No Vale do Jequitinhonha, Quilombo Córrego Narciso do Meio lança Protocolo de Consulta e Consentimento Livre em defesa de direitos frente à mineração de lítio
10 de julho de 2025
Documento reafirma autonomia da comunidade para decidir sobre ações que trazem danos ao território, cultura e modos de vida. Acesse o protocolo.
Participantes do lançamento do Protocolo reunidos ao final da atividade – Foto: Matheus Santos/Aedas
A Comunidade Quilombola Córrego Narciso do Meio, localizada no município de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG), celebrou, no último sábado (5), o lançamento do seu Protocolo de Consulta e Consentimento Livre e Informado. O documento é uma ferramenta de autodeterminação da comunidade, construída de forma coletiva, para garantir o direito à participação em decisões que atravessam diretamente seu território, especialmente frente ao avanço da mineração de lítio na região.
Reconhecida oficialmente pela Fundação Cultural Palmares em 2015, a comunidade se junta a outros povos e comunidades tradicionais do Vale do Jequitinhonha em denúncia dos impactos da cadeia do lítio sobre os modos de vida e os direitos fundamentais dessas populações.
“A nossa comunidade preza pelo conhecimento da verdade, que é uma forma de promover o acesso a direitos e a manutenção de seus modos de vida. O direito à verdade aqui referido em dois sentidos: como direito à informação; e como direito em que se faça cumprir o compromisso do Estado em garantir os modos de fazer, criar e existir das comunidades quilombolas e dos outros povos e comunidades tradicionais”
Protocolo de Consulta Quilombo Córrego Narciso do Meio
O documento estabelece as formas legítimas pelas quais a comunidade deve ser consultada em casos de projetos, políticas públicas ou empreendimentos que tenham repercussão sobre sua existência, seu território ou cultura – como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.
“Diante disso, nós, a comunidade Quilombola Córrego Narciso do Meio, optamos por desenvolver a escrita do Protocolo de Consulta, ante a agravante conjuntura de ameaças e violações de direitos étnicos. Os povos e comunidades tradicionais têm identificado o dispositivo da consulta e consentimento livre, prévio e informado como um instrumento para garantia dos demais direitos coletivos fundamentais, sobretudo direitos territoriais e culturais.” afirmam.
O Brasil, especialmente os Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, abriga cerca de 85% das reservas nacionais de lítio, que é extraído de cristais que têm alta capacidade eletroquímica, essencial para a fabricação de baterias utilizadas em celulares, notebooks e carros elétricos. É por isso que sua exploração tem atraído o interesse de empresas multinacionais.
Um dos principais exemplos é a canadense Sigma Lithium, que obteve licença operacional em março de 2023 e, apenas dois meses depois, já escoava sua primeira carga do mineral explorado no Vale do Jequitinhonha.
A expansão da mineração, feita sem consulta prévia à comunidade, gera conflitos com comunidades tradicionais e ameaça formas de vida, cultura e relação com a terra de povos indígenas, quilombolas e agricultores familiares do Vale do Jequitinhonha.
Construção do Protocolo, resistência da comunidade
Distante 18 quilômetros da sede do município, o quilombo Córrego Narciso do Meio reúne atualmente 64 famílias – parte dessas famílias vive no território, outras em diáspora, entre Araçuaí, Belo Horizonte e São Paulo.
“Estamos muito felizes de ter esse protocolo, que é onde a gente sabe que tem nossas leis e nossos direitos. Estamos muito felizes pelo encontro de hoje, foi maravilhoso, temos esse documento e esperamos que ele seja respeitado. A partir de agora, as pessoas que vierem à nossa comunidade vão ter que nos perguntar, nos consultar, se nós podemos receber ou não, vai ser no nosso tempo, não no tempo das pessoas”, afirma Catilene Pereira, presidente da Associação de Moradores do Quilombo.
Catilene Pereira discursa durante o momento de lançamento do Protocolo. Foto: Matheus Santos
Catilene sabe que o tempo para a comunidade é algo caro e importante. Há cerca de 30 anos, os moradores do Córrego Narciso do Meio aguardam a chegada de água encanada para as casas, mesmo com a proximidade da barragem do Calhauzinho localizada na região. Também resistiram ao projeto de lei que reduz a Área de Preservação Ambiental (APA) de Chapada do Lagoão, localizada no município de Araçuaí, uma região conhecida como “cabeceira de água”, abrigando um número grande de nascentes e de lagoas.
A consolidação do protocolo, nesse contexto, é mais um passo para firmar a comunidade frente aos desafios encarados. “A Constituição fala que o Estado tem que dar o território em nossa mão. As mineradoras vão passar e vão embora. Vamos ficar com doenças e hospitais sucateados. Falam que nós, quilombolas, estamos impedindo o progresso, mas essa luta é reparo histórico, porque foram retirados nossos direitos. Nossos filhos aprenderam a luta, mesmo com pais e avós analfabetos e sem contato com tecnologia, por isso ninguém vai apagar a história do Córrego do Narciso”, declarou Antônio Cosme, morador do vizinho Quilombo do Baú, de Araçuaí.
Antônio Cosme com o Protocolo em mãos. Foto: Matheus Santos
Lucas Martins, liderança do Quilombo e membro do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) na região, celebra o passo dado. “É um documento que resguarda a comunidade, principalmente contra as invasões de mineradoras que está acontecendo nos territórios, e o modo de consulta tende a ajudar a comunidade nas discussões e, mais uma vez, garantir o direito das comunidades e povos tradicionais do Vale do Jequitinhonha”, reforça.
Lucas Martins exibe o Protocolo de Consulta, conquista da comunidade. Foto: Matheus Santos.
Joyce Silva, representante do MAB que também atua na comunidade, reforça o sentimento da busca por respeito. “Nossos representantes têm que estar respeitando o Protocolo, os municipais, o congresso, porque é uma Lei Internacional, fala muito mais além das leis que a gente tem aqui no território. E falar que não é dever só da comunidade colocar isso em prática, de tirar do papel. É dever de cada um que tá aqui, principalmente das organizações e principalmente de quem não entende, para passar a entender e respeitar essas comunidades”
Respeito e esperança com o lançamento do protocolo de consulta – Foto: Matheus Santos
Celebração de lançamento
O Protocolo de Consulta e Consentimento Livre e Informado foi elaborado pela comunidade Quilombola Córrego Narciso do Meio, por meio de oficinas realizadas na comunidade durante os anos de 2023 e 2024, finalizando no mês outubro de 2024, com o apoio do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas). Durante o lançamento, a comunidade se reuniu para celebrar a sua conquista, rememorar o processo de construção e buscar fortalecimento coletivo.
Momento de batuque e folia após o lançamento do Protocolo. Foto: Matheus Santos
A atividade aconteceu na escola da comunidade e contou com a participação de representantes de diversas organizações sociais a governamentais, como Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos de Minas Gerais (PPDDH/MG), apoio do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG) – Campus Araçuaí, de mandatos parlamentares, como o de Célia Xakriabá (PSOL) e Beatriz Cerqueira (PT), bem como representantes de sindicatos, associações de moradores e povos tradicionais da região do Vale do Jequitinhonha.
“A importância de estarmos aqui, é que o riacho da vida não seca. A nossa luta é dos nossos ancestrais, de resistência. Eu aprendi que quilombo era de negro fugido, que não queria trabalhar, mas, hoje, a gente aprende o inverso. A nossa história é inversa até hoje. 1% tem toda regalia e 99% com as migalhas. Quantos quilombos tem migalhas? Os quilombos são um povo e luta e resistência com história gerada pela ancestralidade”, declarou Maria Emília da Silva, coordenadora do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos de Minas Gerais.
Maria Emília Silva, do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos de Minas Gerais. Foto: Matheus Sant
Lideranças femininas da comunidade se reuniram em frente ao palco e discursaram sobre as lutas que a comunidade atravessou ao longo dos anos e, em um ato simbólico, o protocolo foi oficialmente lançado, sendo passado de mãos em mãos ao som de fogos em celebração ao momento de conquista do quilombo.
Cleonice Pankararu, liderança da Aldeia Cinta Vermelha Jundiba, declarou que “os quilombos querem as garantias dos seus direitos, pois o povo negro derramou sangue e isso não é favor das autoridades. A maioria do congresso é contra os nossos direitos, inimigos de solos sagrados, do meio ambiente. O protocolo é um instrumento de luta contra o racismo ambiental. Se tantos passados de nós tombaram, por que eu vou me calar?”.
Marjana Lourenço, da Equipe Institucional da Aedas, que prestou apoio técnico para a construção do protocolo, falou sobre a intencionalidade deste instrumento. “Esse trabalho foi construído em parceria entre a comunidade e sua Associação, que solicitou apoio para a produção do Protocolo devido ao assédio que vinham sofrendo por parte de empresas mineradoras na região. Deve-se reconhecer que por meio dele a comunidade delimita seu espaço; apresenta para empresas, instituições e outros movimentos a forma como quer ser consultada, como deve chegar ao território e fazer diálogo com os moradores. É a partir do protocolo que a comunidade consegue estabelecer um conjunto de normas e regras que sejam condizentes com sua organização local e com a cultura tradicional existente, e, assim, sintam-se mais seguras, estando seus territórios também mais seguros. ”, ressalta.
Marjana Lourenço/AedasMayara Costa/Aedas
Mayara Costa, assessora jurídica no projeto Médio Rio Doce desenvolvido pela Aedas, acrescenta que o documento está “amparado pela Constituição brasileira, onde a comunidade externaliza para o mundo sua forma de viver e o modo como elas devem ser consultadas e ouvidas, por qualquer ato que a venham interferir. É mais um quilombo no Brasil que finaliza, executa e lança para o mundo seu protocolo, é uma vitória das comunidades tradicionais na luta por seus direitos”, finaliza.