Maior projeto de geração compartilhada do continente vai de encontro a demandas como a geração de renda e a segurança hídrica.

Entre um eucaliptal e outro, à beira de uma lavoura de abacaxi e ao abrigo do teto de palha que protegia a todos e todas do sol intenso, uma criança acompanha atenta a reunião entre moradoras e moradores do acampamento São Francisco, comunidade geraizeira do município de Grão Mogol. Quando lhe pergunto seu nome, ele responde usando o graveto em sua mão para escrever devagar no chão de areia, letra por letra, o nome “Kaio”. Em seguida completa, me olhando e dizendo: “Kaio Bernardo”. 

Ao assinar no chão, Kaio Bernardo parecia afirmar o laço de pertencimento ao território de que tanto falava a comunidade durante a reunião que se desenrolava naquele momento, entre moradores, moradoras e a equipe de pesquisa social do projeto Veredas Sol e Lares (D0632). O encontro foi uma das muitas visitas do projeto às diferentes comunidades da microrregião de Grão Mogol, com o intuito de devolver, validar e debater resultados da pesquisa social participativa que visa levantar elementos para o desenvolvimento local a partir da perspectiva das comunidades.

Kaio Bernardo, morador do acampamento São Francisco (Grão Mogol/MG), durante reunião da pesquisa social. A comunidade geraizeira reivindica o acesso à água e o reconhecimento do território tradicional.

A rodada de trabalho de campo na microrregião de Grão Mogol, que você acompanha nesta matéria,  compõe mais uma etapa importante da pesquisa para inovação em metodologias de planejamento participativo, processo no qual o projeto Veredas Sol e Lares é pioneiro. Contemplado com o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento da Aneel, o projeto Veredas Sol e Lares (D0632), tem como entidade proponente e cooperada a CEMIG, sendo executado pela Aedas, Axxiom e Cemig Sim. A iniciativa ainda conta com apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens, do Instituto Economias e Planejamento e do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), que vincula pesquisadoras populares nas universidades e comunidades para produção participativa de dados sobre o contexto socioeconômico local.

Essa visitas às comunidades, como a realizada no acampamento São Francisco, foram a última etapa de uma pequena jornada das pesquisadoras e pesquisadores populares do projeto Veredas pela microrregião de Grão Mogol. O processo se iniciara na semana anterior, no dia 2 de agosto, com a chegada para o primeiro encontro presencial da pesquisa social desde a retomada do projeto. Ao longo de 10 dias de convivência, debates e planejamento, a equipe realizou três grandes atividades: os primeiros dias foram voltados a uma formação interna a respeito do andamento da inciativa e suas próximas agendas, permitindo uma organização do calendário até o encerramento das atividades, em fevereiro de 2023. Esses dias de formação foram preparatórios para o dia 6 de agosto, quando se deu o Seminário de Pesquisa Social da microrregião de Grão Mogol, junto a moradores e moradoras dos municípios de Josenópolis, Grão Mogol e Padre Carvalho.

Após esse seminário, em que as lideranças se atualizaram a fundo sobre o Veredas Sol e Lares (D0632) e os resultados parciais da pesquisa social, as equipes seguiram para as visitas aos territórios. Com o corpo em campo e os olhos atentos, os profissionais experienciaram um pouco da concretude dos dados levantados ao longo da pesquisa: as paisagens tomadas pelo eucalipto, a seca de rios, as estradas tomadas por caminhões e as comunidades atentas na defesa de seus territórios.

Formação da equipe

Registro da formação de pesquisadores e pesquisadoras populares, que reuniu bolsistas de iniciação científica, pesquisadores populares das comunidades, pós graduandas, professoras universitárias e coordenação pedagógica do projeto

Os primeiros abraços da chegada já eram carregados de vínculo: depois de meses de trabalho à distância espalhado por diferentes municípios, muitas das pessoas ali já vinham compartilhando tarefas e se conheciam pelo trabalho intenso dos espaços online, mas pela primeira vez dividiam um momento presencial com todos e todas colegas. A formação da Coordenação de Pesquisa ampliada foi o primeiro encontro geral desde a retomada do Veredas Sol e Lares e reuniu 30 pessoas entre as assessorias da Aedas, equipes do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, pesquisadores populares organizados nos territórios e parceiros como a Associação de Desenvolvimento Agrícola Interestadual (ADAI). Na pequena chácara Santo Antônio na cidade de Grão Mogol, os dias que se seguiram foram de compartilhamento entre as diferentes frentes do projeto, através de metodologias de planejamento coletivo que costuraram o debate entre pessoas de diversos contextos. O objetivo era realizar a formação do grupo que iria “irradiar a escuta e a construção para os 21 municípios beneficiados pelo Veredas”, como afirmou, na abertura do encontro, Cazu Shikashu, coordenador do projeto pela Aedas.

Os 4 dias de diálogo buscaram uma contextualização qualificada sobre a construção do maior projeto de geração compartilhada de energia da América Latina, segundo atesta Emiliano Maldonado Bravo, representante da ADAI. Em sua contribuição, o doutor em Direito, Política e Sociedade pela UFSC salientou a dimensão do projeto e seu pioneirismo em voltar os recursos da Pesquisa e Desenvolvimento para uma iniciativa vinculada aos interesses de pessoas e regiões mais pobres. Segundo o pesquisador, “O que as pesquisas em geral e a pesquisa social do Veredas têm mostrado é que a energia por geração distribuída não está indo para as famílias mais pobres, para a grande maioria da população, e sim para os grandes consumidores. Outra coisa que se percebe é que a Pesquisa e Desenvolvimento não chega pra essa mesma população, e acaba se concentrando nas grandes concessionárias. Quantos projetos de pesquisa e desenvolvimento na área de energia chegaram até o Vale do Jequitinhonha? Esse é um potencial do Veredas, pegar o P&D e colocar a serviço das populações mais pobres”

O objetivo de contribuir com o desenvolvimento local através do abatimento nas contas de energia e da gestão comunitária da geração distribuída costurou todas as atividades de planejamento do projeto, que tem no horizonte imediato algumas tarefas importantes: a construção dos critérios de inclusão das famílias; a elaboração do estudo de viabilidade econômica da Usina e a mobilização comunitária para construção da associação que irá gerir geração distribuída.

Os passos para elaboração dos critérios de inclusão das famílias estão sendo dados junto aos estudos da pesquisa social, que já tem como produto um diagnóstico da condição socioeconômica da Microrregião de Grão Mogol. Os espaços participativos também contam para o entendimento, a partir do olhar das comunidades, de como a usina pode contribuir para a geração de renda das economias locais, apontando assim prioridades para os usos e distribuição da energia. Sendo assim, já foram apontados alguns elementos e princípios para inclusão de beneficiários, embora as discussões estejam ainda em aberto. Enquanto princípio geral, foi apresentada a importância de tratar a seleção de forma inclusiva, e não excludente: ou seja, não trabalhar com critérios rígidos de enquadramento aplicados para excluir pessoas, e sim aplicá-los para inclusão. Foi apresentado que o benefício deve observar critérios de gênero, reconhecendo a importância de se construir a autonomia das mulheres e a histórica responsabilização das mesmas pela garantia da reprodução diária das famílias, assinalando também a relevância de se construir condições para a participação das mulheres na associação. A participação na associação, de maneira representativa ou direta, também foi elencada como um princípio de enquadramento, além do critério social, garantindo prioridade para famílias trabalhadoras rurais e urbanas. Segundo Emiliano, isso não significa que não possa haver parcerias com pequenos comércios e outros empreendimentos que garantam a sustentabilidade do projeto, abarcando associados contribuintes, sempre observando o princípio da inclusão e de se assegurar o acesso das famílias trabalhadoras.

Essas questões também incorreram na discussão sobre a viabilidade econômica e financeira da usina, facilitada por Tomás Balduíno, do Instituto Economias e Planejamento. O pesquisador, doutorando do Centro de Planejamento Regional da UFMG, apresentou conceitos envolvidos no estudo de viabilidade, afirmando que será feito um estudo de impacto para analisar efeitos diretos e indiretos da usina sobre a economia local. Segundo a contribuição do instituto, analisar a viabilidade de uma iniciativa de interesse social passa, também, por avaliar os efeitos multiplicadores do empreendimento sobre a geração e distribuição de renda e desenvolvimento humano nas localidades. Por isso, o Instituto Economias e Planejamento realiza um levantamento, com base em dados secundários, sobre o perfil socioeconômico da região. Segundo dados do CAD único apresentados por Tomás, entre os municípios beneficiados pelo projeto Veredas há uma predominância de famílias dedicadas à agricultura familiar e moradoras de territórios tradicionais geraizeiros e quilombolas.

“No Vale do Jequitinhonha existem todas essas diferentes formas de economia, como sistemas de uso comum da água e da terra, laços de reciprocidade, as próprias feiras livres, que as economias de mercado colocam no bojo da categoria informal, mas que na verdade são economias altamente diversificadas e que podem ter uma dinâmica própria de desenvolvimento. É possível pensar em como a usina pode beneficiar esses circuitos”.

Thomás Balduíno, analista do Instituto Economias e Planejamento, responsável pelo estudo de viabilidade da geração distribuída a partir do interesse social.
Os pesquisadores e pesquisadoras populares dialogaram com a apresentação do Instituto Economias e Planejamento, responsável pelo estudo de viabilidade econômica do modelo de geração distribuída proposto pelo projeto Veredas Sol e Lares

Assegurar que a usina estimule as potências locais de desenvolvimento e geração de renda é um dos propósitos da metodologia participativa de planejamento, que visa trazer as vozes historicamente alijadas dos espaços de elaboração. O envolvimento progressivo das comunidades irá resultar na criação da maior associação familiar do Brasil, composta pelas pessoas das unidades consumidoras beneficiadas pela geração de energia da usina. Ao todo, as 1250 famílias estarão associadas e terão participação nas decisões relativas à geração distribuída.

Seminário Revelações

O dia 06 de agosto era o momento mais esperado desde os dias anteriores. Desde muito cedo a equipe inicia o a preparação do espaço para acolher as 80 pessoas que participaram do Seminário Revelações, vindas de 30 comunidades da região, além dos pesquisadores vindos de diversas cidades do Vale do Jequitinhonha, outras regiões de Minas Gerais e até mesmo de outros estados do Brasil.

Durante toda a manhã e a tarde, as comunidades realizaram uma imersão no processo de execução do Veredas, relembrando seu histórico e os próximos passos para que se apropriassem do projeto que é patrimônio das comunidades da região. Através de diversas metodologias da educação popular, puderam se informar sobre como a geração da usina solar fotovoltaica flutuante será convertida em abatimentos nas contas de energia das unidades consumidoras beneficiárias, além de também se informarem sobre direitos já assegurados na legislação, como as tarifas social e rural de energia elétrica. O momento de escuta e debate também serviu para levantar e reafirmar demandas que despontam no diagnóstico social, como o caso das famílias geraizeiras cujas terras estão no perímetro do Parque Estadual de Grão Mogol, estabelecido em 1998 como contrapartida pela construção da usina de irapé, em 2006. As famílias reivindicam o reconhecimento de seu papel na conservação das águas na região a partir do manejo sustentável da terra e relatam problemas como os cerceamentos a seu trabalho produtivo, a falta de acesso à energia e a ausência de abertura para uma negociação favorável de reassentamento e indenização pela criação do parque.

Esse tipo de relato, que vem sendo colhido em espaços participativos desde o início dos trabalhos da pesquisa social, acumulou para uma série de sistematizações realizadas em parceria com o Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, construindo documentos que contribuem para pensar o desenvolvimento local a partir da realidade vivida e percebida pelas comunidades. Uma constelação de técnicas e metodologias que foram aplicadas entre 2018 e 2020 permitiram o levantamento de dados e a sistematização das visões e demandas de cada território, como um contraponto a outros empreendimentos vindos de fora e sem apelo para a promoção do desenvolvimento humano local. Segundo apresentado pelas pesquisadoras Lauanda Lopes, Alexandra Martins, Naelly Gorci e Miele Ribeiro, a série de metodologias que compõem o Marco Lógico são baseadas na  educação popular freiriana, que preza por uma formação integral de todas as potencialidades humanas e valoriza o saber e potencial crítico do educando. As comunidades puderam se inteirar de toda essa trajetória de estudo participativo através do vídeo produzido pela assessoria da Aedas:

Um dos momentos marcantes do seminário foi a entrega de um produto desse estudo: as cartilhas que apresentam problemas e objetivos de cada uma de 13 comunidades já integradas à pesquisa social desde 2018. Munidas desse material, que resume de forma lúdica e acessível resultados parciais da pesquisa, as pessoas podem se apoiar para construir pautas junto a associações comunitárias e fortalecer suas perspectivas locais de desenvolvimento.  O material serviu de apoio para o momento seguinte, em que as as pessoas presentes se reuniram por município – Josenópolis, Grão Mogol e Padre Carvalho – para compartilhar impressões e organizar agendas de trabalho do projeto nas comunidades.

“Transformar luz em água” – a visita aos territórios

“É mais que dar um desconto na conta de luz. Com essa pesquisa do Veredas, foi produzido um diagnóstico que pode ajudar na construção de um plano de desenvolvimento regional. E o objetivo, no final, é transformar luz em água”.

A frase foi dita por Carmem Gouveia, geraizeira do Vale das Cancelas em uma das reuniões do Veredas nas comunidades. Após o seminário, as pesquisadoras e os pesquisadores populares rodaram a região em encontros com 12 comunidades dos municípios de Josenópolis, Grão Mogol e Padre Carvalho para validar resultados parciais da pesquisa social, debater sobre o processo de associação das famílias e informar sobre os próximos passos do projeto.

A alquimia de “transformar luz em água” pode soar estranha e improvável, mas sintetiza a importância do processo participativo no P&D e no planejamento. Ao longo de diversas reuniões nos territórios, as demandas por água, território e energia despontaram repetidamente nos relatos de diferentes vozes das 12 comunidades visitadas: “Nem lambari nasce no rio mais. Tá tudo envenenado. Esse veneno que eles usam no eucalipto, que nem mato nasce no meio dos eucaliptos, desce pro rio e nada mais nasce” – disse Josevaldo, da comunidade de Recanto Feliz, de Josenópolis.

Os relatos levantados e as sistematizações realizadas na pesquisa social associam a escassez hídrica vivenciada pelas comunidades à chegada de grandes empreendimentos de capital externo e intensivos no uso de água, como a monocultura de eucalipto e pinus. A supressão do modo de vida geraizeiro, cujo manejo sustentável das chapadas ajuda a conservar os recursos hídricos da região, aparece associada a processos históricos de grilagem de terras e predação do meio ambiente por grandes empreendimentos. “Esse projeto é uma ponta de esperança pra gente que vive no meio desses outros projetos que vieram de fora, essas firmas de eucalipto e minério. Chamaram a gente de atrasado, de miserável, e trouxeram essas empresas pra cá. Mas elas não trouxeram o tal do desenvolvimento, vieram tomando as terras, acabando com a água, desmontando a cultura dos geraizeiros. Então eu acho que o jeito de solucionar isso é trazendo a participação do povo.”, diz Nemzão, geraizeiro morador do Vale das Cancelas. Já Sâmia, jovem moradora do Vale das Cancelas, acrescenta sobre a vida das juventudes nesse contexto: “As empresas prometem tudo. Prometem emprego, renda, desenvolvimento, mas o que teve foi impacto ambiental. E agora eles estão indo embora e tá todo mundo reclamando, com medo da queda do emprego. E a mineração promete emprego, mas os jovens daqui não têm essa qualificação. Como é que as pessoas vão trabalhar pra essas empresas?”. A relação do projeto Veredas nesse contexto está ligada à perspectiva popular do desenvolvimento local: Ao priorizar a distribuição de energia para famílias e para usos produtivos ligados à agricultura familiar e outros sistemas econômicos ligados à reprodução da vida, o projeto Veredas propõe uma reversão nas prioridades do desenvolvimento, colocando no centro a vida das comunidades integrada ao meio ambiente.

Esse momento de reencontro da pesquisa social com a comunidade foi marcado por relatos de novos episódios de antigos conflitos. No caso do acampamento São Francisco, lar de Kaio Bernardo, a comunidade segue na luta pela demarcação do território tradicional e contra o processo de grilagem de terras que avança contra o modo de vida geraizeiro. Entre os novos eventos registrados pelas pesquisadoras no momento da reunião, estava o incêndio do centro comunitário do acampamento no dia 4 de outubro de 2021 – dia de São Francisco de Assis. Isso ilustra e alerta para a importância de repensar o processo de desenvolvimento local e visibilizar as demandas do povo da região, processo com o qual a pesquisa social busca contribuir. O objetivo, assim, é apoiar a efetivação de direitos, sempre partindo da autonomia e protagonismo das comunidades.

Reunião da pesquisa social no acampamento São Francisco, em Grão Mogol/MG

Kaio Bernardo, ao escrever seu nome no chão, desenhou também na areia uma flor sob um sol sorridente. Usou a superfície do chão onde vive para falar do que resiste, do que floresce, do que ousa nascer – tal qual sua comunidade que, mesmo sob diversas ameaças a seu modo de vida, ousa participar da maior experiência de geração compartilhada da América Latina, da maior associação do Brasil, da certeza de que os Vales do Jequitinhonha e Rio Pardo valem as lutas de suas comunidades. O desenho e a assinatura de Kaio, de alguma forma, lembra de como aquele pedaço de chão é um lugar onde um povo floresce e se cria – não seria essa uma das definições possíveis da palavra território?

Fotografia: Comunicação Aedas/Veredas Sol e Lares

O projeto Veredas Sol e Lares (D0632) é realizado via Programa de Pesquisa e Desenvolvimento da ANEEL. A entidade proponente e cooperada é CEMIG e sua execução é realizada pela AEDAS, pela CEMIG Sim e pela PUC Minas. A iniciativa ainda conta com as parcerias do Movimento dos Atingidos por Barragens e do Observatório dos Vales e do Semiarido Mineiro, da UFVJM.