Nada sobre nós, sem nós: povos e comunidades tradicionais consolidam comissões próprias para participação no sistema de governança

As comunidades quilombolas Córrego 14, de Naque; e as Comunidades Uchô Betlháro Purí e à Pukiu, povo Indígena Pury de Aimorés e Resplendor, consolidaram o direito de construírem suas Comissões Próprias de Atingidos e Atingidas, consideradas dentro do sistema de governança estabelecido na Bacia do Rio Doce. Tal garantia aconteceu por meio de ofício das Instituições de Justiça que consideraram a mobilização para a garantia desse direito empenhada pelas comunidades.

Outros dois grupos que também foram considerados detentores de direito às Comissões Próprias foram a comunidade quilombola Ilha Funda, de Periquito, e a comunidade Pury Krim Orutu Purí, que ainda estão no processo de consolidação.

“Nós tivemos uma grande vitória, pois escolhemos o grupo da Comissão onde, a partir de hoje, estamos formando uma equipe para levar a nossa luta ao conhecimento de todos, também através do grupo Aedas. E é um sonho que está sendo realizado, porque somos uma comunidade esquecida e a partir do momento de hoje, estamos sendo reconhecidos”, pontua dona Maria Damares Silva Oliveira, que se tornou membra da Comissão de Atingidos e Atingidas do Quilombo Córrego 14.

O direito à consolidação das comissões de atingidos e atingidas para esses grupos se consolida dentro da luta das comunidades para estabelecer seu lugar de povos tradicionais, indígenas e quilombolas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, ocorrida em 2015. Em agosto de 2023, as Instituições de Justiça que atuam no caso Rio Doce enviaram ofício às Assessorias Técnicas Independentes pedindo que fosse realizada a consolidação das Comissões Locais e Territoriais, escolhendo seus representantes, assim como previsto no Termo de Ajustamento de Conduta relativo à Governança, o TAC-GOV.
Com o pedido do MPF, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), como assessora técnica das pessoas atingidas em regiões do Vale do Aço e Leste de Minas, passou a promover reuniões junto à população para sistematização das propostas. Foi durante estas intensas movimentações pelo território, que povos e comunidades tradicionais passaram a reivindicar suas próprias comissões, respeitando os direitos de auto-organização, e de consulta livre prévia e informada.
Para embasar seus pedidos às Instituições de Justiça, os grupos quilombolas e as comunidades indígenas Pury recorreram à aplicação integral da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia, livre e informada e que expressa toda essa autodeterminação e autonomia nas formas de participação e a importância do tratamento específico para os Povos e Comunidades Tradicionais atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão e, ainda, ressaltando as violações de direitos que enfrentaram ao longo da história do Brasil, por meio de uma carta intitulada: “Carta pela garantia do direito à autodeterminação dos povos tradicionais, às formas próprias de organização, à participação, à verdade e informação”.

“Foi a partir da interpretação dessa carta e também em acordo com o que vem descrito no próprio TAC-GOV, e nas legislações específicas de povos e comunidades tradicionais, que o Ministério Público Federal entendeu que a reivindicação dos povos e comunidades tradicionais era correta e, dessa forma, emitiu um parecer-ofício comunicando tanto à Flacso, que é a entidade que gere o recurso do orçamento participativo do TAC-GOV, quanto à Fundação Renova, que é a entidade que tem obrigação de fazer, ou seja, de custear, orientando que essas entidades incluam no orçamento de 2024 o custeio para a construção da comissão dos povos e comunidades tradicionais”, explica a advogada e coordenadora da Equipe de Raça e Gênero da Aedas no Médio Rio Doce, Mayara Costa.

Comissões são consolidadas após conquista
O processo de consolidação dessas comissões foi uma oportunidade das comunidades tradicionais do Médio Rio Doce falarem sobre o respeito a esses povos, suas escolhas e especificidades. A garantia para consolidar essas comissões veio em janeiro deste ano, mas o processo de consolidação das Comissões aconteceu até o mês de maio, respeitando o processo de compreensão, debates e entendimentos dos povos e comunidades tradicionais envolvidos.
Na reunião para consolidação da Comissão no Córrego 14, por exemplo, houve inicialmente a leitura coletiva do regimento interno, documento que guiará a organização e funcionamento da Comissão e, por fim, a decisão de quem são seus representantes.
A Aedas, desde o início do trabalho da assessoria nos territórios do Leste de Minas e do Vale do Aço, vem desenvolvendo o mapeamento e identificação desses grupos. Até o momento foram identificados 28 grupos e comunidades tradicionais, partindo dos princípios de autoidentificação e autodefinição.
Do Leste de Minas, Dauáma Meire Purí, liderança da Comunidade Uchô Betlháro Purí, do Povo Indígena Pury, avalia a conquista como um avanço para os povos indígenas. “Como mulher indígena, eu tenho que dizer que essa vitória foi muito grande, porque a muito tempo a gente vem lutando. Levamos a Carta perante as autoridades e nós ganhamos esse direito de ter a nossa própria comissão. Esse é um avanço muito grande, pois os povos indígenas, principalmente os Pury, ele foi dado como extinto e ele vem brigando contra a invisibilidade e ganhou o feito de luta e visibilidade no mundo inteiro”, pontuou Meire.

Os Pury de Aimorés e Resplendor, juntos, vão compor uma comissão única, tendo assim um caráter de comissão intermunicipal, sem delimitação territorial, a Môemlitóma unã Dotapá-muúm Nhãmatuza Orum Butã.

Marco histórico
O ofício do MPF reforçou o direito dessas comunidades formarem suas próprias comissões locais, respeitando suas formas próprias de auto-organização, conforme estabelecido na cláusula décima sétima do TAC-Gov.
A assessoria técnica Aedas foi acionada para auxiliar no processo estruturação e consolidação dessas comissões a pedido do MPF, com papel de comunicar as instituições signatárias sobre os representantes escolhidos para as comissões locais.
O trabalho de estabelecer essas novas Comissões de Atingidos e Atingidas foi acompanhado pelas equipes de Povos e Comunidades Tradicionais, Raça e Gênero e Mobilização da Aedas.
Além disso, as instituições de justiça informaram que o planejamento financeiro do Orçamento Atingido 2024, que já foi apresentado e aprovado pela Fundação Renova, teria possibilidade de revisão para custeio das comissões inicialmente não contempladas.
“Isso, para a gente, foi muito gratificante, porque é algo que a gente sempre sonhou nessa comunidade. E hoje, graças a Deus, e pelos esforços e as lutas junto à equipe técnica e à nossa comunidade, que também tem muito interesse para isso, nós conseguimos esse regimento aprovado e essa comissão aprovada hoje, unanimemente, pela comunidade”, comemorou Maria Aparecida Guimarães, ao fim da reunião que consolidou a Comissão de Atingidos e Atingidas do Quilombo Córrego 14.

Assim como almejado na carta enviada ao MPF, estas Comissões de Atingidos e Atingidas serão fundamentais para garantir a participação efetiva desses povos tradicionais, indígenas e quilombolas no processo de reparação, assegurando que suas vozes sejam ouvidas e consideradas. Diante desse panorama, as comunidades atingidas aguardam novas vitórias, ressaltando a importância da participação informada e justa.
🎧 Sobre o tema, acompanhe o 8º Episódio do Programa Estação Rio Doce:
Texto: Mariana Duarte e Glenda Uchôa/ Equipe de Comunicação da Aedas no Médio Rio Doce