. A interrupção abrupta do PTR agravaria a situação de vulnerabilidade de milhares de famílias, que ainda aguardam pelas medidas prometidas.
A luta das pessoas atingidas segue firme, e a Aedas continuará acompanhando de perto os desdobramentos dessa decisão, que representa um marco importante na busca por condições de vida dignas até que a reparação integral seja efetivamente alcançada.
Relembre
No dia 14 de março deste ano, no Dia Internacional de Luta contra as Barragens, em Defesa dos Rios e da Vida, cerca de mil pessoas atingidas realizam uma jornada de mobilização com o lema “Lei dos Atingidos aplicar para a reparação avançar!”. Na ocasião, os atingidos manifestaram pela continuidade do PTR, manutenção da atuação das ATIs em todos os âmbitos do processo de reparação integral, incluindo a liberação dos recursos para implementar o Plano de Trabalho do Processo; o recebimento das indenizações individuais, e a aplicação imediata da PNAB.