Apresentação das Matrizes de medidas emergenciais de Brumadinho e da Região 2 reúne 219 propostas
A Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) lançou na noite de quarta-feira (6) dois relatórios elaborados com a participação de mais de 7 mil pessoas atingidas de Brumadinho (R1), Betim, Igarapé, Juatuba, Mário Campos e São Joaquim de Bicas (R2). A Matriz Emergencial de Medidas Reparatórias é um documento sistematizado pela Assessoria Técnica Independente (ATI) com as medidas prioritárias que devem ser adotadas com urgência para mitigar os danos provocados pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale S.A, no dia 25 de janeiro de 2019.

A equipe especializada da Aedas, composta por mais de 200 pessoas, realizou a escuta das demandas e fundamentação técnica e jurídica das proposições das pessoas atingidas para mitigar cada dano relatado. O desastre socio-tecnológico em Brumadinho gerou danos que se expressam continuamente e com efeitos progressivos e prejudiciais às pessoas, ao meio ambiente e à economia. São exemplos a exposição permanente a elementos contaminados, como água e ar, que causam doenças respiratórias e de pele e também a exposição recorrente aos traumas do evento que tem provocado doenças psicológicas como depressão e ansiedade.
“A Aedas compreende que são os próprios atingidos e atingidas que possuem a capacidade de indicar quais são as medidas capazes de sanar essas situações de vulnerabilidade decorrentes ou agravadas pelo rompimento da barragem”, explica Ísis Táboas, coordenadora geral da R1. Essas vulnerabilidades exigem a adoção de medidas imediatas, considerando a possibilidade do processo reparatório final ser ineficaz diante do agravamento desses danos pelo tempo”, completa.
O lançamento da matriz emergencial aconteceu na véspera de mais uma reunião sobre a possibilidade de acordo entre Governo de Minas Gerais, mineradora Vale S.A e Instituições de Justiça, novamente sem a participação das pessoas atingidas. “Este acordo está decidindo o futuro das pessoas atingidas que não estão sendo convidadas a sentar dignamente na mesa. Esses dois relatórios lançados hoje representam a voz das pessoas atingidas, sua consciência sobre seus direitos e esperança por dias melhores”, disse Luiz Ribas, coordenador da R2. “As ATIs são o megafone das pessoas atingidas para amplificar a sua palavra pelos áridos terrenos dos palácios de Justiça, da imprensa, da ciência, entre outras arenas da disputa política”, acrescentou.
Como foi o processo de construção das matrizes?
A matriz é resultado de amplo processo de participação social e do trabalho da ATI realizado entre os meses de julho e outubro de 2020. Em um primeiro momento, informações fornecidas por 9874 pessoas atingidas, nos Registros Familiares, contribuíram para a caracterização da população atingida e identificação das situações de vulnerabilidade. Num segundo momento, foram realizados Grupos de Atingidos e Atingidos (GAAs) na R1 e R2 que fortaleceram a luta por direitos e pela reparação integral. Por conta da pandemia, o processo foi realizado de forma virtual e contou com a participação de 4067 pessoas atingidas. No total, foram realizados 374 GAAs na R2 e 260 na R1. “São pessoas dispostas a construir e pensar a reparação integral. São comunidades quilombolas, pescadoras, familiares de vítimas fatais, povos de religião ancestral, comunidades da zona quente, na mancha da lama, rurais, urbanas, das mais diversas categorias profissionais, modos de vida, faixas etárias”, exemplificou Iasmin Vieira, coordenadora de mobilização da R1.
Apoio de organizações sociais
A programação da live contou com inúmeras participações de lideranças de movimentos populares nacionais e até internacionais que já haviam demonstrado apoio à luta dos atingidos e atingidas através da assinatura da carta (ACESSE AQUI), bem como professores (as) universitários(as) e núcleos de pesquisa, as assessorias técnicas das regiões 03, 04 e 05, e pessoas atingidas das duas regiões assessoradas pela Aedas. Além disso, foi feito um diálogo com as perguntas que estavam sendo feitas no chat do Youtube.
A grande maioria das falas trouxe a magnitude do desastre para além dos danos imediatos, evidenciando que os danos são progressivos, e vão se intensificando diariamente, devido à exposição contínua aos rejeitos.
Schirlene Gerdiken (foto abaixo), moradora atingida da comunidade Aranha, em Brumadinho, ressaltou que este é um momento muito importante e fez um resgaste de como foi a chegada até aqui. “Entre os meses de julho e outubro, foram horas e horas sentados em frente de uma máquina, um notebook, um computador, ou nosso inseparável celular. Incluímos em nossa rotina diária, os inúmeros encontros em nossos Grupos de Atingidos e Atingidas, nossos GAA, e as nossas Rodas de Diálogos temáticas. Em virtude da pandemia do coronavírus, essa foi a forma que encontramos para trabalhar. Essas medidas emergenciais que levantamos devem ser aplicadas em nossas comunidades, bairros e municípios; e para essa elaboração, contamos com o apoio incansável da nossa assessoria técnica, a Aedas, a nossa parceira”, relembrou.

A moradora também levantou tópicos sobre o acordo, o desconhecimento sobre ele e as circunstâncias que se dá, com audiências a portas fechadas. “Existe um conceito teórico, político e jurídico muito importante, que é a Participação Informada. Nós, a população que sofremos os danos, prejuízos e violências do rompimento da barragem, precisamos participar do processo de concepção, elaboração, acompanhamento, execução e monitoramento das medidas de reparação integral”, disse a moradora, afirmando que esse direito está previsto em marcos nacionais e internacionais, e que está sendo negado no caso do desastre de Brumadinho.
“Depois de muitas manifestações das pessoas atingidas, mudaram de sigilo para confidencialidade, que na verdade não muda muita coisa, porque não houve a participação. Não sabemos do conteúdo e de nada do que está ali dentro. Foi nos oferecido o direito de sermos ouvintes, mas não queremos ser apenas ouvintes nem testemunhas desse desacordo”, finalizou Schirlene Gerdiken, chamando de cemitério a céu aberto as consequências que o desastre da Vale deixou na cidade.

Thomas Nedson (ao lado), da Colônia Santa Isabel (Região 2), começou sua fala dizendo que mora a 153 metros do Rio Paraopeba, e enfatizou sobre a mitigação, explicando que essa palavra nada mais é do que formas de aliviar tudo que ocorreu. Ele reforçou que não tem como dar valores aos peixes mortos, aos sonhos retirados, e às vidas que se foram. “Não há reparação sem justiça, mas sem luta, muito menos. A questão não é o dinheiro, é o direito!”, disse o ativista, ressaltando que só a coletividade vai trazer reais benefícios à população.
Thomas também trouxe à tona que se o rio Paraopeba estivesse em seu pleno funcionamento, com peixes saudáveis, as pessoas da bacia não estariam passando fome em plena pandemia, e deu ainda um panorama de relatos de todas as cidades da região 02, desde à falta de água em São Joaquim de Bicas às mortes em Mário Campos.
Zé Geraldo, integrante da coordenação geral do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), parabenizou os atingidos e atingidas pelo trabalho e à Aedas pela compilação. “Essa é uma obra, trabalho e produto dos atingidos. As outras assessorias também estão fazendo esse trabalho nas outras regiões, de fazer essa compilação. Esse trabalho que vocês mostram hoje demonstra a importância da assessoria, que é uma ferramenta poderosa na mão dos atingidos, que vai potencializar a luta pelos direitos. É necessário lembrar que não basta produzir o documento, só a luta, a organização e a pressão irão garantir os direitos, tanto contra a inimiga principal que é a Vale, tanto com os inimigos pontuais, como o Estado, que nesse momento tenta fazer um acordo sem diálogo”, disse.
Martha Freitas, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), também parabenizou a Aedas pela construção participativa e popular e falou sobre a necessidade de se pensar em um outro modelo de mineração. “As tragédias são inaceitáveis e recorrentes , pois no Brasil envolve tanto a vida dos trabalhadores, como também mata o meio ambiente. Se alguém tivesse sido punido em Mariana, talvez não tivesse acontecido em Brumadinho. Mais de 40 barragens estão na mesma situação em Minas Gerais, mas em função do lucro ela não pára. Uma tragédia atrás da outra. A médio e longo prazo continuaremos tendo mortes”, falou.
Segundo Martha, esses acidentes de trabalho destroem os afetos entre as pessoas e suas relações. “O trabalho participativo vem justamente para reforçar esses laços. Em Barão de Cocais, a Vale expulsa os moradores e tenta comprar as suas terras, justamente para minerar. A mineração é considerada atividade essencial, mas a maioria dos acionistas nem estão no Brasil. Além disso, desde o primeiro momento esse governo do Zema disse que a Vale não poderia parar, e hoje vem fazer esse acordo. O governo segue compactuando, assim como terceirizou o crime em Fundão com a Renova”, argumentou, dizendo ainda que o trabalho da Matriz poderá ser usado em vários territórios atingidos por barragens.
Na sequência, Ísis Táboas, coordenadora geral da Aedas, respondeu à pergunta do morador e atingido de Lourdes, Cássio Vivela, que indagou o porquê da Vale e o Governo do Estado de Minas Gerais “estarem de segredinho em relação ao acordo e excluindo as pessoas atingidas”. Ísis indagou sobre as razões de ser decretado o sigilo e depois a cláusula de confidencialidade, que viola os direitos de acesso à participação e à informação. Diante disso, ela coloca que essa é mais uma razão de estarem todos atentos para que não haja novas violações de direitos, como vem acontecendo. “Para além do direto à assessoria técnica que já foi conquistado, agora precisamos garantir a efetividade do direito à participação informada”, explicou.

Para ele, a reparação, assim como afirmou Thomas Nedson, não é só dinheiro ou indenização, mas a dignidade da vida e dos sonhos. “O sonho não é mais uma categoria da retórica, mas uma categoria internacional dos direitos humanos. O projeto de vocês está calçando os fundamentos da dimensão estratégica desse litígio, que não pode se encerrar na dimensão da jurisdição estadual. O Projeto explicita essa ignorância, que na verdade não é uma ignorância, é uma ocultação dos direitos humanos, que já é famosa no mundo do direito. A metodologia participativa desse projeto é quase freireana ( citando o pedagogo Paulo Freire), pois educa a quem participa e a quem está no entorno”, explicitou Zé Geraldo, chamando ainda para um Fórum Social Temático sobre Justiça e Democracia no final de 2021, e louvou o conceito de território defendido no projeto, que não é só chão e matéria, mas envolve também o que tange à complexidade dos símbolos e subjetividades das pessoas.
Ricardo Ribeiro, da PUC Minas (Coordenação Metodológica Finalística do Projeto Paraopeba) também falou sobre o momento em que a democracia está sendo colocada mais e mais sob ameaça. “A base, o fundamento da democracia é a participação. E esse é justamente o trabalho das assessorias hoje”, colocou. O professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Bruno Millanez, integrante do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), ressaltou que não incorporar a Matriz nas negociações é uma opção, e uma opção em reproduzir o que aconteceu no Rio Doce. “A não participação no Rio Doce levou à não mitigação dos danos e à perpetuação dos conflitos com o Estado e as empresas. Negar a participação hoje é perpetuar o desastre no Paraopeba”, trouxe o professor.
Marina Oliveira (abaixo), da Renser (Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário) e moradora de Brumadinho, diz que a arquidiocese e outras organizações já vem de uma jornada de quase 2 anos de luta. “Diariamente ocorrem violações de direitos por conta da empresa criminosa. É dolorido manter as esperanças, mas hoje não é dia de desânimo, é dia de celebrar a conquista dos atingidos por meio da Matriz, e ela é importante porque ela nasce do coração dos atingidos. A criminosa não pode definir os parâmetros de indenização e compensação diante do crime que ela mesma cometeu. Quem sofre somos nós, quem deve definir as nossas emergências e prioridades também somos nós”, falou a moradora, relembrando ainda a recente morte do trabalhador na Mina Córrego do Feijão e das joias não encontradas. “A marca da Vale é secar as nascentes e contaminar os rios, a especialidade deles é essa, e a nossa especialidade é resistir”, finalizou.

Bernadete Monteiro, da Marcha Mundial de Mulheres, também falou sobre como a Matriz é um exemplo de que o povo consegue construir com suas próprias mãos as soluções e saídas para os problemas que enfrenta.
Flávia Vieira, da Assessoria Técnica e Educacional Meio Ambiente e Barragens (ATEMAB), socióloga e professora na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), ressaltou que a Matriz é um documento muito completo e que já vai para além do emergencial, pois aponta elementos para a reparação de médio e longo prazo na região. “O protagonismo e a maneira como o documento pensa, de forma densa e conjunta, unindo uma série de elementos da literatura do meio ambiente com a área de direitos humanos, nos mostra a impossibilidade de separar a dimensão ambiental dos direitos humanos. É muito importante ver como vocês transformaram toda essa literatura em luta”, disse a professora que afirma que décadas de estudos estão contemplados na Matriz.
Flávio Bastos, do Nacab, assessoria técnica que atua na região 03, falou que avançar na luta significa fazer uma grande mobilização nacional e internacional, de um outro mundo possível, além de apelar para a solidariedade dos povos, que de acordo com ele, é quem vai garantir essa luta. Júlia Carvalho, do Instituto Guaicuy, assessoria que atua nas regiões 04 e 05 falou sobre a possibilidade de um acordo estar sendo fechado com pessoas que não conhecem a urgência dos territórios e ainda sobre o crescimento que pode ocorrer com a união das assessorias e das pessoas atingidas.
Também esteve presente o sindicalista Alexandre Finamori, do Sindipetro (Sindicato dos Petroleiros de Minas Gerais) e integrante da Plataforma Operária e Camponesa de Energia, dizendo que a Matriz demonstra uma grande capacidade de construção coletiva, e essa organização extrapola o conflito em si, os territórios e as pautas locais. “Essa luta que vocês estão travando, que não é uma luta fácil, de enfrentar uma empresa como a Vale, que está em parceria com o Estado, inspira e fortalece a nossa luta do Pré-Sal, na defesa do solo e das águas. Só com a luta vamos pegar de volta, com nossas próprias mãos, e não vai ser pedindo de volta ao Estado, mas arrancando no dia a dia, pouco a pouco, o que é nosso por direito. Essa luta extrapola o nosso tempo e a nossa geração”, trouxe o sindicalista.
As falas se encerraram com a contribuição de Mametu Oyassimbelecy, do FONSAPOTMA (Fórum de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana), que denominou o desastre como completa destruição ambiental e crime horroroso, que afeta a saúde das pessoas, sua fé e a vontade de lutar.
Para finalizar o momento de lançamento da Matriz, os presentes assistiram um vídeo com representantes da Comissão Pastoral da Terra; Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ANAB (Associação Nacional de Atingidos por Barragens), e do Movimentos de Atingidos por Barragens na Colômbia, que encerrou com a frase “águas para vida e não para a morte”. Ao fim, Luiz Ribas explicou que a audiência foi substituída por uma mesa de negociação, e que a Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais será protocolada junto ao processo judicial.
Assista a live na íntegra: