Comunidades tradicionais da Região 2 cobram retorno dos Compromitentes sobre a inclusão no programa de reparação previsto no Acordo

Foto: Rurian Valentino/Aedas

Os Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) tem pleiteado, desde 2021, o acesso ao Programa Transferência de Renda (PTR) através de diálogos junto aos compromitentes para apresentar suas demandas e justificativas para inserção no programa, partindo principalmente do critério de que a tradicionalidade sustenta a territorialidade. As comunidades tradicionais estão localizadas na Região 2 da Bacia do Rio Paraopeba, atingida pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrido em 2019. 

Ainda que as Unidades Territoriais Tradicionais (UTTs), os terreiros e as casas de reinado, não estejam nas margens do Paraopeba, a tradição considera o Rio enquanto parte das suas Unidades Territoriais Tradicionais.  A territorialidade das comunidades tradicionais, em muitos casos, se faz dinâmica, se articulando num movimento expansivo que faz do Rio parte do seu território descontínuo. 

Babá Edvaldo, que é liderança do Ilê Axé Ala Tooloribi, situado no município de Juatuba (Região 2), e membro do PCTRAMA, explicou sobre a relação com o Paraopeba. “Temos uma relação visceral com o rio e todo o entorno. A nossa tradição e nossa religião tem saberes e fazeres que preservam esse bem material que é o rio. Nós preservamos o rio, o rio nos alimenta e nós também o retroalimentamos. Ele é a cultura viva de nossa territorialidade e, juntos, nos retroalimentamos. Há, portanto, uma simbiose”, afirmou. 

“Trabalhamos e vivemos para esse universo simbólico que é expressão de nossa cultural territorial. A reparação integral tem uma meta: a reparação do Rio Paraopeba. Fomos violados no nosso direito de acesso às águas, à vegetação, às pedras, ao nosso grande patrimônio cultural e ancestral”, explicou.

Babá Edvaldo | Foto: Diego Cota/Aedas

Portanto, o desastre-crime que contamina o Rio Paraopeba é dano direto aos PCTRAMA, mesmo que estes não estejam nas imediações do curso d’água, pois a distância geográfica com relação à calha do rio não é impedimento para que este seja território apropriado, sacralizado e usado pelas comunidades tradicionais do PCTRAMA.  

Critérios do PTR e a situação dos PCTs 

Para acesso ao PTR existem critérios habilitadores, definidos pelas Instituições de Justiça sobre quem pode acessar o Programa. Vejamos:   

  • a. Familiares de vítimas fatais;   
  • b. Residentes da Zona Quente (Brumadinho-MG) considerados até dia 25 de janeiro de 2019 (novos moradores depois desta data não são contemplados).  
  • c. Residentes de áreas em volta do Rio Paraopeba e Represa de Três Marias com limite de até 1 quilômetro de distância ou inseridos nas poligonais determinadas pelas Instituições de Justiça;  
  • d. Membros de comunidades e povos tradicionais, dentro dos limites de 1 quilômetro com relação ao rio.    

Especificamente, no caso dos Povos e Comunidades Tradicionais contemplados pelo critério para acesso ao PTR, o requerente ao benefício deve se autodeclarar pertencente a uma comunidade tradicional e ser sujeito atingido residente a 1km do Rio Paraopeba. Contudo, mesmo que o PTR considere esses critérios, estes por sua vez não são exatamente justos com a realidade dos Povos e Comunidades Tradicionais, em relação ao critério da territorialidade.   

O impacto sobre o meio ambiente, os ecossistemas e suas relações, as dinâmicas econômicas, as manifestações culturais e religiosas, as tradições e territorialidades, sobre as práticas de lazer e esporte, sobre todos estes aspectos da Bacia do Paraopeba não respeitam os limites de 1 quilômetro com relação ao rio.

Rio Paraopeba no município de Juatuba, na Região 2 | Foto: Rurian Valentino/Aedas

Este é o caso dos PCTRAMA, um coletivo formado por 46 comunidades tradicionais de Umbanda, Candomblé e Reinado, que ocupam os municípios da Região 2 – Betim, Igarapé, Juatuba, Mário Campos, Mateus Leme e São Joaquim de Bicas. 

O Quilombo de Pontinha, assim como o PCTRAMA, não está dentro dos critérios geográficos definidos para o acesso ao PTR no caso dos povos e comunidades tradicionais. Contudo, diante de manifestação da comunidade quilombola de Pontinhas, que demandou sua inclusão no programa, o Ministério Público Federal considerou aspectos da cultura, tradicionalidade e etnicidade para determinar sua inclusão como público elegível para o PTR. 

A decisão leva em conta a relação da comunidade com o rio, que se dá a partir do uso dos “pantames” e “vargens” para plantações coletivas, pesca, coleta de folhas, raízes e flores para usos culinários e medicinais, para além do lazer e festividades realizadas nas margens do Paraopeba. Em relatório sobre a situação do Quilombo da Pontinha, as Instituições de Justiça reconhecem que:  

“[…] uma comunidade tradicional vive sob uma lógica coletiva completamente distinta […] São valores tais que impõem a análise da questão a partir de uma perspectiva de integralidade territorial”. (MPF, MPE, DPU e DPE, 2020, p.6)  

Existem ainda outros casos de comunidades tradicionais como Shopping da Minhoca, no município de Caetanópolis, e os Indígenas Kaxixó, de Rio Pará, que foram incluídos a partir do reconhecimento da sua tradicionalidade e territorialidade vinculadas ao Rio Paraopeba e da evidência do impacto dos danos causados pelo rompimento na manutenção do seu modo de vida e território.   

O precedente dos casos, para além de reafirmar o pleito, afirma os critérios e pleitos estabelecidos pelo PCTRAMA enquanto sujeitos de direitos de acesso ao Programa de Transferência de Renda. 

Legislações sobre a especificidade dos PCTs 

Existem legislações internacionais, nacionais e estaduais que são específicas sobre Povos e Comunidades Tradicionais, tais como a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Decreto nº6.040/2007 e outras, que explicitam a necessidade de tratamento “especial” para este público dada sua especificidade étnica, cultural e de modo de vida. Este é um dos argumentos centrais do PCTRAMA para pleitear o Programa Transferência de Renda e solicitar às Instituições de Justiça um olhar atento à suas necessidades. 

Aspectos a serem considerados sobre o PCTRAMA 

É importante considerar outros três aspectos: um deles é a rede de relações econômicas envolvidas pela tradicionalidade dos candomblés, umbandas e reinados, em que cada uma dessas comunidades tradicionais, em si, funciona como um aglutinador de dinâmicas de produção, de trabalho, consumo, compartilhamento, troca e “prestação de serviços”, que são desequilibrados a partir dos danos gerados pelo rompimento.  

O segundo aspecto a ser observado é o perfil social das comunidades tradicionais. O público que compõe as UTTs do PCTRAMA, espelha as camadas populares da sociedade brasileira. Em sua maioria, são pessoas negras e pobres, que já são vitimadas e discriminadas pelo racismo e as desigualdades sociais, sendo, portanto, o abalo a renda provocado pelo rompimento, um elemento que aprofunda as vulnerabilidades vividas por essas comunidades tradicionais.

PCTRAMA em atividade do lançamento do Protocolo de Consulta, em março de 2023 | Foto: Lucas Jerônimo/Aedas

E por fim, as UTTs, inclusive, ainda que nesta condição vulnerável, de poucos recursos, são lugares de acolhimento e suporte para sua família tradicional e a comunidade do entorno, que cotidianamente busca nos terreiros e reinados ajuda contra a fome, a violência, a dependência química, o abandono e outras negligências do Estado com sua população.   

Estes três tópicos comentados brevemente acima, resumem a defesa do PCTRAMA pelo seu reconhecimento enquanto atingidos e atingidas e sujeitos de direito do Programa Transferência de Renda, assim como de todo processo de reparação de danos.  

PCTRAMA tem cobrado posicionamento

Foto: Rurian Valentino/Aedas

Entre o fim de 2022 e junho de 2023, foram realizados contatos através de ofícios com as mesmas instituições, solicitando retornos à Comissão PCTRAMA sobre seu pleito. Estes retornos, até então, não aconteceram. Tanto os Compromitentes, quanto à FGV, responsáveis pelos trâmites do Acordo e gestão do PTR, respectivamente, não deram resposta conclusiva a este coletivo de atingidos e atingidas. 

No dia 10/02/2022 foi enviado ofício para a FGV solicitando informações a respeito dos critérios de participação dos PCTRAMA no PTR. No dia 23/11/2022, na reunião que ocorreu na Escola Frei Edgard Grott, com a presença da Dra. Carolina Morishita e da FGV, a pauta dos PCTRAMAs com relação ao PTR foi levantada. Também no dia 23/11/2022 foi enviada, pela Comissão do PCTRAMA, uma nota sobre o PTR. 

No dia 06/06/2023 foi enviado um ofício para as IJs e FGV solicitando posicionamento sobre o pleito coletivo para inserção das Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana – PCTRAMA ao PTR (OF 00024/2023). 

No dia de luta, em 26/09/2023, as pessoas atingidas cobraram das IJs uma resposta sobre o pleito dos PCTRAMAs com relação ao PTR e no dia 01/02/2024, na reunião sobre o PTR no Ministério Público (com a presença das IJs, FGV, ATIs e lideranças de atingidos e atingidas) foi cobrado, novamente, uma resposta do Comitê de Compromitentes ao pleito. 

A recursa no retorno e na inclusão do PCTRAMA no PTR representam a reincidente negligência com os povos e comunidades tradicionais, contribuem também para a continuidade da cadeia de danos no aspecto socioeconômico que atinge os terreiros, reinados e suas tradicionalidades, agindo de forma contrária a um processo de reparação democrático e justo no reconhecimento dos danos gerados pela tragédia-crime e na sua mitigação, que é fundamental para a continuidade segura e digna dos modos de ser tradicionais destes e outros povos e comunidades, responsáveis pela manutenção de saberes e conhecimentos, culturas, patrimônios e diversos outros elementos que afirmam as identidades e territórios da Bacia do Paraopeba. 

Texto: Equipe de Povos e Comunidades Tradicionais, da Aedas Paraopeba