Nascida e criada na comunidade quilombola do Córrego do 14, zona rural do município de Naque, em Minas Gerais, Maria Aparecida tem sua vida marcada pelas águas e pela luta. Luta esta que, nos últimos anos, tem sido ainda mais intensa: o reconhecimento oficial da sua comunidade quilombola e a reparação pelos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, desastre-crime socioambiental que alterou profundamente o modo de vida das famílias que ali vivem. 

“Minha mãe tem 92 anos e ainda mora aqui. Eu nasci e cresci nesse lugar. Quando eu era menina, tudo era muito vivo: a terra, a água, a comida que a gente colhia, o cheiro das frutas maduras no pé. A gente brincava de roda, comia banana frita no fim da tarde, pescava no rio. Meu pai cuidava das plantações e eu lembro até hoje do gosto do abacaxi que ele guardava para mim. Meu pai morreu com 92 anos. Tem somente 13 anos. Com ele chupava cana… faço isso até hoje. Era uma vida simples, mas era nossa, e era feliz”, conta. 

Mas essa história mudou. E mudou drasticamente. Das águas que brotavam em abundância, em olhos d’água e córregos, espalhados pela grande terra quilombola, arrepiadas pelo vento, como entoa a cantora Maria Bethânia, ficaram apenas filetes e instantes permanentes de medo causados pela lama de metais pesados despejados no Rio Doce e seus afluentes, atingindo toda a bacia do Rio Doce. A lama destruiu não só o meio ambiente, mas a segurança alimentar, a economia local e as tradições que sustentavam o modo de vida quilombola. 

“A gente perdeu muito. O rio secou, a água ficou ruim, os peixes sumiram, os olhos d’água deixaram de minar. Meu filho, que cresceu nadando aqui, hoje nem coloca mais o pé na água [do rio Doce]. Antes, a gente plantava, colhia, vivia daquilo que a terra dava. Hoje, até a comida comprada no mercado nos deixa desconfiados. E o pior: fomos ignorados na reparação. Lutamos para existir, mas não fomos sequer reconhecidos no Novo Acordo da repactuação. Fomos excluídos do acordo e da reparação das comunidades tradicionais”, desabafa. 

Entre os quilombolas do Córrego do 14, as mulheres sempre tiveram um papel fundamental. São elas que fortalecem o trabalho no sustento da família, enfrentam o dia a dia da lavoura e, quando necessário, saem para batalhar em outros serviços. E, no processo de luta por reparação, não foi diferente. 

“As mulheres são uma peça fundamental e, de maneira nenhuma, poderiam ter sido ignoradas nesse processo de reparação. Elas trabalham duro, não desistem, seguem até o fim. Nós, mulheres, temos essa característica: não desistimos. Eu, por exemplo, vou fazer 59 anos e nunca comecei algo sem levar até o fim. Quando meu marido ia pescar, trazia os peixes, mas quem limpava e preparava para vender? Era eu! E nas outras casas, as outras mulheres. E, mesmo assim, não fomos reconhecidas [como trabalhadoras da pesca]. Isso é uma grande injustiça. Dizem que mulher é o sexo frágil, mas estão muito enganados. Não há fragilidade em nós. Somos fortes, resistentes e corajosas. O trabalho das mulheres precisa ser reconhecido, porque sem ele, nada disso [economia da pesca] funcionaria”, afirma. 

Há anos, as famílias do Córrego do 14 reivindicam o reconhecimento como comunidade quilombola, mas faltavam recursos e apoio técnico. Com a chegada da Aedas, assessoria técnica independente que atua no território 03 (Vale do Aço), a documentação começou a ser organizada, os relatos passaram a ser registrados, sistematizados e a luta da comunidade ganhou força. 

“A gente sempre soube que era um quilombo. Nossos avós nasceram aqui, nossos pais cresceram aqui. Mas não tínhamos nada no papel. Sem isso, é como se a gente não existisse para o governo. Foi com a Aedas que conseguimos reunir provas, registrar nossa história e mostrar que temos direito à certificação quilombola. Mas ainda falta muito. O que queremos é justiça. Queremos reconstruir. Queremos nossa terra produtiva, nossos costumes preservados, nossa identidade respeitada. A gente já perdeu muito, mas não podemos perder a nossa história”, aponta. 

E do lugar das águas que guardam segredos, Maria Aparecida compartilha um recado esperançoso para todas as comunidades tradicionais do Brasil:  

“Nunca deixem de buscar seus direitos. Durante muitos anos, nem sabíamos que tínhamos direitos, mas agora sabemos, e eles estão garantidos no papel. Precisamos lutar sem medo, sem recuar, sempre persistindo. Foi uma conquista difícil, fruto de muita luta, e não podemos abrir mão dela [o direito ao reconhecimento enquanto Quilombolas]. Precisamos usufruir do que conquistamos e continuar firmes. O foco deve ser recuperar nossa vida enquanto comunidades tradicionais, preservar nossos costumes e retomar nossas formas de sustento. Esse é o nosso direito, e vamos seguir lutando para garanti-lo. E, além disso, desejo que os danos causados pelas mineradoras sejam reparados.”, conclui. 

Texto e fotos: Thiago Matos – Equipe de Comunicação do Programa Médio Rio Doce da Aedas