As propostas foram construídas a partir de vivências populares e são cobradas pelos atingidos e atingidas dentro das discussões da repactuação, medida prevista pelo TAC Governança
As atividades reuniram cerca de 900 pessoas ao longo da Bacia do Médio Rio Doce – Foto: Cleiton Santos/Aedas

Para pensar e discutir propostas de reparação aos danos comuns à bacia do Rio Doce, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) reuniu, entre os dias 14 e 19, nos territórios do Vale do Aço (MG) e Leste de Minas (MG), pessoas atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão, em mais uma série de espaços participativos da instituição: as Rodas de Diálogos (RDs). 

Os espaços aconteceram com objetivo de discutir e avaliar oito pontos de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, de responsabilidade das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton. As propostas foram construídas a partir de anseios da população atingida e lideranças organizadas ao longo dos anos do rompimento. 

Em março de 2022, é organizada uma carta pública com essas demandas e apresentada em Governador Valadares. A partir dali, são propostas cobradas pelos atingidos e atingidas dentro das discussões da repactuação, medida prevista pelo TAC Governança, um instrumento extrajudicial de solução alternativa de conflitos, estabelecido em 2018, com objetivo de executar as demandas judiciais propostas no caso Samarco.  

Com a presença do corpo técnico e jurídico da Aedas, as Rodas de Diálogos servem como espaços onde essas propostas são revisitadas, debatidas e alteradas de acordo com as demandas populares. 

Justiça é participação popular

Na última quinta-feira, 14, as RDs foram abertas de forma simultânea em três territórios: na sede do município de Periquito, no distrito de Pedra Corrida e em Santo Antônio do Rio Doce, distrito de Aimorés. Nos dois dias seguintes, os municípios de Iapu, Fernandes Tourinho, Caratinga, Resplendor, Itueta e Conselheiro Pena também receberam os espaços, totalizando cerca de 900 pessoas presentes nas atividades ao longo da Bacia do Médio Rio Doce. 
 
Anael Lima observava atento às propostas de reparação apresentadas pelos técnicos da Aedas no distrito de São Sebastião da Barra, município de Iapu. Uma delas, em especial, chamou atenção do pescador: a participação informada e o direito à governança popular.  

Anael Lima, de chapéu de palha no canto esquerdo da foto, atento às propostas de reparação – Foto: Cleiton Santos/Aedas

É que, por mais de 50 anos, foi o Rio Doce a base de garantia de renda dele e da família através da pesca. Com o rompimento da barragem de Fundão em 2015, Anael perdeu o contato efetivo com o rio, a renda que conseguia através dele e não viu chegar informações sobre seus direitos enquanto pessoa atingida. Na localidade, muitos moradores sentem-se esquecidos pelas ações de reparação de danos pós-rompimento. 
 
“Nós fizemos o cadastro lá na Renova. Fizemos e ‘tão’ pra lá. Até hoje não deu solução de nada. Eu perdi e tô perdendo desde o rompimento. A gente não pode pescar porque o peixe dá problema. Eu tinha uma saúde tremenda e, agora, tem que ficar indo no médico”, relata em tom de tristeza. 

Importante destacar que, no final de agosto de 2023, a Aedas intensificou o estreitamento de laços da Assessoria com o município de Iapu e vem realizando apresentações do seu Plano de Trabalho na cidade, bem como foi bem recebida na aplicação do Registro Familiar. 

As oito pautas discutidas nas RDS passam por critérios como o reconhecimento do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) para pessoas que não conseguiram acesso, retorno do AFE para quem assinou o Novel, indenizações, equiparação entre PIM Água e Novel Água, consolidação de programa de transferência de renda, criação de fundo popular para projetos comunitários de reativação econômica, fundo para enchentes inundações e alagamentos; e, claro, a participação informada. 

Mayara Costa, advogada e coordenadora da equipe de Raça e Gênero da Aedas, destaca a importância estratégica da atividade para a garantia de um processo de reparação justo. “Nas rodas de diálogo, a gente acompanha as falas das pessoas e faz o registro (através de relatorias) para que nossa equipe possa sistematizar as demandas do povo de forma técnica. O que as pessoas falam que existe, deve ser analisado de forma técnica, científica, para ser dialogado e encaminhado às instituições de justiça, ao poder público e em qualquer outra instância onde o direito das pessoas atingidas esteja sendo debatido e construído”, lembra. 

Mayara Costa, coord. de Raça e Gênero –
Foto: Jeysi Gomes/Aedas
Pessoas atingidas no debate das propostas –
Foto: Jeysi Gomes/Aedas

Na Ilha do Rio Doce, município de Caratinga, local em que as enchentes causam danos recorrentes aos moradores e às propriedades, o aposentado Cornélio Rodrigues não precisa andar muito para encontrar o Rio Doce. O fluxo do rio, um dos principais da Bacia Hidrográfica de Minas Gerais, corre próximo a sua casa, no quintal do lar onde construiu a própria vida. A proximidade com o manancial encanta e assusta. 

“Quem utilizava a água para a irrigação não pode mais, quem pescava não pesca mais, e ninguém acredita que essa água não está contaminada, porque o laudo quem faz são eles. Antes do rompimento, a gente ficou a ter nove anos sem enchentes, agora, elas são maiores e mais frequentes. Em 2020 para 2021 teve uma muito grande e, em 2022, subiu mais de 90 centímetros a água do que no ano anterior, teve local na ilha que chegou a três metros de altura com água”, exemplifica as consequências dos danos recorrentes enfrentado pelos moradores. 

Leste de Minas debate propostas 

No Leste de Minas, a Aedas realizou espaços nos quatro municípios que assessora: Aimorés, Resplendor, Itueta e Conselheiro Pena. Em Santo Antônio do Rio Doce, distrito de Aimorés, os diálogos foram acalorados e a população atingida pôde tirar suas dúvidas em relação à necessidade de um Programa de Transferência de Renda e maneiras possíveis de administrá-lo, bem como reivindicaram abertamente a urgência de uma comunicação acessível que leve em consideração as complexidades da estrutura de governança do caso Rio Doce. 

Eliana Brito, secretária da Comissão de Atingidas e Atingidos da localidade, apontou que “o desastre de Mariana veio matando todo o rio Doce” no momento do rompimento da barragem de Fundão. “Ficamos sem água e ainda hoje a gente corre atrás da reparação ao dano água. Não fomos nós que jogamos a lama no Rio Doce, não fomos nós que arrebentamos a barragem. Essa lama caiu no nosso rio e matou o nosso rio. Nós queremos nosso direito à água. Já passou da hora dessas empresas assassinas reconhecerem o crime que elas cometeram”, desabafa. 

Em Santo Antônio do Rio Doce, distrito de Aimorés, os diálogos foram acalorados – Foto: Mariana Duarte/Aedas

Natanael Nogueira, assessor técnico da equipe de Economia, Trabalho e Renda das áreas temáticas da Aedas, classificou a roda de diálogos de Santo Antônio do Rio Doce como um importante espaço de escuta. “A população atingida compreende a importância da construção coletiva das propostas para uma reparação justa na bacia do Rio Doce”, afirmou. 

Para ele, deve-se olhar com sensibilidade para as questões relacionadas à transferência de renda. “É preciso pensar um programa de transferência de renda com critérios amplos de elegibilidade para ampliar e superar as insuficiências do AFE (Auxílio Financeiro Emergencial)”, pontua Natanael. 

No Patronato, importante centro comunitário para os atingidos do município de Resplendor, a roda de discussão aconteceu com forte participação social. O debate sobre indenizações, poluição do rio e o desabastecimento de água no período do rompimento foram predominantes durante todo o evento. “Por ser um município ribeirinho, o dano água é uma particularidade muito posta aqui no município de Resplendor”, afirma a atingida Deuzimar Nepomuceno. 

Questões referentes às indenizações envolvendo o PIM água, o sistema NOVEL e o Auxílio Financeiro Emergencial também foram debatidas pelos atingidos. “Muita gente ainda não foi indenizada”, reforça Francisco Ribeiro, pescador profissional há 17 anos que teve o pedido por auxílios negados. 

Na sede de Itueta, território duplamente atingido, primeiro pela construção da barragem de Aimorés e depois pelo rompimento da barragem de Fundão, a defesa pela participação popular foi tida como prioridade pelos participantes da Roda de Diálogos. Isac Pereira, pescador e líder comunitário, defendeu que os recursos da reparação aos danos coletivos não sejam destinados de forma direta às gestões públicas. O pescador defende que os recursos sejam geridos por um fundo com participação e controle social. 

Isac defendeu, ainda, a ampliação dos critérios de elegibilidade para recebimento de indenizações e a possibilidade de novas famílias realizarem seus cadastros para serem indenizados. 

Em Conselheiro Pena, a roda de diálogo contou com a presença de mais de 120 pessoas atingidas. Produtores rurais, pescadores, areeiros, carroceiros e diversas outras categorias debateram e participaram da construção de propostas de reparação coletivas no pátio da escola Tiradentes e destacaram que indenizações e aposentadorias estão sendo negadas. 

Para Eniel Gomes, atingido que vivia exclusivamente da pesca, todos os pescadores e ribeirinhos da região foram e ainda estão sendo prejudicados pelo rompimento da barragem de Fundão. “Eles tiraram o sustento, o direito de viver e o direito adquirido de aposentar. O INSS não quer mais receber o imposto dos pescadores [da nossa região]. Teve pedido de aposentadoria negado! Mandaram para o Ministério Público, mas não tem resposta nenhuma. Não são reconhecidos em categoria nenhuma”, desabafa o pescador. 

Mais participação 

Os espaços participativos da Aedas seguirão acontecendo em todos os territórios do Médio Rio Doce acompanhados pela ATI. Sejam nas Rodas de Diálogos ou nos Grupos de Atingidos e Atingidas (GAAs), a construção de medidas de reparação justa e integral, que considere todas as ações necessárias e adequadas para reparar o dano causado pelo rompimento, só acontece a partir da participação popular. 

Texto: Equipe de Comunicação – Aedas Médio Rio Doce