O Decreto n° 4.887/2003 regulariza terras ocupadas por comunidades quilombolas, detalhando procedimentos para identificação e titulação dessas áreas

Quilombo Rodrigues, em Brumadinho | Foto: Felipe Cunha – Aedas
Foi publicado no dia 20 de novembro de 2003 o Decreto n° 4.887 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Ou seja, é uma norma que vai dizer como deve ser realizada a regularização das terras ocupadas e utilizadas por comunidades tradicionais quilombolas.
O Decreto n° 4.887 de 2003 aponta critérios para identificação das comunidades quilombolas no seu art. 2°. São eles:
1) a autoatribuição;
2) a trajetória histórica própria no contexto do coletivismo;
3) territorialidade e;
4) a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
Nesse mesmo decreto, ficou estabelecido quais instituições serão responsáveis para certificação da auto-atribuição e pela identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades dos quilombos.
A auto-atribuição ou autodefinição é um direito dos povos e comunidades tradicionais preconizado na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), norma da qual o Estado brasileiro é signatário.
O direito da auto-atribuição ou de autodefinição, se constitui no direito autorreconhecimento enquanto comunidade tradicional pela própria comunidade, assim, não é o Estado e suas instituições quem irão fazer o trabalho de definir e conferir quem é ou não quilombola, mas a própria comunidade quilombola.
O Decreto n° 4.887 de 2003 estabelece a auto-atribuição como critério fundamental de reconhecimento e identificação das comunidades quilombolas, mas atribui a Fundação Cultural Palmares – FCP a competência de certificar aquelas comunidades que assim se declaram, ou seja, cabe a Fundação Cultural Palmares emitir um documento formal confirmando e atestando a condição de comunidade tradicional quilombola, caso assim essas comunidades se autodeclarem.
A certificação de autodefinição emitida pela Fundação Cultural Palmares é o pré-requisito para abertura do processo administrativo de titulação das terras quilombolas.
Além da Fundação Cultural Palmares, outra instituição destacada no Decreto n° 4.887 de 2003 é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, como sendo a instituição competente para realizar a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Definida as respectivas competências, o procedimento administrativo para identificação e delimitação das terras quilombolas que devem ser realizadas pelo INCRA deve ser observar as fases e a forma prevista no Decreto 4887 de 2003, qual seja, após a certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares, é possível iniciar o INCRA iniciar a etapa de Demarcação Territorial.
Como já sinalizado anteriormente, a demarcação do território é um processo realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Com isso, as comunidades que desejam a demarcação devem entrar em contato com o instituto que iniciará o processo.
Iniciado o processo, será construído um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que contém vários estudos sobre as comunidades:
- Estudo antropológico de caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural: que traz a história da comunidade e seu modo de vida atual.
- Levantamento sobre os registros da terra nos cartórios, que traz informações sobre a quem pertence as terras que estão dentro da área a ser delimitada e titulada. Esse é o documento que contém o mapa do território.
- Levantamento de todos os quilombolas das comunidades, famílias que pertencem à comunidade, inclusive aquelas que não moram dentro do território.
Depois da elaboração do RTID, o grupo de funcionários do Incra que compõe o Comitê de Decisão Regional fará uma avaliação desse relatório. Se não forem encontradas falhas, segue para o próximo passo.
Uma vez aprovado, o resumo do RTID será publicado no Diário oficial da União e no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais e afixado na sede do município de Brumadinho. O Incra vai notificar os ocupantes e vizinhos do território quilombola, que terão 90 dias de prazo para contestação. No caso de ocorrerem contestações por aqueles que se opõem à titulação do território, eles vão tentar apontar falhas no RTID para dificultar ou impedir a titulação. As contestações serão julgadas pelo Comitê de Decisão Regional do Incra no prazo de até seis meses. Se a contestação for aceita, o RTID poderá ser refeito e publicado novamente. Caso o conselho não acate os argumentos da contestação, o processo segue para a próxima etapa. Mas pode acontecer de não haver contestação. Aí o Incra encaminha o RTID aos órgãos competentes e segue para próxima etapa.
O Incra deverá realizar a demarcação física dos limites do território quilombola. Por meio de picadas e a colocação de marcos, assim os limites de todo o território serão identificados em campo. A última etapa é a titulação do território quilombola: é o registro da terra em nome da associação da comunidade. O registro é coletivo e determina que a terra está preservada, protegida para todos os quilombolas e para as futuras gerações. Não pode ser vendida, arrendada ou penhorada. O Incra vai ao cartório de registro de imóveis da cidade e lá é feito o registro e assim a comunidade receberá o título de propriedade definitiva do território.

Quilombo Rodrigues, em Brumadinho | Foto: Felipe Cunha – Aedas
Sobre a forma de titulação de terras quilombolas, o Decreto 4887 de 2003 dispõe que o título deve ser concedido de forma coletiva e pró-indiviso, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade. Desse modo, o Decreto 4887 de 2003 rompe com a lógica da propriedade individual e com a lógica mercadológica da terra e eleva as terras ocupadas por quilombolas enquanto território propriedade coletiva, ocupada e utilizada para manutenção da sua tradicionalidade, reafirmando e reconhecimento o território tradicional enquanto espaços necessários para reprodução cultural, social e econômica de comunidades tradicionais, como os quilombos.
Desse modo, qualquer possibilidade de titulação individual, seja numa regularização fundiária individual de terrenos de pessoas dentro do quilombo que não são quilombolas ou até mesmo regularização individual de terrenos de famílias quilombolas, descaracteriza a própria noção de comunidade quilombola, sendo este um território coletivo e que compreende e mantém a vida na coletividade.
Tal é a importância de garantir a titulação coletiva em territórios tradicionais, que o Supremo Tribunal Federal (STF), já decidiu que o poder público não pode regularizar áreas de terceiros sobre terras quilombolas e de outras comunidades tradicionais. Essa decisão do STF foi proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ADI n°4.269 do Distrito Federal, essa ADI buscava a revogação de alguns artigos da Lei nº 11.952/2009 que tratava da regularização fundiária de terceiros sobre áreas de comunidades tradicionais na Amazônia Legal.
Se constituindo com importante precedente no que tange a matéria de demarcação de terra quilombola, a ADI n°4.269 foi considerada parcialmente improcedente, considerando a inconstitucionalidade da interpretação que possibilite a regularização dessas áreas em desfavor do modo de apropriação de território por quilombolas e outras comunidades tradicionais amazônicas a terceiros.
Nesse mesmo sentido de proteção dos direitos territoriais de comunidades tradicionais, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que dispõe que os Estados signatários desta norma internacional, devem adotar procedimentos adequados quando a se tratar estes foram tratar da matéria dos territórios, da propriedade e da posse das terras ocupadas tradicionalmente devem ser adotados procedimentos adequados.
Importante também destacar que os Estados e Municípios podem tratar da matéria de demarcação de terras em comunidades tradicionais, desde que observe as formas adequadas e constitucionais de proceder a regularização fundiária desses territórios.
No Estado de Minas Gerais, a Lei nº 21.147 de 2014, que institui a política estadual para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais, trata dessa matéria, e no que tange ao procedimento administrativo de titulação de terras de comunidades tradicionais, dispõe que a titulação do território tradicionalmente ocupado será efetivada após a homologação do relatório técnico-científico de identificação e delimitação (RTID), bem como a forma do titulação deverá ser coletiva em caráter gratuito, inalienável, indivisível e por prazo indeterminado e pode ser outorgada em nome dos indivíduos constantes no relatório técnico-científico de identificação e delimitação territorial (RTID), seus descendentes e sucessores, permitida a outorga em nome de associação que os represente.
Por fim, cabe informar que o direito de participação das comunidades quilombolas em toda as fases de procedimento administrativos de titulação de suas terras é assegurando tanto no Decreto Federal 4.887 de 2003 como também na Lei Estadual de Minas Gerais, a Lei nº 21.147 de 2014.
Isto posto, é importante lembrar que o direito da consulta, prévia, livre e informada é um direito fundamental de participação dos povos e comunidades tradicionais consagrado na Convenção 169 da OIT e se constitui no direito dos povos e comunidades tradicionais têm de efetivamente influir nos processos de tomada de decisões administrativas e legislativas que lhes afetem diretamente.
Por todo exposto, podemos considerar que todo contexto de projetos e políticas públicas de regularização fundiária que envolver comunidades tradicionais, é preciso que observe a proteção desses territórios para que a forma de titulação de suas terras, se realize de maneira adequada, garantindo a participação e a proteção efetiva dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais. E que diante de todas as dificuldades e conflitos históricos que as comunidades quilombolas atravessam com a negação aos direitos, urge sublinhar que a garantia da demarcação das terras quilombolas de forma adequada, se constitui em garantia do direito à existência dessas comunidades e realização de justiça socioambiental.
Texto: Equipe Povos e Comunidades Tradicionais | Aedas Paraopeba