Seminário reúne mulheres e crianças para partilhar angustias e construir esperança
“Mãe, quem vai ficar de vigia hoje à noite? Meu filho me pergunta isso todas as noites, ele só dorme se eu ou o pai dele ficar acordado para vigiar se a lama vai chegar”. Sandra Maria, atingida de Lagoa das Flores, em Itatiaiuçu.
Já pensou como seria escutar isso de um filho ou filha? E precisar ficar acordada a noite toda para ver se a lama vai chegar e se vão precisar correr para salvar suas vidas? Pois é, esta é a rotina de várias mulheres em Itatiaiuçu que, desde o acionamento do Plano de Ação Emergencial de Barragem de Mineração (PAEBM) da ArcelorMittal, sofrem com a lama invisível representada pela insegurança e o medo do risco de rompimento da barragem. A preocupação com o bem-estar e segurança dos seus filhos e filhas é algo vivenciado diariamente por essas mulheres.

“No dia foi… não gosto nem de lembrar, chegaram de madrugada gritando: saiam, vocês querem morrer? Pega os meninos, os documentos se conseguirem e saiam. Até hoje é como um pesadelo, a gente não consegue dormir mais, a gente escuta a sirene e já quer correr. Meu filho estava vendo televisão e viu que acharam mais um corpo em Brumadinho, aí ele perguntou: Mãe, lá em Brumadinho acharam mais uma pessoa morta, aqui vai ser assim também? Não meu filho, respondi”, lembrou emocionada Sandra Maria.
Vários depoimentos como este, de Sandra Maria, foram relatados no III Seminário Temático: Mulheres e Crianças, realizado no sábado, 19 de outubro de 2019, pela Assessoria Técnica da AEDAS em Itatiaiuçu. Foram falas fortes e emocionadas sobre dor, angústia, tristeza, mas também sobre força, união, luta para que a vida melhore e a felicidade, o sonho interrompido, voltem.

A atingida de Pinheiros, Shirley de Souza Ferreira, confessou que se sentiu muito fragilizada com toda a situação e que sofre com os comentários e o distanciamento da família: “Me sinto muito fragilizada, me sensibilizei com a Simone, atingida de Barra Longa, foi um exemplo para nós, nos fez lembrar tudo que passamos no dia do acionamento, que não sai da cabeça da gente. Perdemos o apoio de família, de amigos que acham que o dinheiro da Arcelor é tudo pra gente, mas não vê o psicológico da gente que está muito abalado, com essa perda, com a saída de nossas casas. A gente queria ficar”, desabafou.
Esperança renovada
Mesmo com toda dor e tristeza, o alento abraçou as mulheres atingidas na manhã desse sábado. Os relatos das mulheres deixaram um rastro de esperança. “Me senti aliviada e emocionada ao mesmo tempo. Foi bom, desabafei, encontrei outras pessoas com o mesmo sentimento. Foi um espaço para desabafar e também para encontrar o conforto com outras mulheres, a gente teve mais informações, conseguimos entender mais um pouco do que está acontecendo, me sinto mais forte, aliviada”, contou Valderis Soares da Silva, atingida de Pinheiros.

“Senti que podia confiar, me senti à vontade, que podia confiar nas pessoas que estavam ouvindo o que eu estava falando, que ia ser resolvido meu problema, igual a todo mundo que está esperando. Eu senti aliviada, esta luta não é só minha e a gente ouvindo os problemas de mais pessoas a gente fica mais comovida em querer ajudar e está sempre presente na luta que a gente está vivendo”, contou Sandra Maria.
Para a atingida de Barra Longa, Simone Silva, convidada do Seminário temático, o encontro foi riquíssimo e ela está voltando mais empoderada para casa: “muito mais forte para fazer a luta, pretendo me somar a luta destas mulheres, pra ajudar a elas a clamar por direito e por justiça. Eu revivi todo meu histórico de luta, todo processo de violação, de assedio, de separação da família, negativas de direito, então eu voltei lá na Simone, no dia 6 de novembro, no processo da luta, de empoderamento, de entender como é ser atingida”.

No Seminário as mulheres atingidas também refletiram sobre a importância de se organizar e se unir, seja em uma conversa com a vizinha ou uma amiga, para tentar amenizar a dor e as angustias do dia a dia. “Vou levar muito aprendizado, muita coisa boa. Existe uma Sandra antes e uma depois do seminário. Eu estou confiante graças a Deus, e vejo que o povo que está aí é para ajudar mesmo”, expressou Sandra Maria, atingida de Lagoa das Flores.
“Eu achava que não era atingida, por ser uma meeira, mas hoje sei que sou atingida, atingida psicologicamente, familiarmente e emocionalmente. Sinto que muitas coisas vão mudar, ver todas aqui hoje me fez crescer mais, quero aprender sobre meus direitos”, relatou Shirley de Souza Ferreira, atingida de Pinheiros.

Simone Silva, atingida de Barra Longa, deixou um recado para as mulheres atingidas de Itatiaiuçu: “Força, organização e organização, porque sem organização a gente não consegue nada, a luta é coletiva. E o mais importante, seja protagonista da história, não deixe ninguém contar a nossa história, somos nós que temos que contar, temos que ser sujeitos da nossa ação, da nossa história. Que as mulheres não se sintam intimidadas por qualquer opressor, que ninguém silencie a voz delas, que elas não aceitem ser silenciadas”, expressou.
As crianças
Não só as mulheres falaram como se sentem atingidas. As crianças também tiveram seu espaço de partilha de forma lúdica contando como se sentem depois do acionamento do PAEBM em fevereiro de 2019 e o que mudou na vida delas.
Ana Clara Souza Barros, de 12 anos, disse que o encontro foi bom, que brincou muito as outras crianças presentes, mas também confessou como se sente depois do dia 8 de fevereiro: “foi triste sair de casa, não vejo mais minhas amigas como antes, não tinha preocupação. Hoje fico com medo de estourar e a lama descer.

A pequena Bianca de Souza Barros da Silva, de 10 anos, contou que quando chove é que o medo aumenta: “quando chove eu fico com medo e já deixo minha mala pronta para sair correndo”, confessou.
O Seminário
O Seminário Temático: Mulheres e Crianças foi um espaço de encontro de histórias, de angústias e também um ambiente para encontrar alento. Simone Silva, atingida de Barra Longa e Soniamara Maranho, integrante da coordenação do MAB, Movimento dos atingidos por Barragem, foram as convidadas do seminário e falaram sobre os danos à vida das mulheres atingidas por barragem, que se agravam devido às relações de opressão sustentadas pelo machismo e racismo. Destacaram também o processo de luta e de como encontrar a paz e os sonhos depois de serem arrancados de nossas vidas.
Ainda no seminário, foi realizada uma metodologia participativa, baseada na abordagem da educação popular, chamada “árvore de problemas e soluções” para trazer levantar os danos, as perdas e iniciar a construção coletiva de um processo de reparação, com possíveis soluções para cada dano e perda apontados pelas mulheres.