“Chego à sacada e vejo a minha serra, a serra de meu pai e meu avô, de todos os Andrades que passaram e passarão, a serra que não passa”.
– Carlos Drummond de Andrade

“Daqui da varanda eu vejo minha casa, meu sonho”. Assim começamos a conversa com Maria da Conceição Costa Ribeiro, 66 anos e José da Cruz Ribeiro, 67 anos, atingidos pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência para Barragem de Mineração da ArcelorMittal. Maria da Conceição, mais conhecida com Dona Lia e seu José, carinhosamente chamado de Cruz ou Zé da Sanfona, são de Araçuaí, região do Vale do Jequitinhonha e vieram para Belo Horizonte há mais de 40 anos para fazer a vida. Destes 40 anos, são mais de 10 anos morando no Chacreamento de Lagoa das Flores, em Itatiaiuçu, região metropolitana de Belo Horizonte.
O casal comprou o terreno em Lagoa das Flores nos anos 2.000 mas só começou a construir em 2008. Seu José é pedreiro e construiu sozinho a casa, do jeito que Dona Lia sonhou. Quartos grandes, cozinha espaçosa, sala confortável para abrigar toda a família nos fins de semana e nas férias dos netos e netas. Para completar o sonho, estavam construindo uma piscina e uma outra casa, quase um hotel, como denomina seu José, para dar mais comodidade à família e amigos que vinham de visita. Mas, no dia 08 de fevereiro de 2019 o buraco da piscina ficou largado e o sonho do Seu José e da Dona Lia em pausa. A barragem de rejeito de minério da ArcelorMittal entrou no nível 2 e podia romper.

Dona Lia conta que, nesta segunda sexta-feira de fevereiro, viu seu sonho de paz e tranquilidade morrer. “Nesta madrugada, foi horrível, todo mundo foi para a pracinha de Pinheiros, depois fui escoltada em casa para pegar meus documentos que na correria não levei e ficamos um tempo em um hotel em Itaúna”. Depois do acionamento do Plano de Ação, várias famílias que tinham suas casas em área delimitada como de risco ficaram hospedadas em um hotel em Itaúna e posteriormente encaminhadas para casas alugadas pela empresa. “Tenho pressão alta e lá no hotel me senti mal, não queria ficar lá, queria minha casa, fiquei um dia no hospital tentando controlar a pressão”.
Hoje, Seu José e Dona Lia estão na segunda casa alugada pela ArcelorMittal. A primeira, em Vieiras, era tranquila, mas não tinha água e eles estavam isolados. Eles então mudaram para Pinheiros, onde estão até hoje. “Gosto daqui, antes estávamos muito isolados e longe de tudo, pelo menos aqui é mais fácil pegar ônibus para ir ao médico, antes só tomava dois remédios, hoje tomo uma sacola cheia”. Dona Lia ainda confessou que está indo ao psiquiatra, que sonha com a lama chegando e que, as vezes, mesmo acordada, vê a lama no quintal: “eu olho pro quintal e vejo a lama, quero sair correndo, chamo o Cruz, quero chamar os vizinhos, aí vejo que não é real”.
Seu José da Sanfona, o Cruz, adorava tocar a sanfona, praticava quase todo dia e tocava na igreja e nas festas com os amigos. Até hoje, a sanfona dorme ao lado da cama do casal, mas não é mais como antes. “Eu tocava sempre, toda hora pegava e começava e tocar, hoje não quero, esqueço as músicas, minha memória não está boa”.

E não é só a música ou a alegria que saiu da vida do casal que encontrou o amor muito cedo, a família, os filhos (as), netos e netas não vem mais passar os fins de semana ou as férias. “Fiquei 4 meses sem ver um filho meu, tinha medo de vir. Sempre estão ligando pra gente, perguntando se estamos bem, que deveríamos voltar para BH. Mas falo que minha vida é aqui, meu sonho. Acho que se eu voltar para BH eu morro mais cedo”, desabafou seu José.
Dona Lia e Seu José estão juntos a 46 anos e sempre foram companheiros um do outro, na alegria e na tristeza, só não esperavam ter o sonho interrompido e ter que pensar na possibilidade de recomeços. Dona Lia está angustiada, tem medo do que virá: “tenho medo da gente não conseguir realizar tudo de novo, ter a casa que
sempre sonhamos. E seu eu morrer antes?”. Mas Seu José se mantém uma fortaleza: “Ainda tenho muitas coisas para realizar, muitos sonhos. Quero ter minha casa de novo, minhas galinhas, poder cuidar da minha terra”.
Ao terminar a entrevista Dona Lia me pergunta: “será que vou voltar a ter a alegria de antes?”. Emocionada eu digo que sim, que sei que ela tem uma força dentro dela que vai transbordar amor e alegria e que o sonho vai voltar a acontecer. Assim, voltando a Carlos Drummond de Andrade, a serra que não passa, que aqui é a Serra Azul, vai passar e vai ficar o azul da tranquilidade, serenidade e harmonia.
