Cerca de 75% das pessoas atingidas assessoradas pela Aedas no Médio Rio Doce deveriam receber o AFE e não o recebem, aponta levantamento
Os dados apontam que 75,69% atendem aos critérios de recebimento do AFE pelas regras atuais do programa. Nesta terça (12), a Aedas foi convidada para tirar dúvidas em Live sobre o AFE, às 18:30

Por meio da aplicação do ‘Registro Familiar (RF)’, um levantamento de informações realizado com o objetivo de qualificar o perfil e a intensidade dos danos que as pessoas atingidas sofreram após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, foi identificado que 3026 pessoas atingidas atendem os critérios para o recebimento do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) e não o recebem. Os números foram mensurados pela Assessoria Técnica Independente, Aedas, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social, que atua em 15 municípios nas regiões do Leste de Minas e Vale do Aço, com dados atualizados até fevereiro de 2024.
O auxílio foi criado para mitigar os danos de abalo à renda após o desastre-crime que matou 19 pessoas e atingiu 42 municípios ao longo da Bacia do Rio Doce, em 2015. O direito é assegurado pelo Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) e, atualmente, garantido pela Política Nacional de Direitos das Pessoas Atingidas por Barragens (PNAB). No caso do Rio Doce, a Fundação Renova foi criada para conduzir o processo de reparação dos danos causados pelo rompimento e, assim, gerir o AFE através de um dos programas de reparação e compensação, o Programa 21. No entanto, relatos das pessoas atingidas apontam que a Fundação Renova vem dificultando o acesso ao auxílio.
Das cerca de 4 mil pessoas atingidas maiores de idade que responderam o Registro Familiar, 75,69% atendem aos critérios de recebimento do AFE pelas regras atuais do programa, sendo elas, abalo à renda e de danos à cadeia econômica na bacia do rio Doce e mesmo assim nunca receberam o AFE, ou tiveram seu pagamento interrompido. Os dados mostram também o recorte de gênero do caso: entre as pessoas que atendem aos critérios do AFE, mas não o recebem, 50,15% delas são mulheres.
Esse cenário mostra que apesar da existência de caminhos para medidas reparatórias, o acesso a elas por parte considerável dos atingidos, é interrompido ou limitado. É o que explica o economista e coordenador geral das Áreas Temáticas da Aedas no Programa Médio Rio Doce, Henrique Lacerda.
“O AFE é um programa que, logo após o rompimento da barragem de Fundão, deveria ter tido o papel de auxiliar financeiramente as pessoas atingidas, cumprindo o papel de medida mitigatória e com caráter de subsistência, sendo capaz de oferecer de forma rápida e emergencial o apoio necessário para que as famílias atingidas enfrentassem as dificuldades do rastro de destruição que o rompimento deixou, retomando a qualidade de vida e a dignidade para o povo atingido. É uma ação que, por ter o caráter mitigatório, busca diminuir as consequências nocivas do rompimento da barragem, para que seus efeitos não se perpetuem no tempo”, destaca.

Durante o levantamento, foi verificado que dentre as mais de 3 mil pessoas que deveriam estar recebendo o AFE, 652 pessoas conseguiram receber a indenização individual através do Sistema Indenizatório Simplificado (Novel), mas tiveram o AFE cortado ou não puderam pleitear o auxílio. Desse total, 81,7% afirmaram que não foram informadas sobre a quitação geral dos danos, ou seja, não puderam mais acessar o AFE quando assinaram o documento.
Isso porque com a assinatura da indenização individual à Fundação Renova através do sistema Novel havia a condicionalidade da assinatura de um Termo de Quitação Geral, tanto de pagamentos atrasados quanto dos auxílios futuros. O resultado disso foi que as pessoas atingidas que se enquadravam no Programa 21 e recebiam o AFE tiveram os seus auxílios cancelados e, consequentemente, o pagamento mensal interrompido.
“A quitação geral dos danos deve ser considerada ilegal, pois confunde as naturezas distintas das medidas reparatória e mitigatória, não resguarda o princípio da reparação integral, coloca as pessoas atingidas em situação de desvantagem na hora de assinar o acordo de indenização individual, o não reestabelecimento das condições econômicas em situação igual ou similar do que a anterior ao rompimento e também porque desprotege os grupos mais vulnerabilizados dentre as pessoas atingidas. Esse entendimento está se consolidando dentro do processo judicial, no sistema de governança e entre as instituições de justiça”, explica Henrique Lacerda.
Espaços participativos também dão dimensão das lacunas
Após o mapeamento ocorrido também nos espaços participativos promovidos pela Aedas, realizados ao longo de 2023 e durante o primeiro bimestre de 2024, foi possível identificar, por meio de depoimentos pessoais que o pagamento do AFE não está sendo cumprido devidamente ao longo da Bacia do Rio Doce. As comunidades atingidas assessoradas pela Aedas formulam a necessidade de pressionar a Fundação Renova e demais entidades competentes para a garantia do reconhecimento e do acesso ao direito daqueles que se encaixam nos critérios e devem ser inseridos ou reativados ao programa para recebimento do AFE.
Uma listagem com as pessoas atingidas que não tiveram acesso ao AFE ou tiveram o auxílio cancelado, mesmo atendendo aos critérios, está sendo construída pelo corpo técnico da ATI tendo como base o Registro Familiar e cartas de negativa enviadas pela Fundação Renova.
Ariane Sabrina, do município de Naque, destaca a dificuldade de informação sobre os processos relativos ao AFE. “Eu recebi um papel que foi espalhado na internet, com 99 nomes de processo indeferido, tipo assim nessa carta que foi divulgada que eu não sei de onde partiu, tava escrito ação deferida em favor da fundação renova. E aí, apareceu isso, a gente ligou pra fundação renova e até hoje eles não sabem me responder isso, e eu até hoje não sei o que aconteceu comigo”.
Ofícios, notas técnicas, pareceres comunitários e outros documentos também estão sendo elaborados a pedido das pessoas atingidas assessoradas pela Aedas.
Júlio Carneiro, pessoa atingida da Vila Crenaque em Resplendor/MG, destaca as consequências dos danos advindos do rompimento. “A comunidade continua triste, uns tiveram auxílio, mas a maioria não. A gente sempre dependeu do rio e o rompimento desestruturou nossa vida. Antigamente, a gente vivia do peixe, hoje, não tem essa possibilidade de estar pescando para dar o melhor para a família da gente. É difícil”, disse.

Jornada de Atividades do Povo Atingido
Na próxima quinta-feira, 14 de março, no “Dia Internacional de Luta Contra as Barragens, Pelos Rios, Pela Água e Pela Vida”, atividades pela garantia de direitos e pela implementação da Política Nacional dos atingidos por barragens (PNAB) serão realizados em todo o país. As pessoas atingidas na Bacia do Rio Doce solicitaram a presença do corpo técnico da Assessoria Técnica Independente nas ações que serão realizadas ao longo deste mês de março.
Joaquim Teixeira, pescador de Conselheiro Pena e membro da Comissão de Atingidos e Atingidas do município, nos informa que as principais reivindicações das pessoas atingidas no Rio Doce em relação ao AFE são: que o auxílio emergencial seja concedido a toda pessoa atingida enquanto perdurar a situação de abalo à renda e à cadeia econômica na bacia do rio Doce, sendo também beneficiadas as pessoas que já tenham recebido adiantamento de parcela indenizatória via Sistema Novel.
“Tem muita gente que não recebe o AFE, muitos perderam os lucros cessantes, tem as mulheres de pescadores que não foram reconhecidas. [A atividade] é uma pressão a mais, pois sem luta não conseguimos nada”, afirma Joaquim. Segundo os dados do Registro Familiar, das pessoas que receberam o AFE, 76,94% delas avaliaram insuficiente o valor do Auxílio Financeiro Emergencial para a manutenção das condições básicas do seu núcleo.

O AFE é pago a cada família, corresponde a um salário-mínimo, e é acrescido de 20% de um salário por dependente e uma cesta básica, cujo valor é definido pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
Joaquim destaca que não recebeu o AFE e nem assinou o Novel, por falta de documentação pessoal. “É uma ajuda, já que não tem pesca, tem pouca opção de trabalho, não tem como comprar, ajudaria na alimentação, é pouco mas ajudaria bastante”, afirma sobre a importância do auxílio.
LIVE
Para tirar dúvidas e explicar outros questionamentos em relação ao Auxílio Financeiro Emergencial, a Aedas participa nesta terça, 12 de março, a convite do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), de live no YouTube e Facebook MAB Brasil e MAB Minas Gerais, às 18h30.
Texto: Glenda Uchôa e Thiago Matos – Equipe de Comunicação do Programa Aedas Médio Rio Doce