Dentre a diversidade de mulheres que tiveram suas vidas modificadas após o rompimento da barragem da Vale, Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, temos as mulheres quilombolas dos territórios de Sapé, Marinhos, Ribeirão e Rodrigues. Ativas nos espaços participativos da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), assessoria técnica que auxilia o município de Brumadinho na luta por reparação, as mulheres quilombolas da cidade falam com orgulho sobre o que é ser mulher quilombola.

Para elas, ser mulher quilombola é ser “luta todos os dias”, “compartilhar com a dor dos outros”, “ser negra e solidária”, é “ter o pé no chão e não se deixar cair”. É também vida, força, alegria e resistência. É manter a ancestralidade, a vivência dos antepassados, e ensinar a cultura para seus filhos. Mas é também o orgulho de vir de uma família toda negra e levar o legado de seus pais pra frente. Essas foram afirmações que as mulheres quilombolas proferiram no espaço da Roda de Diálogo de Mulheres Quilombolas, organizado pela Aedas, onde a quilombola e ativista Nair de Fátima, moradora do Quilombo Marinhos, colocou: “Poderia nascer mil vezes, queria nascer do mesmo jeito que nasci, negra!”.

“Olhos nunca deixaram de brilhar na esperança de um amanhã mais livre”: um retrato do grande álbum histórico que são as mulheres quilombolas em Brumadinho

Estudos apontam que uma carga desproporcional dos riscos e dos impactos sociais e ambientais recai sobre os grupos étnicos mais vulneráveis. As mulheres pretas e as mulheres quilombolas vivenciam em seus cotidianos pós-rompimento da barragem a somatização de problemas em suas vidas.

Julia Elisa, da equipe de monitoramento de gênero da Aedas e integrante do Grupo de Trabalho com Quilombos, afirma que além de grandes contribuições na elaboração de medidas reparatórias para o município, as mulheres trouxeram a oportunidade de re-conhecermos territórios símbolos de resistência, memória e ancestralidade na região. “Na ocasião da Roda de Diálogo para as mulheres quilombolas, evidenciou-se a força política, afetiva e comunitária delas, compartilhando falas marcadas principalmente pelo orgulho de serem mulheres negras e pertencerem às suas comunidades de lutas constantes e históricas, possuindo ainda muitas particularidades sensíveis que precisam ser escutadas e valorizadas”, disse a assessora técnica.

Denilsa das Graças, quilombola de Rodrigues, relatou parte de sua história, afirmando que os povos quilombolas deveriam ser reparados por tudo que já passaram, carregando carga tão pesada, como as sequelas da escravidão e de serem desvalorizadas por causa da cor de sua pele. “Somos um povo muito sofrido e carregamos até hoje as marcas de um passado sombrio…eu não posso dizer que meus avós ou bisavós foram escravos…eu também fui…ou talvez ainda seja…escrava do sistema…escrava dos traços herdados…escrava da própria cultura de um país que desvaloriza o povo negro”, desabafa a quilombola.

De acordo com os Registros Familiares e demais espaços participativos realizados pela Aedas com as mulheres quilombolas, os três temas prioritários, citados por elas, de necessidade de reparação são a Educação, Transporte e Trabalho. Atualmente, nas comunidades, cerca de 51% das mulheres exercem atividades remuneradas, e as atividades relacionadas ao cuidado são as que mais aparecem como ocupação remunerada, prioritariamente o trabalho doméstico (empregada doméstica, diarista e ou faxineira) e o trabalho relacionado à saúde (auxiliar, técnicas de enfermagem e afins).

“O trabalho de cuidado é um exemplo das desigualdades quando falamos em gênero, classe e raça. As cuidadoras, majoritariamente no nosso país, são mulheres, pobres e negras. Serão resquícios do histórico colonial que coloca as mulheres pretas de hoje nos mesmos lugares de servidão, por estarem desejando alcançar aqueles lugares que ainda não nos sonharam?”, indaga a assessora Júlia Elisa, rememorando o depoimento de Denilsa: “Aos 11 anos já trabalhava 10 horas por dia, era cobrada como se fosse adulta…isso é liberdade? Onde? A mão de obra era barata. O pagamento era valor simbólico”, contou a moradora de Rodrigues.

Pós-rompimento

Com os acontecimentos pós-rompimento da barragem, a vida dessas mulheres “virou de pernas pro ar”, como elas caracterizam. “É reunião atrás de reunião, não temos mais tempo pra nossas casas. Ser mulher é ainda mais desgastante, pois foi um impacto violento demais, nós gritando que estávamos vivas do lado de cá. E foram as mulheres que tiveram que falar isso, não foram os homens. Pra gente é ruim, participar de uma reunião do conselho, e o tempo todo as pessoas te apontando, que não era pra você estar ali, porque você não tem estudo, pra gente é chumbo grosso”, relata Nair de Fátima.

Nas quatro comunidades quilombolas, a grande maioria das lideranças são mulheres, e estão sempre juntas umas com as outras. Foi possível comprovar essa situação no lançamento do Protocolo de Consulta destinado aos trabalhos da Aedas, em dezembro de 2020 no Quilombo Ribeirão: todas as lideranças e moradoras presentes eram mulheres. “O que uma não sabe a outra fala, ser mulher depois desse rompimento ficou muito mais difícil. Esse impacto dificultou em tudo a nossa vida, e a gente não pode aceitar qualquer coisa não. Nós da zona rural, ficamos jogada às traças. Ficamos à mercê de qualquer coisa”, disse Janaína da Conceição, do Quilombo Ribeirão.

Dentro dos espaços participativos da Aedas, as mulheres trazem com frequência inúmeras questões de saúde mental, de racismo institucional presente em atitudes racistas de deslegitimação e desqualificação de suas falas em espaços públicos por serem mulheres negras e quilombolas; além do medo e insegurança permanentes em relação ao rompimento de novas barragens na região.

As mulheres quilombolas tiveram suas vidas e renda familiar afetadas pelo rompimento, por isso hoje lutam por uma Casa de Acolhimento à Mulher, com atendimento jurídico, psicológico e assistência social, como medida urgente de reparação.

RETROATIVO E INDENIZAÇÕES

“Ficamos sem ter como ir pra Brumadinho, ficamos sem o direito de fazer nossas consultas médicas, de ir e vir, e o livre arbítrio? A Vale é obrigada a pagar nosso retroativo porque ela deu para nós um dano imenso. Ela deve fazer um acordo para pagar o retroativo, porque ela está escolhendo os bairros que tem direito. Como pode? Se pessoas que moravam na cidade de Brumadinho e tinham como ir e vir estão recebendo, porque nós, que ficamos aqui isolados após o rompimento não estamos?”, destacou Janaína.

A assessora técnica da equipe de monitoramento de gênero da Aedas Thacya Pilon, informa que somente 5% das mulheres quilombolas vão para o trabalho em transporte próprio. “O dado que temos é que 95% dessas mulheres vão para o trabalho de transporte público, desse total cerca de 20% se deslocam a pé ou de bicicleta”, garante.

Já foi identificado que o desastre isolou parcialmente as comunidades quilombolas do território como um todo, limitando a mobilidade, o acesso a centros de saúde e de espaços onde podiam desenvolver seus modos de produzir cultura. Todo o território quilombola, que gerava circuitos culturais como forma de renda, ficou estigmatizado, o que foi agravado ainda mais com a pandemia. Após o rompimento da barragem, a Ponte na estrada Alberto Flores que liga as comunidades ao centro de Brumadinho foi interditada. A moradora do Quilombo Ribeirão, Fabiana Paula, relatou expressamente em um Grupo de Atingidos e Atingidas, de que forma aconteceu esse isolamento:

“O problema maior, tanto psicológico quanto mental, foi o trajeto. Porque a lama cortou o nosso acesso de ônibus, a nossa principal estrada de acesso a Brumadinho, até hoje. Ficamos meses sem acesso a Brumadinho. Quem trabalhava, ou tinha consulta médica, não podíamos fazer nada, foram quase três meses após o rompimento, nós nesse isolamento. Quando liberaram, o acesso era lá por dentro da Vale. Só quem passou por lá sabe. Você ia por dentro do acontecido, passava por outra barragem, a barragem nova e a que foi destruída. Pra quem não sabia, como eu, o que era uma barragem, foi terrível. Aquela cena, passando por dentro da Vale. Essa bagunça que aconteceu mudou a vida de todo mundo. Aqui, por ter pessoas mais idosas, ficou na cabeça de todo mundo, o transtorno foi demais. Até hoje não tem como você passar sem ver aquela cena de lama, todo mundo ficou com o psicológico abalado. A gente fala o que lembra, porque o estrago foi grande. Pagar uma indenização é o mínimo que podemos tirar da Vale”, relata a quilombola atingida.

MEDIDAS EMERGENCIAIS

Nos Quilombos, lugares de resistência, pertencimento e de luta, apesar das dificuldades ampliadas pelo desastre, 93% das mulheres quilombolas relatam que não desejam sair de suas comunidades. “Esse desejo é partilhado por moradoras de todas as comunidades e fica ainda mais nítido quando observamos que os dados em relação em relação à participação comunitária, é marcado pelo âmbito cultural e religioso de manifestações de resgate e valorização da cultura negra e popular como, Guarda de Congo e Moçambique, Folia de Reis, dia da consciência negra, grupo de mulheres bordadeiras, exaltando a mobilização feminina por geração de renda também”, informa a assessora Júlia Elisa.

Além disso, as mulheres quilombolas trazem algumas medidas emergenciais, que devem ser reparadas a curto prazo, e que foram sistematizadas no documento Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais, lançado pela Aedas em janeiro de 2021. Uma dessas medidas é a construção de creches nos territórios quilombolas, exigindo ainda que sejam pessoas da comunidade que trabalhem nesses espaços; cursos profissionalizantes para jovens, criação de bibliotecas comunitárias, além da necessidade de psicólogos, pelo menos uma vez por semana em cada comunidade quilombola.

De acordo com Thacya Pilon, está evidente nas propostas das comunidades que as medidas visam impactar diretamente a população negra no acesso à sua própria história. “As medidas visam desenvolver formas de trabalhar, principalmente com as crianças, a lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio”, explica.

Elas também avaliam como necessária a criação de espaços educativos e psicossociais para as crianças, que contemplem a população rural, tendo em vista a necessidade de trabalho da população feminina quilombola. As mulheres quilombolas lutam ainda pela promoção de campeonatos, shows culturais, feiras, cursos de auto defesa e proteção, garantindoa construção de espaços esportivos e de convivência com a implementação de lazer voltadas ao público feminino de todas as gerações, uma vez que os quilombos eram referência na cidade de Brumadinho no quesito da cultura.

Texto: Carmen Kemoly