Rodas de Diálogo reforçam lugar de protagonismo das pessoas atingidas na luta por reparação
Espaços de participação popular contaram com troca de informações sobre propostas de reparação de danos comuns na Bacia do Rio Doce, diálogos sobre o acordo de repactuação e tira-dúvidas sobre situação dos territórios atingidos

De 11 a 14 de dezembro, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) realizou 17 espaços participativos entre o Vale do Aço e Leste de Minas. Este é o terceiro ciclo das Rodas de Diálogo da Aedas e teve como foco dialogar sobre as propostas para reparação dos danos comuns à bacia do Rio Doce, atualizar informações sobre as movimentações do acordo de Repactuação, além de tirar dúvidas da população sobre situação dos territórios atingidos e garantir a entrega das cartilhas da reparação.
Nas rodas de diálogo, todas as informações são apresentadas de forma didática, com objetivo de garantir o total entendimento e o empoderamento da população que reivindica direitos e participação de forma qualificada no processo de reparação. Um exemplo é a linha do tempo construída com o passo a passo dos desdobramentos que envolvem o processo de reparação na Bacia do Médio Rio Doce. “A assessoria começou a sistematizar as propostas que vieram dos territórios para apresentar as demandas da população na Repactuação, levando as informações para as Instituições de Justiça na busca para que sejam consideradas.”, explica Leonardo Custódio, advogado e assessor técnico da equipe de Diretrizes de Reparação Integral (DRI).
Esse trabalho na sistematização de dados, que apontam como os danos do rompimento da barragem persiste na vida das pessoas atingidas mesmo oito anos depois, está compilado em cartilhas informativas que foram entregues à população. Um material que continuará chegando à população em 2024 para garantia da informação qualificada das pessoas atingidas, um direito de todos.
Andreza dos Santos, assessora técnica da área de Saúde e Serviços Socioassistenciais da Aedas, acrescenta que as oito propostas de reparação sistematizadas de forma aprofundada nesses materiais pedagógicos, foram extraídas de informações colhidas no território através do Registro Familiar, e também baseadas em estudos técnicos. “Defendemos propostas baseadas em realidades que existem, como por exemplo a criação do Programa de Transferência de Renda na Bacia do Rio Doce, o “Rio Doce Sem Fome”, baseado em um modelo realizado para os atingidos na Bacia do Paraopeba, em Brumadinho”, explicou a assessora.
Povos e comunidades tradicionais no diálogo por representatividade

As Rodas de Diálogo tiveram início em 11 de setembro, no Quilombo do Córrego 14, distrito de Naque, recebendo o Quilombo Ilha Funda, distrito de Periquito. Duas comunidades quilombolas tradicionais, buscando informações sobre direitos e trocando experiências sobre suas lutas, onde cerca de 40 pessoas participaram do espaço.
Para Mayara Costa, coordenadora da equipe de Raça e Gênero da Aedas, um dos aspectos que se destacou no espaço é a sensação de segurança que as pessoas de comunidades tradicionais atingidas apresentaram por estarem reunidas. “As próprias pessoas conseguiram e se sentiram mais instigadas a falar, a debater, a trazer as experiências e vivências que possuem enquanto pessoas negras, e enquanto pessoas tradicionais, por serem ambos quilombolas dentro desse espaço. As comunidades têm essas similaridades, inclusive nos danos sofridos pelo rompimento”, recorda.

Outro aspecto deste cenário foi vivenciado em Cachoeira Escura, distrito de Belo Oriente, onde o espaço contou com a presença de um número expressivo de pessoas atingidas, sinalizando uma resposta positiva ao trabalho desenvolvido pela Aedas no território. A iminência da Repactuação também foi apontada como um fator motivador para a participação ativa da comunidade. Além disso, a atenção e envolvimento das pessoas presentes deu o tom da roda, mostrando que, a cada relato compartilhado, os presentes reconheciam-se nas histórias e dores vividas.
A participação de povos e comunidades tradicionais, como o Quilombo Esperança, de Belo Oriente, e Achado dos Pretos de Santana do Paraíso, mostra que os danos comuns atravessaram de forma extrema as diferentes formas de existir e lidar com o meio ambiente.

Foto: Esdras Cordeiro
É dessa forma que as rodas de diálogo promovem não apenas a troca de informações, mas também estimulam a coesão entre as comunidades atingidas, fortalecendo a voz coletiva na busca por soluções e reparação socioeconômica e ambiental.
Pescadores lutam por garantias de direitos

No Leste de Minas, a Roda de Diálogos no município de Conselheiro Pena mobilizou cerca de 50 pescadores, no dia 12 de dezembro. A categoria segue revivendo danos deixados pelo rompimento da barragem de Fundão. Sem acesso ao rio e indenizações insuficientes, o coro encorpado no espaço de participação é pela garantia de direitos.
“O nosso Rio Doce tá morto. Não tem mais peixe. Tá cheio de metal pesado nele. Depois das enchentes, apareceram vários casos de doenças graves. Além disso, não somos reconhecidos e não recebemos nem AFE e nem aposentadoria. Nossas mulheres estão sobrecarregadas com atividades que não precisavam fazer antes de matarem o nosso [rio] Doce. Não podemos pescar, não podemos vender o peixe, não podemos comer o peixe. Não podemos nada. Não temos mais nada. Nós queremos o reconhecimento dos pescadores e queremos o direito à aposentadoria”, cobrou Virgílio Catarino Pinto, pescador de Conselheiro Pena.

No último dia de Rodas de Diálogo, no dia 14 de dezembro, no distrito de Plautino Soares, em Sobrália, foi possível constatar que o dano à renda anda de mãos dadas com a desconfiança da água do rio. Muitos pescadores deixaram de pescar ou temem comer a própria pesca com medo de contaminação. Além disso, quem ainda tenta vender peixe, sempre é questionado sobre a origem do animal para conseguir concretizar alguma venda.
“A gente sentiu, então não vou poder pescar mais, né? Esse sentimento de não poder pescar mais, continua até hoje. Porque a gente fica com aquele medo de pescar e os peixes tá contaminado de minério. A gente fica com medo, né? Então a gente não compra não. Quando as pessoas chegam na porta da gente vendendo, uma vez por outra, se aparecer vendendo, eu não tenho confiança. A primeira coisa que eu pergunto: é lá do rio?”, justifica dona Maria Viena, atingida de Plautino Soares, que pescava com a família tanto para consumo, quanto para o lazer.
Indenizações

Com fala serena e convicta, José Vidal, morador de São Sebastião do Bastio, distrito do município de Periquito, se colocou à frente de cerca de 60 pessoas, na noite da última terça-feira (12), e afirmou: “levaram meus direitos, e eu quero eles de volta!”. A fala de compromisso com o empenho de lutar pelo retorno de direitos aconteceu durante a realização da Roda de Diálogos no município de Periquito, e se refere a tudo que ele e sua comunidade perderam após o rompimento da barragem de Fundão, em 2015, de responsabilidade das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton.
Em Itueta (MG), as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão estiveram reunidas na noite da última quarta-feira (13), no auditório da sede da Prefeitura do município, debatendo sobre as propostas de reparação e exigindo celeridade na reparação após 8 anos do desastre-crime que destruiu o Rio Doce.

“Mais de 8 anos já se passaram e até o momento ainda não fomos reparados na totalidade. Não recebemos a indenização que acreditamos ser justa. Eles [representantes da Samarco] vieram aqui logo após o desastre e depois colocaram essa Renova aí. Não adiantou quase nada.”, desabafa Isac Pereira, pescador e líder comunitário.
As indenizações referentes à falta de água no momento do rompimento da barragem de Fundão também foram pontuadas como insuficientes pelos presentes – que passam atualmente por problemas no abastecimento de água na sede de Itueta. A frequente falta de água no município gera insegurança e relembra a morte do rio. “Sofremos com a falta de água quando a barragem rompeu e estamos sofrendo agora, novamente. E não podemos nem recorrer ao rio Doce. A Vale não deixou nada em Itueta. Não gerou sequer empregos. Só tá enganando o povo.”, pontua Renem Ramesia, comerciante e moradora atingida.

Em Santo Antônio do Rio Doce, distrito de Aimorés, as pessoas atingidas debateram sobre os danos sofridos por enchentes, a necessidade de indenizações para todos os moradores e a reabertura de sistema da Renova para amplo cadastramento das pessoas atingidas da Bacia do Rio Doce.
“Tão importante quanto o valor da indenização é termos água limpa. Ter água limpa novamente não tem preço. Eu espero que a situação se resolva para que a gente não precise mais da necessidade dos caminhões de água porque, querendo ou não, é um desgaste muito grande para a sociedade. Quero que a gente tenha uma indenização por esse tempo que a gente ficou sem água, igual para cada pessoa e não por núcleo familiar ou por maiores de idade. Crianças e os jovens também foram atingidos.”, afirmou Alice, jovem atingida de Aimorés.
Ribeirinhos na busca por justiça e auxílio financeiro

A população de São Lourenço, distrito de Bugre, localizado no Vale do Aço, é um exemplo de que nem mesmo as comunidades banhadas diretamente pelo Rio Doce tiveram acesso a uma indenização justa. A Roda de Diálogo (RD) neste distrito, realizada na noite da última quarta-feira (13), mostrou que as pessoas ainda têm muito a dizer sobre os danos que sofreram e ainda sofrem, em decorrência de um dos maiores desastres-crime do Brasil.
“Aqui nós somos uns 200 atingidos. Nós todos fomos prejudicados, por que só 12 pessoas aqui dentro tiveram direito ao cartão? Todo mês recebe e nós perdeu do mesmo jeito, talvez até mais e não teve esse direito, por quê? Agora eu quero ver quem pode dar o direito pra mim e pro outro não pode. Ou desse em geral ou pra ninguém”, disse João Machado da Silva, atingido de São Lourenço, durante a Roda de Diálogo.
Assim como o Sr. João, muito moradores não receberam o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), outros poucos receberam indenização, mas tiveram valores indevidamente descontados. Como é o caso da pescadora, também de São Lourenço, Lucimar de Fátima.
“Eles foram pra me pagar, me deu 4.565 reais de valor por causa das minhas criações que morreram, aí quando eles foram me pagar o valor de 83, eles descontaram os 4.565 reais. Veio na folha descontando eu tenho lá em casa isso. Veio descontando. Por que que eles viram que o direito era meu, eles me deu um pouquinho de dinheiro pagando e agora, na minha indenização, descontou? Que sacanagem é essa? Eu achei errado”, explicou Lucimar.

A RD de Plautino Soares, realizada na tarde da última quinta-feira (14), contou também com a presença das pessoas atingidas de Senhora da Pena, distrito de Fernandes Tourinho. Na oportunidade, muitas pessoas atingidas relataram, assim como em São Lourenço, problemas com relação ao AFE. Alguns se cadastraram para receber o benefício somente agora, quase oito anos depois do rompimento, e ainda assim enfrentam problemas para ter acesso.
“Tá com mais de mês que vieram na minha casa pegar umas assinaturas dizendo que iam me mandar um cartão, só me deram um comprovante, mas nunca chegou”, manifestou dona Maria do Rosário, de Plautino Soares, durante a RD.
Saúde da população atingida
A saúde em São Lourenço é outro ponto que incomoda bastante a população. Eles relatam que depois do rompimento da barragem, em 2015, várias doenças passaram a ser mais recorrente no distrito.
“Depois que eu passei a tomar água, a gente vê que essa água tá contaminada, porque todos os exames que eu faço, dá alteração. Aí eu fiz quinta-feira uma endoscopia e deu bactéria no estômago. Tá bastante avançada. A gente não tá encontrando médico pra passar remédio pra gente tomar pra bactéria e a gente não tem assistência nenhuma”, relatou Lucimar.
Cerca de 14km dali, em Senhora da Penha, distrito de Fernandes Tourinho, também no Vale do Aço, a população vivencia problemas semelhantes com a saúde comunitária e também acreditam que os motivos sejam por questões relacionadas à qualidade da água.
“A gente não tem água de qualidade. Na verdade, a gente já não tinha uma água de qualidade, mas com o rompimento a água ficou pior. Então assim, a gente tá sem água, é uma água que a gente não sabe da onde tá vindo agora, que eles tão levando com um caminhão pipa, mas tão levando de muito o pessoal a reclamar. Tem muitas pessoas lá, jovens, com problemas nos rins, problema de pele, então assim, tá muito difícil, impactou muito grande, pra gente lá”, expõe a dona de casa, Margarete dos Reis, atingida de Senhora da Penha, em Fernandes Tourinho, durante a RD em Plautino Soares, Sobrália, realizada na Capela de Nossa Senhora das Graças.
De acordo com Lívea Franco, assessora técnica da Equipe de Saúde da Aedas no Médio Rio Doce e que mediou o espaço em Plautino Soares, a retomada dos diálogos com as pessoas atingidas por meio das RDs é muito importante. Segundo Lívea, muitas pessoas ainda têm dificuldade de entender os acordos, especialmente neste cenário de repactuação próxima.
“As Rodas de Diálogo com a população de Plautino Soares/Sobrália e Nossa Senhora da Penha/Fernandes Tourinho são sempre muito animadoras, pois contamos com a participação ativa do povo atingido dessas comunidades. É possível perceber a importância de retomar as discussões e o histórico do processo reparatório desde o pós-rompimento, pois as pessoas ainda têm dificuldade de entender como se desenharam todos os acordos, ou mesmo os Programas, que culminaram na iminente Repactuação. Dito isso, também é imprescindível destacar a vontade do povo de participar dos processos decisórios da reparação integral”, refletiu.
Texto: Carmen Kemoly, Glenda Uchôa, Mariana Duarte e Thiago Matos – Equipe de Comunicação Médio Rio Doce