Diferenças entre a regularização fundiária proposta pelo Anexo I.4 e a regularização fundiária coletiva em comunidades quilombolas
Artigo aborda os procedimentos específicos, como o direito à Titulação Coletiva de terras quilombolas

Garantir o direito da demarcação das terras quilombolas de forma adequada, se constitui em garantia do direito à existência de reprodução social dessas comunidades e realização de justiça socioambiental. Neste artigo, elaborado pela equipe de Povos e Comunidades Tradicionais da Aedas, serão abordadas as diferenças entre a regularização fundiária proposta no Anexo I.4 do Acordo Judicial e da regularização fundiária coletiva em comunidades quilombolas.
O que é o Anexo 1.4?
Importante saber que o Anexo I.4 são projetos exclusivamente para município de Brumadinho, que fazem parte do Programa de Reparação Socioeconômica do Acordo Judicial celebrado entre a Vale, as Instituições de Justiça e o Governo de Minas Gerais em razão dos danos provocados pelo rompimento da barragem. Esse anexo objetiva reparar danos socioeconômicos, coletivos e difusos, a partir do fortalecimento de políticas e serviços públicos. Toda a execução deste anexo é acompanhada por uma auditoria externa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
1.1 – O que é o projeto de Regularização Fundiária de Brumadinho?
Dentre os projetos do Anexo 1.4, encontra-se o Projeto de Regularização Fundiária, que tem como objetivo promover ações que visam a regularização fundiária em Brumadinho, com prioridade para núcleos urbanos informais ocupados por populações socialmente vulneráveis, que serão indicados pela Prefeitura Municipal. A ação prevê o atendimento de 3.000 unidades habitacionais na cidade. O valor destinado ao projeto é de R$ 6.861.357,26 (seis milhões e oitocentos e sessenta e um mil e trezentos e cinquenta e sete reais, e vinte e seis centavos) e estima-se que sua conclusão seja até maio de 2025, conforme indicado no site da Fundação Getúlio Vargas.
O Comitê Pró-Brumadinho (CPB), pontua que as indicações de localidades e imóveis a serem contemplados foram feitas pela Prefeitura, seguindo normas e diretrizes aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (REURB). O processo até a entrega dos títulos vai cumprir todas as fases do procedimento administrativo previsto na Lei Federal nº 13.465/17, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana. Veja o projeto na íntegra acessando aqui: https://www.mg.gov.br/pro-brumadinho/noticias/projeto-para-regularizar-cerca-de-3-mil-imoveis-comeca-ser-executado-em
Outras informações, divulgadas no Portal da Cidade de Brumadinho, indicam a quantidade e as comunidades e bairros que serão contemplados pelo projeto de Regularização Fundiária, totalizando uma estimativa de 3.000 (três mil) unidades imobiliárias, como pode ser constado no site: https://brumadinho.portaldacidade.com/noticias/cidade/brumadinho-tera-acao-para-regularizacao-fundiaria-para-mais-de-3-mil-familias-3712

2. Comunidades Quilombolas e o Projeto de Regularização Fundiária do Anexo 1.4.
No site do Portal da Cidade de Brumadinho consta que dentre as comunidades contempladas no Projeto de Regularização Fundiária do Anexo 1.4, há uma estimativa de unidades imobiliárias em comunidades tradicionais quilombolas, a passarem pela regularização fundiária, ou seja, unidades habitacionais, cujo título será individual. Entretanto, comunidades quilombolas são parte de um grupo específico e culturalmente diferenciado, os Povos e Comunidades Tradicionais (PCT). Este grupo e seus diferentes seguimentos recebem proteção quanto a seus direitos territoriais. Assim, integrar as comunidades quilombolas num projeto de Regularização Fundiária Urbana (REURB) é desconsiderar os direitos e legislações específicas que tratam do tema da regularização fundiária de terras quilombolas.
3. Por que as comunidades quilombolas têm legislações específicas sobre Regularização Fundiária no Brasil?
A história do Brasil é marcada pela colonização através do sistema escravocrata. Durante mais de três séculos de colonização foram trazidos ao país cerca de 4 milhões de africanos para desempenharem trabalhos forçados sem remuneração e direitos aos bens que produziam. Com o fim da escravidão legal através da abolição decretada em 1888, a população negra descendente dos escravizados, não foi reparada pelos vários anos de trabalho forçado e nem foi concedido terras para que pudessem trabalhar no seu autossustento. O resultado desse processo é uma profunda desigualdade racial, social, econômica e de terras, que geram efeitos negativos até hoje.
Diante de um contexto como esse, muitos grupos de pessoas negras se juntaram com objetivo inicial de fugir da escravidão e formar comunidades auto-organizadas onde pudessem ser livres, vivenciar suas culturas, manejar a terra e resistir às atrocidades da escravização. Essas comunidades são chamadas de quilombos e existem e reexistem até os dias atuais.
Após mais de 130 anos da abolição, muitas comunidades quilombolas não foram devidamente reconhecidas como donas das terras que ocupam e utilizam por várias gerações, causando mais sofrimentos, vulnerabilidades sociais e incertezas de uma vida digna e em harmonia com sua cultura, tradição e meio ambiente. Desse modo, várias comunidades quilombolas, suas entidades de representação e toda a sociedade que acreditam na justiça social vão à luta para requerer o direito das comunidades quilombolas de terem a posse das terras que historicamente ocupam e utilizam. Toda essa movimentação resultou em legislações específicas, reconhecidas nacionalmente e internacionalmente, que dão a esses povos o direito constitucional à titulação coletiva de terras quilombolas.
4. Regularização Fundiária para Comunidades Quilombolas: Procedimento Específico e Titulação Coletiva.
Diferente da regularização fundiária de unidades imobiliárias, cujo título é individual para cada sujeito beneficiário; os Povos e Comunidades Tradicionais possuem normas específicas para regularização fundiária, que reconhecem suas especificidades de uso e ocupação do território, lhes concedendo o direito de Titulação Coletiva da Terra.
A Constituição Federal de 1988 previu em seu art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) o direito das comunidades dos quilombos à propriedade de suas terras, cabendo ao Poder Público a demarcação de tais áreas e a expedição do respectivo título.
Em cumprimento ao direito constitucional de propriedade e a titulação da terra quilombola, foi publicado no dia 20 de novembro de 2003 o Decreto n° 4.887, que regula o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, ou seja, é uma norma que vai orientar como deve ser realizada a regularização das terras ocupadas e utilizadas por comunidades tradicionais quilombolas.

E quais são os critérios para essa identificação e regularização?
O Decreto n° 4.887/2003 define os critérios para identificação das comunidades quilombolas, de acordo com seu art. 2°:
1) a autoatribuição (ou autodeclaração);
2) a trajetória histórica própria no contexto do coletivismo;
3) territorialidade e
4) a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
Nesse mesmo decreto, ficou estabelecido quais instituições serão responsáveis para certificação da auto-atribuição e pela identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras tradicionalmente ocupadas e utilizadas pelas comunidades dos quilombos. A certificação de autodefinição emitida pela Fundação Cultural Palmares é o pré-requisito para abertura do Processo Administrativo de Titulação das Terras quilombolas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), é a instituição indicada no Decreto n° 4.887/2003 para realizar esses procedimentos.
Após a certificação pela Fundação Cultural Palmares e aberto o processo junto ao INCRA, pode ser dado início ao procedimento administrativo para regularização fundiária das terras quilombolas. Tal processo de regularização de terras quilombolas, pode ser aberto de ofício pelo INCRA ou por requerimento da comunidade quilombola interessada.
Tal procedimento administrativo para identificação e delimitação das terras quilombolas, precisa observar as fases e a forma prevista no Decreto 4887/2003, que possuem várias etapas, dentre elas a construção de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), seguido de prazo para contestação. Se a contestação for aceita, o RTID poderá ser refeito e publicado novamente.
A última etapa desse longo processo é a titulação do território quilombola: que é o registro da terra em nome da associação quilombola. O registro é coletivo e determina que a terra está preservada, protegida para todos os quilombolas e para as futuras gerações. Não pode ser vendida, arrendada ou penhorada. O INCRA vai ao cartório de registro de imóveis da cidade e lá é feito o registro e assim a comunidade receberá o título coletivo de propriedade definitiva do território.
Nesse contexto, cumpre sinalizar que algumas comunidades quilombolas certificadas no município de Brumadinho jápossuem processos administrativos de regularização fundiária e titulação coletiva junto ao INCRA abertos desde 2011, e que ainda não foram finalizados.
5. Conclusão
Importante observar que, embora os temas se cruzem no território, trata-se de procedimentos diferentes. E diante de todas as dificuldades e conflitos históricos que as comunidades quilombolas atravessam com a negação aos direitos e morosidade no procedimento administrativo para titulação de suas terras, fica evidente que garantir o direito da demarcação das terras quilombolas de forma adequada, se constitui em garantia do direito à existência de reprodução social dessas comunidades e realização de justiça socioambiental.
Nesse sentido, destacamos que, para as comunidades tradicionais, os projetos e políticas públicas de regularização fundiária, seja o projeto do Anexo 1.4 ou qualquer outro projeto, ação ou política devem observar a proteção desses territórios para que a forma de titulação de suas terras, se realize de maneira adequada e segura garantindo a participação e a proteção efetiva dos direitos territoriais desses povos.
Texto: Equipe PCT Aedas