A força da ancestralidade transforma o pasto do governo em um kilombu!
Quilombo do Gunga, em Brumadinho, recebe certificação da Fundação Palmares. Saiba mais no artigo abaixo:

VIVA AS ALMAS!!!!
Viva as almas que sempre nos valeram e que aprendemos a rezar com os nossos ancestrais.
Viva as caixas e patangomes e gungas que nunca pararam de tocar
Viva as nossas vozes que nunca pararam de cantar, rezando…
Viva a memória da Dinha Gemira e de todos que nos contaram um pedacinho de como era essa arvore frondosa e essa colcha de retalhos
Viva nosso povo rezador
Viva os Tios, Primos, Netos, Bisnetos e Tataranetos rezadores
Viva as Tias rezadeiras
Nós ganhamos mais do que eleição, mais do que uma final de campeonato mundial,
Nós estamos na página do Governo Federal!
O nosso povo é QUILOMBO DO GUNGA e o Gunga quando ouvirmos por aí,
saberemos que falam de nós.
Fique decretado!
Quem puder ouça e quem ainda não ouviu, vai ouvir
o SINO VAI TOCAR, igual antigamente e o Reinado vai cantar é o Povo do Gunga.
“Aê Angola, Aê Angola…
Nossa Gunga veio foi de lá
Correu mundo
Correu mar”
(Toada de reinado)
É como nossa Matriarca Dinha falou “Eu falo, gente: minha tristeza é de viver muito…
Porque eu lembro de tudo e não tem nada, eu lembro de tudo e não posso fazer nada.” (Profª Argemira Gomes)
“Parece que ela já sabia o que ia acontecer,
Parece que ela já sabia tudo o que ia acontecer…
(Toada de reinado)
(Rei Congo do Reinado da Guarda de Maçambique de Nossa Senhora do Rosário)
O Quilombo do Gunga, localizado no Distrito de Piedade do Paraopeba, em Brumadinho foi certificado pela Fundação Cultural Palmares em 30 de setembro de 2024. A certificação vem em um momento de forte mobilização comunitária em relação a sua autoidentificação como território tradicional quilombola, e acabou por representar não apenas um marco no território, mas também um símbolo de respeito à história e à identidade das comunidades quilombolas de Brumadinho, reforçando a importância do compromisso das autoridades em promover a justiça social e a inclusão, e garantir o reconhecimento da cultura afrodescendente no município, além de fortalecer a comunidade, que passa a ter poder de decisão sobre mudanças em seu território e, além disso, ter o reconhecimento por órgãos públicos, além da validação de seu direito à Consulta Livre, Prévia, Informada (CLPI).

Nas palavras do Rei Congo Ricardo Preto, da Guarda de Maçambique de Nossa Senhora do Rosário,
O povo Quilombola do Gunga é o primeiro povo sequestrado e escravizado da África, vindos do Reino do Congo/Angola e que pisaram no Vale do Paraopeba, resistindo até hoje no terceiro distrito mais antigo do Estado de Minas Gerais, antigamente Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Paraopeba.

Os povos e comunidades tradicionais que resistiram e continuam a resistir ao longo dos séculos, através de processos de mobilização e territorialização, tornando-se “visíveis” na agenda do Estado e da sociedade, superando os preconceitos históricos. Tanto é que, como diz a poesia, ou o grito engasgado de emoção do quilombola Rei Congo Ricardo Preto “Nós estamos na página do Governo Federal! O nosso povo é QUILOMBO DO GUNGA e o Gunga quando ouvirmos por aí, saberemos que falam de nós. FIQUE DECRETADO!”
A noção de território social vem a ser um elemento importante de definição dessa unidade de mobilização, além das condutas territoriais dos povos tradicionais, que recriaram um espaço político próprio e a luta pelo território expande pautas que são necessárias para toda a população, uma vez que são guardiões dos biomas e defensores da natureza e de uma outra possibilidade de viver envolvido com a terra, em reciprocidade e respeito, apontando assim para uma forma de bem viver que promove a salvaguarda de todo o entorno, exemplo de tal apontamento, vimos nas questões importantes levantadas pelo quilombola Rei Congo, que em entrevista para o Jornal Vozes do Paraopeba, explicou que o desastre sociotecnológico “abala quando a gente sabe que existe uma intervenção humana, que provoca transtornos nas diversas camadas dessa terra e dos seus sedimentos, que envenena a água”.

Além de negritar um alerta extremamente importante para toda a população Brumadinhense, acerca das estruturas de mineração de uma barragem, localizada a poucos quilômetros do Quilombo do Gunga, que ameaçam o território e o entorno de todo o distrito de Piedade do Paraopeba, o terceiro mais antigo do Estado de Minas Gerais, ou seja, trata-se do povo mais antigo do Vale do Paraopeba que foi certificado e que necessita de defesa e proteção. O Rei Congo Ricardo Preto, acentua em sua fala que “mesmo sob ameaças do extrativismo – minerário, e de um sistema “invisível” de dominação que ainda existe, mesmo que com outra roupagem, o povo do Gunga resiste no território, por direitos, reconhecimento e salvaguarda da ancestralidade”, fala de um dos guardiões e zelador da ancestralidade, da cultura, de seu povo e de suas tradições no quilombo.
A luta por reconhecimento das tradições passadas pelos ancestrais faz parte da história dos atuais e dos primeiros moradores do Reino Do Kongo – Angola Kilombu do N’ Gunga, localizado no distrito de Piedade do Paraopeba, o terceiro distrito mais antigo de Minas Gerais. Com a força da perpetuação da oralidade da tia-avó, Ricardo Geovane Neri pode continuar dizendo que “um povo tão importante, um povo tão potente, um povo gigante como ela dizia, um povo rezador e um povo sofredor que supera os obstáculos pela força da fé”, hoje é reconhecido pelo governo. (Ministério da Cultura, 2024)

Além da luta pelo bem viver, o Quilombo do Gunga ainda protagoniza a salvaguarda e compartilhamento da sacralidade ancestral do patrimônio cultural, através da continuidade da Guarda de Maçambique de Nossa Senhora do Rosário e da fogueira ancestral, que acontece na casa sede do Quilombo, tradições que se mantém ao longo dos séculos, o culto as almas e o catolicismo, ou seja, é um povo que é católico e que reza para as almas de seus ancestrais ao mesmo tempo. Estamos tendo a oportunidade de ver e vivenciar a história viva, segundo o Rei, “a guarda de reinado é um batalhão, um batalhão de povo, um exército, somos um povo de guerra, que faz a guarda de uma coroa, de um reinado. É uma resistência por representar um reinado que acontecia antes dos que foram escravizados virem para cá. Eles também já veneravam uma Mãe celestial.”
Não nos contam as histórias dos quilombos na escola, e quando o fazem citam somente Palmares, porém a verdade é que várias sementes de resistências multiplicaram pelo país, também citam que mataram Zumbi, porém sementes brotam quando uma arvore se cai, sendo assim a história do povo quilombola é continua, é circular e não acaba nunca. Pois, como diz Nêgo Bispo, “nossa história não tem fim. Somos o começo, meio e começo”.

Ainda sobre o território tradicional do Quilombo do Gunga, vale mencionar o que a comunidade sente nesse momento de certificação, pois para seus zeladores, como o Rei Congo parafraseia os mais velhos “o reconhecimento do nosso quilombo traz dignidade para essa gente, porque nós não somos animais para morar num pasto, nós não somos bicho, agora o pasto do governo tem nome e sobrenome, é o Quilombo do Gunga. Ninguém vai ter que sair de suas casas, nem vai perder as suas casas, o quilombo não prejudicará ninguém e a luta será por buscar benefícios para todos. Não expulsamos um irmão da gente, e aqueles que não são quilombolas e que vieram morar aqui um dia, se tornaram nossos irmãos, eles são importantes para nós.”
Sujeitos da Convenção n. 169 no Brasil: povos indígenas, quilombolas e tradicionais
No Brasil, os sujeitos da Convenção n. 169 são identificados como povos tradicionais, incluindo quilombolas e os diversos povos e comunidades tradicionais, grupos com identidade étnica e cultural diferenciada, modo de vida tradicional e territorialidade própria. A convenção traz o critério da autoatribuição (autorreconhecimento/autoidentificação) ao prever, no artigo 1º – 2, que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.

Portanto, Povos e Comunidades tradicionais, que se autoidentifiquem como pertencente a um dos 27 povos, definidos no Decreto n° 6040/2007, são reconhecidamente PCTs, não sendo necessário nenhuma aprovação de terceiros, porém, vale pontuar que, para ter acesso às políticas públicas e assistência técnica e até mesmo jurídica, quando necessário, se fará indispensável a autodeclaração inscrita em cadastros gerais de órgãos e/ou instituições públicas que são responsáveis pela expedição da certificação de autoidentificação, sendo as Comunidades Quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares, instituição responsável, conforme o Decreto° 4887/2003 e regulado pela Portaria n° 98 de 2007.
Assim, a certificação de autodefinição de comunidade remanescente de quilombo, é um procedimento administrativo, e é o primeiro passo para acesso as políticas públicas especificas e direcionadas aos sujeitos e territórios quilombolas.
Após a certificação do Quilombo do Gunga em Brumadinho, passam a ser seis Comunidades Tradicionais Quilombolas Certificadas pela Fundação Cultural Palmares, quais sejam Quilombo Sapé, Quilombo Rodrigues, Quilombo Marinhos e Quilombo Ribeirão no Distrito de São José do Paraopeba, Quilombo do Gunga no Distrito de Piedade do Paraopeba e o Quilombo Sanhudo na Comunidade do Tejuco. Além das Comunidades Quilombolas, também há ribeirinhos autoidentificados, trata-se da Comunidade Tradicional Ribeirinha da Rua Amianto, localizada bem no centro do Município.


Os direitos territoriais das comunidades quilombolas estão previstos no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição. A Constituição Federal também dispõe que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, ação e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, incluindo as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver (capítulo III, artigo 216)
Por fim, o Decreto n. 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), define os povos e comunidades tradicionais como:
Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Tanto o Decreto n. 6.040/2007 quanto o Decreto n.4.887, de 20 de novembro de 2003 – que disciplina os procedimentos de titulação e demarcação de terras quilombolas -, na convergência com os direitos previstos na Convenção n. 169, reforçam o critério da autoatribuição (autorreconhecimento) dos povos e comunidades tradicionais, em consonância com o artigo 1º – 2 da Convenção n. 169.
O reconhecimento dos direitos dos povos e comunidades tradicionais pelo Estado brasileiro só tem sido possível com reivindicação e pressão dos próprios sujeitos, a partir de sua autoorganização, de suas organizações representativas que, acabam por se consolidarem diante da luta para fazer valer os seus direitos coletivos, ou no enfrentamento de uma ameaça comum, diante de um conflito socioambiental que ameaça sua existência tradicional com a usurpação da terra e depredação da natureza.
E diante de omissões do Estado brasileiro, a luta dos povos e comunidades tradicionais para se fazer efetivar a proteção jurídica garantida pela Convenção n. 169 não tem sido diferente.
Só a luta muda a vida!
Assinam a matéria: Mona Lima (Aedas) e Ricardo Geovane Coimbra Nery, Rei Congo do Reinado da Guarda de Maçambique de Nossa Senhora do Rosário
Referências:
Sites:
2. Vozes do Paraopeba – 30ª edição: Reconhecimento e Reparação – Aedas
Livros:
- Protocolos de consulta prévia e o direito à livre determinação / Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Liana Amin Lima da Silva, Rodrigo Oliveira, Carolina Motoki; Verena Galss (org.).-São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019. 268 p.
- Educação quilombola: territorialidades, saberes e as lutas por direitos / organização [de] Givânia Maria da Silva, Romero Antonio de Almeida Silva, Selma dos Santos Dealdina, Vanessa Gonçalves da Rocha. – São Paulo: Jandaíra, 2021. 216 p.; 25cm.
- Direitos dos povos e comunidades tradicionais e povos indígenas em contextos de retrocessos / Ciro de Souza Brito (organizador), Silvana Mendes, Sônia Bone Guajajara, Joaquim Shiraishi Neto (colaboradores) – Curitiba: CRV, 2019. 202 p.