Há cinco anos e sete meses, a ArcelorMittal se tornou responsável pela violação de múltiplos direitos das comunidades de Pinheiros, Lagoa das Flores e Vieiras em Itatiaiuçu (MG). Com a elevação do nível de risco da Barragem da Mina Serra Azul, a partir do dia  8 de fevereiro de 2019 ocorreu a evacuação forçada de cerca de 100 famílias da área que, na hipótese de um rompimento, seria soterrada antes que pudessem receber socorro, como ocorreu em Mariana (MG) e Brumadinho (MG).

A evacuação forçada fazia parte do Plano de Ação de Emergência de Barragem de Mineração (PAEBM) da Mina Serra Azul. Em fevereiro de 2019, a barragem de rejeitos da ArcelorMittal entrou em nível 2 de emergência e, em fevereiro de 2022, passou para o nível 3 – o mais elevado na escala da Agência Nacional de Mineração (ANM). Desde então, as comunidades atingidas têm se organizado para lutar por uma reparação integral e justa, contando, a partir de agosto de 2019, com a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social – Aedas como sua assessoria técnica independente (ATI).

A reparação a danos individuais e o TAC 1

Uma das frentes de reparação em um processo de violação de direitos de grande proporção como o caso da ArcelorMittal em Itatiaiuçu é o pagamento de indenizações justas a danos individuais sofridos pelas famílias atingidas. Essa tem sido, desde 2019, uma das grandes lutas travadas pelas comunidades atingidas pela barragem da Mina Serra Azul.

Danos ao trabalho, à renda, à saúde, à moradia, ao acesso à terra, à liberdade de ir e vir, à posse e propriedade de bens móveis e imóveis, à integridade moral e ao afeto pelo lugar: diversas esferas da vida privada foram prejudicadas e, por isso, é dever da ArcelorMittal repará-las integralmente. E isso vale não apenas para aquelas famílias que foram forçadamente removidas de suas casas, mas para todas aquelas que sofreram em suas vidas modificações negativas associadas ao acionamento do PAEBM da ArcelorMittal.

As comunidades atingidas, por meio de suas instâncias organizativas, com o assessoramento da Aedas, participaram ativamente da construção de um acordo entre agentes do Ministério Público – os quais se mostraram sensíveis à necessidade de um acordo feito com participação popular – e a ArcelorMittal. O objetivo era o estabelecimento de parâmetros indenizatórios mínimos devidos a cada família atingida. Esse acordo passou a ser conhecido na região pela sigla “TAC 1”, que significa Primeiro Termo de Acordo Complementar.

O TAC 1 levou meses para ser construído, com intensa participação das comunidades atingidas em suas instâncias participativas assessoradas pela Aedas – de modo mais intenso, da Comissão Representativa de Atingidos e Atingidas de Itatiaiuçu – e apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

O acordo foi assinado em junho de 2021, estabelecendo uma matriz de danos para a definição da indenização de cada família e, além disso, um microssistema extrajudicial de auto composição. Isso quer dizer que foi criada uma forma de resolução dos conflitos entre famílias atingidas e a ArcelorMittal sem a necessidade de dispêndio de gastos com contratação de escritórios de advocacia e ajuizamento de ações judiciais.

A sistemática do TAC 1 foi construída de modo que as famílias atingidas tiveram direito a uma equipe interdisciplinar da Aedas para o levantamento dos danos e a formulação de pretensões indenizatórias. Ou seja, com a atuação da Aedas, as famílias tiveram mais condições de saber o que perderam, quanto valia cada item perdido e qual era o valor total da dívida da ArcelorMittal.

As famílias atingidas assessoradas também tiveram direito ao apoio jurídico da Aedas em rodadas de argumentação sobre os direitos devidos e negociação de propostas indenizatórias com representantes da empresa.  Foram realizadas mais de 5.200 reuniões, das quais cerca de 37% se deram apenas entre a equipe da Aedas e as famílias atingidas e 63% com representantes da ArcelorMittal.

Os resultados do TAC 1 abrangem uma grande quantidade de elementos a serem analisados. A Aedas está preparando uma análise minuciosa e interdisciplinar, que em breve estará disponível para contribuir no entendimento do que pôde e do que não pôde ser alcançado na experiência de Itatiaiuçu. Enquanto isso, nos itens abaixo, preparamos um breve balanço preliminar com alguns dos principais números das indenizações individuais conquistadas pelas comunidades atingidas até o momento.

Quem é a ArcelorMittal?

A ArcelorMittal é uma siderúrgica que, além de transformar ferro em aço, também opera a extração de minério em minas de alguns países e ocupa hoje a posição de segunda maior produtora de aço do mundo, ficando atrás apenas da chinesa Baowu. No Brasil e na América Latina, ela é a maior produtora de aço atualmente.

Em 2023, os lucros líquidos da empresa, ou seja, o dinheiro que remunera os acionistas depois de todas as despesas, foram de cerca de 4,1 bilhões de reais. Apesar de expressivo, foi um desempenho baixo se comparado à média dos lucros bilionários acumulados pelos acionistas da empresa nos últimos 20 anos, estimados em mais de 15 bilhões de reais por ano. 

Entre as estruturas produtivas que geram lucro para essa gigante transnacional, está a Mina Serra Azul, localizada em Itatiaiuçu (MG), região metropolitana de Belo Horizonte, de onde é extraído minério de ferro há 55 anos. Por muitos anos, a produção de minério de ferro foi realizada utilizando uma barragem de rejeitos para armazenar os resíduos do processo de transformação das rochas em mercadoria.

Essa estrutura recebeu resíduos da produção de ferro até o ano de 2012. Atualmente, há nela cerca de 5 milhões de metros cúbicos de rejeitos sob a forma de lamas e areias. É essa barragem que, neste exato momento, está no mais elevado risco de colapsar, situação publicamente reconhecida pela ArcelorMittal no dia 8 de fevereiro de 2019. Caso o rompimento ocorra, a Represa Rio Manso receberia essa imensa quantidade de resíduos contaminantes, levando a uma crise de abastecimento de água para centenas de milhares ou até milhões de pessoas moradoras na região metropolitana de Belo Horizonte. Isso porque a represa em risco de contaminação pela barragem da ArcelorMittal abastece com exclusividade as populações de Mário Campos, Sarzedo, Igarapé e São Joaquim de Bicas e, além delas, abastece parcialmente as populações de Belo Horizonte, Betim, Contagem, Brumadinho, São José da Lapa, Esmeraldas, Ibirité, Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves, Vespasiano, Lagoa Santa, Matozinhos e Santa Luzia.

Quantas pessoas concluíram acordos com a ArcelorMittal sob o assessoramento da Aedas?

O TAC 1 foi assinado no dia 6 de junho de 2021. Três anos depois, a ArcelorMittal deu por encerradas as possibilidades de negociação extrajudicial de indenizações com base na sistemática que assegura às famílias atingidas o assessoramento da Aedas.

Entre junho de 2021 e junho de 2024, a Aedas atuou no cadastramento e no assessoramento de 1.145 famílias atingidas pela barragem da ArcelorMittal em Itatiaiuçu, compreendendo um total de 4.032 pessoas. Das 1.145 famílias que buscaram acesso à justiça por meio do sistema indenizatório do TAC 1, foram 936 (81,75%) as que assinaram acordo com a ArcelorMittal e 209 (18,25%) as que não assinaram.  Dentre aquelas que assinaram acordo, no entanto, muitos dos direitos por elas reivindicados foram negados por parte da ArcelorMittal.

Das 4.032 pessoas que participaram do sistema de indenização do TAC 1, foram 2.865 (71,05%) as que tiveram alguma indenização reconhecida pela ArcelorMittal. No entanto, na maior parte dos casos, os danos declarados foram reconhecidos apenas de modo parcial. Apenas 187 (4,6%) das pessoas atingidas tiveram os danos declarados integralmente reconhecidos pela ArcelorMittal.

Quanto a ArcelorMittal reconheceu dever às famílias atingidas?

As famílias atingidas assessoradas pela Aedas demandaram, a título de indenizações individuais, um total de R$ 458.109.372,23 (quatrocentos e cinquenta e oito milhões, cento e nove mil, trezentos e setenta e dois reais e vinte e três centavos).

Considerando apenas as 936 famílias que concluíram acordo com a ArcelorMittal, o total demandado foi de R$ 391.991.908,23 (trezentos e noventa e um milhões, novecentos e noventa e um mil, novecentos e oito reais e vinte e três centavos). Ao final das negociações sob a sistemática do TAC 1, a ArcelorMittal pagou um total de R$ 196.635.018,01 (cento e noventa e seis milhões, seiscentos e trinta e cinco mil, dezoito reais e um centavo). Isso significa que, considerando a totalidade das famílias atingidas assessoradas pela Aedas, a ArcelorMittal reconheceu 42,92% dos valores pleiteados a título de direitos indenizatórios individuais. Considerando apenas as 936 famílias que concluíram acordos, a proporção foi de 50,16%.

No caso dos danos à renda, 1.062 pessoas declararam ter sofrido perda de renda após o acionamento do PAEBM. Dessas, apenas 279 (26,27%) concluíram acordo. Muitas vezes sob a alegação de que as provas não eram suficientes, apenas 10,03% da soma dos valores pretendidos pelas famílias atingidas foram reconhecidos.

No caso de trabalhadoras domésticas e trabalhadores domésticos, por exemplo, aquelas e aqueles com carteira de trabalho assinada tiveram 99,85% dos danos à renda declarados reconhecidos, enquanto para atingidos e atingidas da mesma categoria, mas sem carteira de trabalho assinada, apenas 7,93% dos valores pleiteados foram reconhecidos.

A postura restritiva da ArcelorMittal em relação às provas produzidas representa uma penalização maior às famílias em situação de economia informal e, por isso, um aprofundamento de desigualdades socioeconômicas.

Em relação à desvalorização de imóveis no entorno da área evacuada e em situação de risco, a ArcelorMittal demonstrou, e segue demonstrando, uma postura mais restritiva. Apesar de diversos relatos de dificuldade ou impossibilidade de venda de imóveis por valores próximos aos praticados antes do acionamento do PAEBM, nenhuma família obteve sucesso em negociar indenização por esse tipo de perda patrimonial.

Em outros temas, os valores reconhecidos pela ArcelorMittal ficaram próximos aos pretendidos pelas famílias atingidas. É o caso dos danos a edificações e benfeitorias (75,38%), lucros cessantes provenientes de lavouras (81,48%), custo de formação de pastagem (80,82%) e deslocamento compulsório ou impedimento de acesso de morador (73,63%).

Entre outros tipos de danos em que houve um baixo índice de reconhecimento de direitos estão os danos morais relacionados a adoecimento físico ou mental ou agravamento de doença física ou mental (31,46%), o dano material pela privação do uso do imóvel (27,76%), os lucros da produção animal (8,13%) e os danos materiais causados aos animais (5,83%).

Danos morais devidos a morte, perecimento ou desaparecimento de animais foram reconhecidos apenas em 10,27% dos casos, enquanto a submissão à castração não autorizada não foi reconhecida em nenhum caso em que tal indenização foi reivindicada.

Para três dos danos morais com maior percentual de reconhecimento (“Sofrimento psíquico e projetos de vida e chances”, “Relações com amigos e vizinhança” e “Relações familiares”), é importante registrar que o parágrafo quarto da Cláusula 38 do TAC 1 estabeleceu que o depoimento pessoal da pessoa atingida a respeito desses danos seria prova suficiente da configuração do dano e do nexo de causalidade com o acionamento do PAEBM. Nas tabelas abaixo é possível verificar alguns exemplos de comparação entre os valores pretendidos pelas famílias atingidas e os valores reconhecidos pela ArcelorMittal ao final do processo de negociação.

E as famílias que não ficaram satisfeitas com a negociação com a ArcelorMittal?

Foram muitas as famílias que não chegaram a um acordo com a ArcelorMittal ou ficaram insatisfeitas com o resultado da negociação extrajudicial. Tais famílias têm direito a exigir as indenizações devidas no Poder Judiciário, o que deve ser realizado por meio de advogados ou advogadas particulares ou, para as famílias em situações de vulnerabilidade econômica, por meio da Defensoria Pública.

Sobre tal assunto, apesar de a ArcelorMittal sustentar que houve a prescrição das pretensões individuais de indenização, existem diversos fundamentos técnicos que levam à conclusão de que tal prescrição não ocorreu. Tais argumentos estão indicados no documento Manifestação da AEDAS a respeito de suposta incidência de prescrição da pretensão à reparação dos danos ambientais causados pelo acionamento do PAEBM da ArcelorMittal Brasil S.A. (Ofício n. 009/2022 da Aedas Itatiaiuçu).

Nos processos de negociação extrajudicial realizados com o assessoramento da Aedas, a despeito de muitos acordos terem sido concretizados entre as famílias atingidas e a ArcelorMittal, também ocorreram muitas divergências de interpretação, descumprimentos frontais de obrigações e posturas restritivas por parte da empresa em relação à aplicação do TAC 1.

Buscando publicizar às comunidades atingidas os posicionamentos técnicos sobre tais pontos de divergência, a Aedas disponibiliza neste momento o documento denominado Teses do TAC 1: posicionamentos jurídicos da equipe da Aedas sobre o Primeiro Termo de Acordo Complementar de Itatiaiuçu (MG).

E agora que se encerraram as negociações individuais extrajudiciais com assessoramento da Aedas… como anda a reparação em Itatiaiuçu (MG)?

Em 15 de junho de 2023, foi assinado o Termo de Acordo Preliminar ao Segundo Termo de Acordo Complementar (TAP 2), pelo qual a ArcelorMittal se responsabilizou pelo valor global de R$ 436.711.432,43 (quatrocentos e trinta e seis milhões, setecentos e onze mil, quatrocentos e trinta e dois reais e quarenta e três centavos) para medidas de reparação coletiva como consequência do acionamento do PAEBM.

Esse valor foi resultado de uma negociação que durou anos. A primeira proposta da empresa foi de 27 milhões de reais, enquanto as comunidades atingidas, assessoradas pela Aedas, apresentaram um conjunto de medidas de reparação pelo qual entendiam que deveriam ser reparadas, que foram valoradas pela equipe interdisciplinar da Aedas em 720 milhões de reais.

Ao final do processo de negociação, chegou-se ao valor de 436 milhões de reais, sendo que 300 milhões de reais devem ser destinados a novas medidas de reparação. Desse total, 215 milhões de reais representam valores destinados a projetos e ações de reparação coletiva construídos de modo participativo e 85 milhões de reais representam valores destinados ao pagamento de prestações mensais às famílias atingidas até o mês de abril de 2026.

Para concretizar o uso de tais valores, as comunidades atingidas, com apoio da Aedas, formularão 53 planos populares indicando o modo pelo qual esses valores deverão ser destinados para a implementação de medidas de reparação na região atingida.

Desde a assinatura do TAP 2, as comunidades atingidas lutam para que a reparação coletiva seja implementada de modo a assegurar a participação, o protagonismo e o controle popular. Para tanto, está em processo de construção o Segundo Termo de Acordo Complementar (TAC 2) entre o Ministério Público, a ArcelorMittal, o Município de Itatiaiuçu e a Comissão Representativa de Atingidos e Atingidas de Itatiaiuçu, com assessoramento da Aedas e apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens. Entre as principais reivindicações das comunidades atingidas estão as garantias de controle popular, autonomia organizativa e protagonismo das vítimas na implementação da reparação coletiva.

Saiba mais:

Primeiro Termo de Acordo Complementar (TAC 1)

Termo de Acordo Preliminar ao Segundo Termo de Acordo Complementar (TAP 2)

Manifestação da AEDAS a respeito de suposta incidência de prescrição da pretensão à reparação dos danos ambientais causados pelo acionamento do PAEBM da ArcelorMittal Brasil S.A. (Ofício n. 009/2022)

Ata de reunião realizada no dia 06/12/2021, com fixação de interpretação do TAC 1 por membros do Ministério Público

Despacho Conjunto do Ministério Público Federal e do Ministério Público de Minas Gerais de 29 de março de 2022

Teses do TAC 1: posicionamentos jurídicos da equipe da Aedas sobre o Primeiro Termo de Acordo Complementar de Itatiaiuçu (MG)