Em uma primeira etapa, nos encontros virtuais, A Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) dialogou com as comunidades as exigências delas sobre a Consulta Prévia, Livre e Informada. Só depois começaram os Registros Familiares (RFs) e Grupos de Atingidas e Atingidos (GAAs) nestes territórios, também impactados pela Barragem da Vale, em Brumadinho (MG).

“Da cabeceira do rio, as águas viajantes

Não desistam do percurso.

Sonham. (…)

O barco espera

O sábio contemplativo aguarda

O homem, ao peso de qualquer lenho

Não se curva.

Sonha.

Sonha e faz,

com o suor de seu rosto,

com a água de seus olhos,

com a fluidez de sua alma

cospe e cospe no solo,

amolecendo a pedra bruta.

Faz e sonha

E no outro dia, no amanhã de muitos

outros dias, a vida ressurge fértil,

úmida,

alimentada pelo seu hálito

E que venham todas as secas

o homem esperançoso

há de vencer. “ (Conceição Evaristo)

Antes de dar início aos GAAs, que são espaços de levantamento de danos e de medidas emergenciais de reparação, feitos após os Registros Familiares, a equipe da Aedas faz uma mística inicial, um momento mais dinâmico em que as pessoas são conduzidas a refletir e relaxar para ter uma boa reunião pela frente.

Dia 29 de Agosto, na primeira rodada de Grupos de Atingidos e Atingidas em quatro territórios quilombolas de Brumadinho (Sapé, Ribeirão, Marinhos e Rodrigues), uma das mobilizadoras da Aedas abriu o grupo virtual com a poesia acima, “Na esperança, o homem”, da escritora mineira Conceição Evaristo.

Mas se engana quem pensa que a Aedas iniciou os contatos com as comunidades quilombolas em 29 de Agosto de 2020. Entre julho e agosto do ano passado, após a Aedas ter sido escolhida pelas pessoas atingidas do município de Brumadinho para ser a assessoria técnica responsável pela região 1, a associação realizou diversas reuniões com famílias quilombolas atingidas pelo desastre.

O objetivo era fazer um levantamento inicial dos danos causado pelo rompimento e uma escuta da expectativa das comunidades, que foram a base para a construção do Plano de Trabalho, um manual dos objetivos da Assessoria e de como ela será feita.

Foi no contexto dessas reuniões, lá em 2019, que os povos e comunidades tradicionais, que são as Comunidades Quilombolas na região 01 e os Povos de Terreiro na região 02 (Médio Paraopeba), apresentaram a demanda da pauta sobre os Protocolos de Consulta e Consulta Prévia Livre, Informada e de Boa-Fé; bem como a necessidade da realização de Consultorias Especializadas para o estudo aprofundado na realidade de suas comunidades.

Desde Abril de 2020, quando as assessorias foram autorizadas pela justiça a contratar profissionais para atuar nos territórios, a Aedas vem formando um GT (Grupo de Trabalho) com a temática dos Protocolos de Consulta, a fim de corresponder e garantir a exigência que as comunidades fizeram. O descumprimento da Consulta Prévia é uma das grandes razões pela qual as comunidades tradicionais têm direitos desrespeitados pelas grandes empresas, e até mesmo pelo poder público, dentro de seus próprios territórios.

Por essas razões, as etapas do Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) aconteceram com mais cautela nas comunidades quilombolas. Tanto o Registro Familiar, como os Grupos de Atingidas e Atingidos, etapas desse diagnóstico, foram bastante debatidos antes de serem iniciados. A Aedas, cumprindo o pedido das comunidades, só poderia iniciar qualquer atividade dentro dos territórios quilombolas mediante autorização dos próprios. E assim foi feito.

Em uma reunião virtual no dia 15 de Agosto, com a presença das quatro comunidades e após muitos diálogos, é dada a permissão para que a Aedas começasse a fazer os Registros Familiares. Assim, a legislação nacional e internacional que ampara as comunidades quilombolas tem sido respeitada com afinco pela Aedas.

Quatorze dias depois, já era realizada a primeira rodada de Grupos de Atingidas e Atingidos. Nesta etapa, a equipe técnica da Aedas dialoga com um público menor, de dez a quinze pessoas, a fim de sanar dúvidas iniciais sobre a assessoria, falar sobre o Auxílio Financeiro Emergencial, levantando danos que são urgentes e precisam ser reparados agora. No caso das comunidades quilombolas é adicionado mais um eixo de discussão: “Como quero e como não quero ser consultado pela Aedas?”.

No momento dos GAA, o objetivo é ter uma conversa mais próxima com as pessoas, para que elas se sintam confortáveis de relatar mudanças, prejuízos e possíveis soluções para os danos emergenciais. O primeiro trabalho da assessoria nesta etapa é exercer a escuta ativa das demandas, pois elas serão levadas para as Instituições de Justiça (IJs), mas a Aedas também faz o caminho inverso, trazendo informações dos processos judiciais, num processo de mediação.

De imediato, costumam surgir várias perguntas após uma explicação mais minuciosa do que é a Aedas, e nas comunidades quilombolas não é diferente. As mais comuns são se a Aedas é uma assessoria da poluidora Vale e porque as pessoas do território não puderam se inscrever para prestar assessoria.

A equipe de mobilização e assessoria técnica destrincha os conceitos. A mobilizadora Marciana Ferreira explica que a Aedas é uma assessoria técnica independente: “Ela é Assessoria porque vem auxiliar as pessoas atingidas, é Técnica porque deve realizar estudos acerca dos danos levantados, a fim de minimizá-los e é Independente porque quem faz a escolha dela são as próprias pessoas atingidas, ou seja, nós temos um lado e não é o da Vale, o único lado da Aedas é o de quem foi atingido.”

Já a assessora plena e advogada Jéssika Silva costuma fazer um resgate nos GAAs desde que o desastre aconteceu, até a condenação parcial da Vale pelo Ministério Público. “O juiz reconheceu a responsabilidade da Vale, mas como isso será feito na prática? Para esse momento existe a Aedas e outras instituições, que fazem essa luta de cobrança em conjunto. Quando vamos representar as pessoas na justiça, não podemos ter relação com nenhuma das partes, ou seja, nem com a Vale nem com as pessoas que são atingidas, porque isso pode gerar um conflito de interesses. Por isso que em todas as instituições, tem muita gente de fora. Não é uma escolha da instituição, é uma determinação da justiça”, explica.

Diluídas as dúvidas iniciais, é chegada a hora de entender porque nas comunidades quilombolas os registros familiares não foram feitos de imediato. Dessa forma, a mobilizadora Júlia Elisa introduz a pauta da Consulta Prévia e explica que ela nada mais é que um “pedido de licença” às comunidades. “A Consulta é um acordo, feito entre a comunidade e a outra parte, no caso, a assessoria. Na verdade, ela é uma obrigação do Estado e demais organizações, que devem perguntar aos Povos e Comunidades Tradicionais sua opinião a respeito de projetos que impactam suas vidas e seus territórios”, destaca.

Essa Consulta deve ser Livre, Informada e de Boa-Fé pois ela precisa cumprir os seguintes quesitos: a comunidade deve decidir por livre e espontânea vontade que aceitará a consulta sem pressão externa de governos, empresas, ou qualquer outra instituição; ela deve ser realizada antes do projeto iniciar, por isso chamada de Consulta Prévia; a instituição deve apresentar sua proposta em linguagem acessível para as comunidades, por isso Informada; e a instituição não deve esconder informações, precisa ser honesta sobre os impactos e os perigos do projeto dentro das comunidades, por isso, deve ser de Boa-Fé.

Mesmo antes de começar os GAA, as comunidades já vinham falando como queriam ser consultadas: com linguagem acessível, simples e direta; circulando materiais em vários tipos de plataforma e formatos; respeitando as tradições culturais quilombolas. Os territórios também afirmam como não querem ser consultados, ou seja, ninguém deverá falar pelas comunidades, a assessoria não pode marcar reuniões em cima da hora, dando um prazo para que as comunidades se organizem, e ainda, ter paciência para escutar.

Em relação à pauta do Auxílio e demandas emergenciais, a quilombola Alexia Milena é categórica ao afirmar: “Algumas pessoas estão recebendo o retroativo, que são aqueles 50% que foram cortados de algumas pessoas. Qual nossa indignação, é que nós quilombolas não estamos recebendo esse retroativo”, relata.

A advogada Jéssika Silva explica que é justamente nessa primeira rodada de Grupos de Atingidas e Atingidos que serão levantados os argumentos, os motivos pelos quais as pessoas precisam desse suporte financeiro mensal, devido o desastre, porque tiveram suas vidas modificadas. “Muita gente diz nos grupos virtuais que ele não pode ser cortado porque a cidade era outra antes do desastre”. Assim, ela lança na primeira rodada: “O que pode ser levado da comunidade de vocês como justificativa da garantia do auxílio? Não é muito distante, é só contar o que mudou com o rompimento”.

A quilombola Alexia, do Quilombo do Ribeirão, enfatiza:

“A poeira do minério é um grave problema. Nós aqui do Quilombo Ribeirão, precisamos ir em Brumadinho fazer as coisas, e passamos bem onde a barragem rompeu. É o único trajeto nosso, que tem uma poeira insuportável. Eu e várias outras pessoas passam durante a semana pra trabalhar em Brumadinho. A poeira incomoda, arde o olho, lacrimeja, causou danos. Aqui não tinha trânsito de carreta, e agora passa direto, vem pro lado onde a gente mora. Os filhos da gente que tem problema de saúde, só causa mais problemas pra gente. O mesmo caminho que faço pra ir pro trabalho, todas as outras pessoas passam também. Todos nós dependemos da mesma estrada pra estar passando, todo mundo está por dentro do que está acontecendo. É muito difícil porque você passa onde tem corpos que ainda não foram encontrados. É uma sensação ruim, você tem medo disso acontecer de novo, porque você vai lembrando tudo que aconteceu, a lama passando, essa poeira tóxica.”

As comunidades reafirmam que esse é um problema recorrente em todos os territórios quilombolas. Além do meio de trajeto, acesso à cidade e locomoção, as comunidades quilombolas relatam outro grande dano sofrido: a saúde mental.

“O problema maior, tanto psicológico quanto mental foi o trajeto. Porque a lama cortou o nosso acesso de ônibus, a nossa principal estrada de acesso a Brumadinho, até hoje. Ficamos meses sem acesso a Brumadinho. Quem trabalhava, ou tinha consulta médica, não fizemos nada, foram quase três meses após o rompimento, nós nesse isolamento. Quando liberaram, o acesso era lá por dentro da Vale. Só quem passou por lá sabe. Você ia por dentro do acontecido, passava por outra barragem, a barragem nova e a que foi destruída. Pra quem não sabia, como eu, o que era uma barragem, foi terrível. Aquela cena, passando por dentro da Vale. Essa bagunça que aconteceu mudou a vida de todo mundo. Aqui, por ter pessoas mais idosas, ficou na cabeça de todo mundo, o transtorno foi demais. Até hoje não tem como você passar sem ver aquela cena de lama, todo mundo ficou com o psicológico abalado. A gente fala o que lembra, porque o estrago foi grande. Pagar uma indenização é o mínimo que podemos tirar da Vale”, conta Fabiana Paula.

A coordenadora de mobilização da Aedas, Marjana Lourenço, avalia que o início dos GAAs dos Quilombos marcou mais uma etapa importante do trabalho que vem sendo dialogado e desenvolvido com essas comunidades. “Apesar das dificuldades estruturais de acesso a sinal de telefone e internet, conseguimos realizar 10 GAAs garantindo a participação e escuta das comunidades de Sapé, Rodrigues, Marinhos e Ribeirão. Dentre esses destacamos a participação da juventude e também das lideranças dessas comunidades, que contribuíram através de diferentes olhares sobre suas realidades e de suas comunidades”, relatou.

Por fim, Alexia faz questão de enfatizar: “Somos pé rachado, somos quilombo, somos roceiro? Somos! Mas aos olhos de Deus não somos diferente de ninguém”, deixando o caminho aberto, assim, para outro grande momento do Diagnóstico Rápido Participativo: as Rodas de Diálogo (RDs).