Pessoas atingidas fortalecem busca por direitos em Seminários Temáticos da Aedas
Mulheres, pessoas negras, povos tradicionais, indígenas e quilombolas foram público alvo do primeiro ciclo de Seminários Temáticos

Centralizado em torno de discussões sobre a água, enchentes, segurança alimentar e indenizações, a 1ª edição do Seminário Temático no Médio Rio Doce foi uma oportunidade de pessoas atingidas, de diferentes municípios, discutirem suas experiências com relação aos danos trazidos no pós-rompimento da barragem de Fundão, ocorrida em 2015. O espaço aconteceu de forma simultânea, no último sábado (12), nas duas regiões em que a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) atua enquanto Assessoria Técnica Independente. No Vale do Aço, o Seminário foi realizado no município de Ipatinga e no Leste de Minas, em Conselheiro Pena.
Lado à lado, as pessoas atingidas compartilharam suas histórias e anseios, em um espaço pensado para que fosse possível a compreensão de como o rompimento causou danos diferenciados. É que o período de quase oito anos após o desastre-crime mostra que não foi apenas a lama entrando nas casas que atingiu de forma brutal a vida das pessoas, como muitas vezes é exemplificado de forma reducionista. A chegada de muitos problemas de natureza complexa é parte dos danos que são continuados.


Enquanto alguns ficaram sem água por dias após o rompimento e até continuam com esse problema, sofrem com a destruição das enchentes agora carregadas de lama advinda do rompimento, outros tiveram dificuldades com alimentação e renda, além de mulheres que possuem comprovada dificuldade de acesso aos programas de auxílio financeiro construídos pela Fundação Renova; em muitos outros casos, o rompimento afetou a cultura, a religiosidade e demais práticas tradicionais. Para Dona Maria Madalena, atingida do Quilombo Ilha Funda, localizado no distrito São Sebastião do Baixio, no município de Periquito (MG), o pós-rompimento trouxe imediatamente problemas para a alimentação da sua família e comunidade.
“Na alimentação, sofremos muito, porque nós usávamos o rio para o peixe. Nós comíamos peixe no rio. E nós, hoje, não temos mais peixe para comer. Tem muita alimentação que a gente buscava. Então, esse foi o fracasso que tivemos no rio. Também trouxe muitos medos, muita tristeza, porque o povo nosso morava muito próximo do rio. (…) O alimento nós compráva dos companheiros que eram pescadores do rio. E hoje a gente não come mais peixe da região”, explicou.

Na comunidade de Barra do Cuieté, um distrito do município de Conselheiro Pena, Vânia Mendes tem queixas similares. A comunidade ribeirinha perdeu práticas que proporcionavam renda e memórias. No local, muitos atingidos não receberam nenhum tipo de indenização das empresas causadoras do rompimento: a Samarco, Vale e BHP Billiton.
“A pessoa plantava, vendia, o rio servia para alimentação, pescava para vender, pescava alimentação e hoje não tem mais, entendeu? Porque o peixe do Rio tá contaminadíssimo. Muitos atingidos não conseguiram receber (indenização), eu moro a 100 metros do rio e não recebi e tenho comprovante de residência. O que valia para as pessoas lá? A folha do posto de saúde não vale mais, união estável não vale mais. A gente precisa de olhar mais os atingidos da nossa comunidade”, exemplifica.

Já Dona Edith, do município de Naque, conta que foi obrigada a se cadastrar no Novel e que na época não foi realizado qualquer tipo de explicação sobre o que era o programa e quais suas implicações. “Olha, eu entrei no novel. Fui obrigada porque a Fundação Renova alegou que não ia me pagar pelo PIM devido eu estar morando a mais de um quilômetro do rio, e ela não quis me indenizar pelo PIM. Ela me indenizou só através do Novel, aí obrigaram a gente entrar no Novel. Não especificaram para gente, não explicaram para qual seria o motivo dessa sentença, o que ela trazia para gente futuramente, nem presente, e foi onde a gente caiu numa quitação definitiva onde a gente perdeu todos os meios de mover outra ação”, revelou.
Água, um direito e necessidade de vida
Os diferentes danos na vida em comunidade, tanto quanto na individualidade, seguiram latentes nas falas das pessoas atingidas nos Seminários. Dona Edith de Moura também destaca que o abastecimento da água se tornou uma grande questão para a comunidade.


“Em relação a água, nós fomos afetados de várias formas. A gente ficou sete dias sem receber água. Não tivemos abastecimento por conta de prefeito nem de nada. Nós ficamos do dia oito (novembro de 2015), já que a lama chegou dia oito, e a gente ficou do dia 10 até o dia 17 de novembro sem abastecimento de água. A gente precisou de ir às casas dos outros pedir água. E isso afetou e até hoje está nos afetando, porque até hoje nós estamos consumindo água, mas a água não está de boa qualidade. Quando falta água ela chega numa situação bem turva, inclusive, em casa, eu tenho a garrafinha de água da forma que eu coletei do rompimento e de antes do rompimento pra mostrar a qualidade da água”, descreveu.
Do município de Aimorés, Deuáma Meire Mniamá Puri, liderança indígena Puri, escolheu destacar os danos causados em relação à água relacionado ao medo da contaminação, falta de acesso e impossibilidade do uso do rio para pesca e plantação. “Ter água, né? Temos que falar sobre a humilhação que nós ficamos sem ter água nos territórios, inclusive no território de Aimorés por sete dias e no território de Resplendor também. Tínhamos que pegar água em caminhões, em escolas, campo de futebol no sol muito quente. Para nós foi uma forma grande de humilhação. Sem ter acesso ao nosso rio para nosso sustento e consumo”, ressalta.


Do rio ao mar: justiça é construção popular!
É papel da Aedas enquanto ATI promover uma escuta ativa das pessoas atingidas, e por meio dela sistematizar as demandas comuns aos territórios. Para Mayara Costa, Coordenadora de Raça e Gênero da Aedas no Médio Rio Doce, o Seminário Temático foi uma grande oportunidade para que as pessoas atingidas pudessem ver que apesar de ter histórias diferentes, os danos atravessam coletivamente as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, justamente por estas fazerem parte de grupos que são historicamente vulnerabilizados no nosso país, como as mulheres, as pessoas negras e os povos tradicionais. Não é ao acaso que são justamente essas pessoas a enfrentarem inúmeros desafios para acessarem a indenização e assistirem seus direitos serem negados enquanto pessoas atingidas.

“Nós tivemos um encontro onde as pessoas de várias comunidades puderam ver que os danos que as atravessam, atravessam também a coletividade, porque são mulheres, porque são negras ou porque são componentes de um povo tradicional. Hoje nós começamos esse momento de criação da unidade, que já existe ao longo da Bacia, mas que traz uma perspectiva de luta que é coletiva e que a gente agora inicia com esse primeiro grande seminário”, pontuou.
O coordenador da equipe de Povos e Comunidades Tradicionais, Francisco Phelipe, lembra que o mote destacado pelos seminários “justiça é construção popular”, é uma definição norteadora das atividades da Assessoria Técnica Independente.

“É importante que a gente escute as pessoas para saber qual a percepção que elas têm sobre o rompimento, sobre os danos e a percepção que elas têm também sobre as ações de reparação. Para ser uma justa reparação para todas e todos, ela passa, sobretudo, pela participação popular. Então, assim, justiça é construção popular e é isso que a gente está aqui para defender”, finaliza.
Afinal, a reparação integral, com justiça e construção popular só é possível com a garantia de tratamento específico para os danos da população atingida. Mais edições de Seminários Temáticos devem acontecer em outros municípios da região do Médio Rio Doce até 2024.












Texto: Glenda Uchôa e Mariana Duarte – Equipe de Comunicação Aedas Médio Rio Doce