Julho das Pretas: Mulheres negras atingidas em luta pela reparação integral
No dia 25 de julho se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, um marco de luta e resistência das mulheres negras, para reafirmar a necessidade de enfrentamento à discriminação racial, social e de gênero. No Brasil, nessa mesma data, também é comemorado o Dia Nacional de Tereza de Benguela, data institucionalizada pela Lei n°12.987/2014, em memória da líder quilombola que comandou o Quilombo de Quaritetê na luta por liberdade contra os colonizadores portugueses no século XVIII.
Tereza, heroína negra, símbolo de resistência e representatividade, não pôde ser enterrada, nem ter seus ritos fúnebres respeitado. Tereza, foi esquecida e apagada pela historiografia nacional, como tantas outras mulheres negras desse território, cujas identidades ainda não são reconhecidas, as histórias narradas, suas vozes ouvidas e muitas vezes são violentamente caladas. No entanto, nos últimos anos, a partir do engajamento do movimento de mulheres negras, seu nome tem sido lembrado como fundamental para o entendimento da formação social brasileira.


Vivemos numa sociedade desigual em que a precarização do trabalho aprofunda as desigualdades e as mulheres negras estão na base da pirâmide socioeconômica do Brasil. Os dados dos Registros Familiares realizados pela Aedas mostram que as mulheres foram as mais atingidas em relação à perda de renda e de trabalho remunerado após o rompimento da barragem de rejeitos na Mina Córrego do Feijão, de propriedade da empresa Vale S.A, em Brumadinho/MG. Nesse sentido, os dados refletem a situação absurda da mulher negra em relação ao trabalho remunerado no país.
A taxa de desemprego entre mulheres negras é 17%, maior do que entre as mulheres brancas e o dobro da verificada entre homens brancos. O racismo cotidiano e estrutural que dita quais são os lugares que as mulheres negras ocuparão, faz com que mulheres negras vivenciem no seu cotidiano múltiplas formas de violências, que foram e são agravadas pelos danos oriundos do desastre sociotecnológico.
Os dados do Registro Familiar mostram, ainda, que as mulheres negras do território ocupam principalmente o trabalho doméstico, terceirizadas de serviços de limpeza e trabalhos ligados à agricultura e pecuária. Apesar da dignidade de cada profissão, é necessário observar quais são os lugares onde estão as mulheres negras de Brumadinho, Mario Campos, Juatuba, Betim, Igarapé, São Joaquim das Bicas, Mateus Leme e que fazem parte dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa de Matriz Ancestral (PCTRAMA).
No Brasil, as mulheres negras são a maioria nos cargos ligados ao trabalho doméstico e de cuidados, com baixa remuneração e alto grau de informalidade. Ainda são poucas as mulheres negras, comparadas às mulheres brancas, a cursarem a graduação ou pós-graduação. O IBGE aponta que somente 10,4% das mulheres negras completam o Ensino Superior, realidade que também é percebida nas Regiões 1 e 2 da Bacia do Paraopeba. O dado é ainda mais alarmante quando se verifica que mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres.
Os dados nacionais sobre a mulheres pretas são também reveladores do racismo estrutural: a violência e a morte são maiores para mulheres negras e o atendimento em saúde é mais precário. Estudos na área da saúde mostram que as mulheres negras recebem menos anestesias que as mulheres brancas, baseados em uma construção sociocultural racista, ou seja, uma fake news, de que mulheres negras são mais “fortes” e aguentariam mais dores que mulheres de outras raças/cores. Somado a isso, a mortalidade materna é mais que o dobro entre as mulheres negras. Além de terem o menor número de consultas pré-natais, elas recebem menos informações durante o parto e tem mais dificuldade de acessar uma vaga na maternidade.
É importante ter em vista que, a partir do desastre sociotecnológico da Vale, as desigualdades, o preconceito e as discriminações existentes se agravam, revitimizando essas mulheres. Depoimentos de atingidos e atingidas à Aedas revelam que no período em que a barragem rompeu, as comunidades quilombolas ficaram cerca de três meses isoladas, sem conseguir acesso a Brumadinho. Quando um trajeto foi liberado, o acesso passava pelo terreno da empresa Vale S.A. As comunidades relatam o quanto foi traumático reviver todo o desastre diariamente, ao percorrerem esse caminho, por conta do medo da repetição e da lembrança do ocorrido. Com deslocamentos de até cinco horas para chegar ao trabalho, diversas mulheres quilombolas perderam o emprego e o ano letivo. Precisamos rememorar também que existe toda uma lógica de poder na decisão de quais áreas, municípios e regiões serão explorados e quais povos terão as áreas das suas vidas e de sua saúde afetadas por essa exploração. É preciso lembrar que desastres ambientais dessa magnitude ocorrem porque o racismo ambiental se estrutura em poder político e econômico que dita quem pode usar/explorar o meio ambiente.
Dados tão lamentáveis comprovam a urgência da incorporação da temática racial e de gênero na elaboração das políticas públicas voltadas para a garantia do direito à vida das mulheres negras e na garantia da reparação integral. Ao priorizar os indivíduos que sofrem com mais atravessamentos por violência e violações de direitos, colocando-os no centro da construção de medidas reparatórias, toda a sociedade é beneficiada.
Escutar as vozes das mulheres negras atingidas é fazer justiça histórica, social e ambiental porque apesar das monstruosidades a que são submetidas, as pretas resistem e essa resistência ancestral contém a memória e as estratégias necessárias para a construção de uma sociedade mais humana, com mais equidade, e com possibilidade de existência digna para todos. É preciso destacar que, apesar de enfrentarem nos seus cotidianos essas árduas lutas, as mulheres, especialmente as mulheres negras, são os sujeitos que mais tem participado, se envolvido e lutado pela reparação, sendo protagonistas nos espaços coletivos de organização popular e costurando possibilidades de existência e de resistência. Desde o desastre que modificou complemente suas vidas, todos os dias, ao longo desses dois anos, elas estão na linha de frente na luta por seus direitos e na luta pela vida. Elas têm deixado um legado que cabe reverenciarmos, visibilizarmos e, principalmente, nos referendarmos para a construção de um projeto de reparação inclusivo e integral.
Nesse momento de luta por direitos, de reconstrução do território estigmatizado pela lama e pelo minério, além de braços erguidos e disposição para as construções coletivas de novos projetos de futuro, a Equipe de Monitoramento de Gênero da Aedas das Regiões 1 e 2 oferece um abraço afetuoso a todas aquelas que fazem deste mundo um lugar de acolhimento e desse território um lugar de esperança. Celebramos a existência, celebramos os avanços, celebramos as conquistas, celebramos as guardiãs das memórias e as jovens e crianças negras que constroem no fazer diário existências mais dignas. Mais uma vez, a ancestralidade e a resistência apontam o caminho.