“O costume é ouvir o tempo das águas, é colher o que a natureza dá — viva, fresca, presente”

Família Aranã no quintal de casa | Foto: Felipe Cunha / Aedas

A luta dos Aranã percorre as veredas de Juatuba, onde, desde 1996, um novo ciclo de germinação teve início. Brotou, fincou raízes e emergiu da terra e das águas, reafirmando sua presença. Historicamente atingidos por processos de exploração ambiental, hoje também são revitimizados pela mineração predatória.

Originários de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, em uma diáspora forçada pela colonização, foram dispersos das terras que lhes pertenciam desde tempos imemoriais — quando o mundo ainda sabia escutar os sussurros da mata.

Uma guardiã e um sonho: Izabel e a conexão com a terra

Izabel Índio, 79 anos, mãe, matriarca e guardiã da biodiversidade | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Na Rua dos Aranã, em Veredas da Serra II, em Juatuba, ecoa o grito dócil e firme na voz de Izabel Índio, mulher de 79 anos, Guardiã da Biodiversidade. Ela e sua família, cerca de 24 pessoas, seguem plantando e sonhando, ainda que já não colham com as mãos o tanto que a terra costumava entregar. “Plantei isso aqui tudo”, diz Izabel, apontando com os olhos cheios de sabedoria para a vida ao redor.

O rompimento e a ferida aberta no Paraopeba

Foi Izabel quem sonhou, antes mesmo da lama se espalhar: um rio doente, sufocado por algo que havia se quebrado. E não era delírio — talvez a voz da sua ancestralidade. Era a conexão sagrada que a Comunidade Indígena Aranã mantém com as águas, os pássaros, o chão, as plantas. Depois, veio o rompimento da barragem da Vale. E o sonho de Izabel se tornou realidade triste: uma ferida aberta na carne da natureza.

O rio Paraopeba, antes companheiro de sustento, atividades domésticas, lazer, alimento e renda, tornou-se barreira com placas de “uso proibido”. “Queremos água e terra”, dizem os Aranã. Querem o direito de viver como sempre viveram: plantar quiabinho e colher com fartura, transformar mandioca em farinha, pescar peixe fresco, fazer o Xamego (bebida fermentada feita a partir do fruto chamado quiabinho) para vender.

Pedro Índio, 50 anos, fala como quem carrega o mundo nos ombros: “Nossa história é de muita luta, não tem fim.” | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Pedro Índio, de 50 anos, fala como quem carrega o mundo nos ombros: “Nossa história é muita luta, não tem fim. Ser indígena é viver no eterno recomeço, ser podado e mesmo assim tentar florir”. Quando tudo pesa, é seu irmão, João Índio, de 47 anos, quem o ergue, como o vento que levanta as folhas caídas. “A natureza nos abraça”, diz. Quando vem a tempestade, João Índio diz que se sente mais seguro na mata, seu abrigo ancestral, do que em casa de cimento.

Invisibilização e luta por Reconhecimento

Marlene Índio, 57 anos, lamenta que o Poder Público ainda ignora a presença de um povo inteiro naquele território | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Marlene Índio, 57 anos, lamenta que o Poder Público insiste em ignorar que ali mora um povo inteiro. “A poligonal não nos pegou”, conta, referindo-se à linha que delimita quem tem direito à reparação socioeconômica por meio do Programa de Transferência de Renda. Como se traço de caneta apagasse décadas de vida. Como se o traço de um mapa pudesse mais do que a história de um povo que coexiste com a natureza.

A tradição não pode se transformar em ausência. “Não estamos acostumados a comprar peixe no açougue”, diz Marlene. “O costume é ouvir o tempo das águas, é colher o que a natureza dá — viva, fresca, presente”.

João Índio mostra que é de ternura em ternura que se constrói luta e afeto, e relata: “Os Aranã, dóceis que são, lutam por direitos”, com a certeza de quem já viu o mundo tentar apagar sua história, mas nunca conseguiu. Foram expulsos, sim. Andaram por fazendas que eram, na verdade, terras indígenas invadidas. Passaram por florestas, por caminhos, até chegarem à cidade, às margens do rio Paraopeba. Sendo assim, o rio, acalanto para acolhimento dos Aranã em Juatuba, foi sinal ancestral de que ali naquele espaço territorial poderiam existir enquanto povo indígena.

Raízes profundas, vozes que Ecoam

João Índio, 47 anos | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Os Aranã seguem, plantando o que dá. Lutando por visibilidade. Reivindicando o que é seu por direito: o reconhecimento. “Ser visto é uma forma de acessar direitos”, reforçam. Mas ainda são invisibilizados, apagados por decisões que não conhecem seu nome, sua história, seu modo de existir. Lutam para continuar sendo. Lutam para que os filhos e netos possam viver a cultura que tentaram tirar deles.

E se resistem, é porque amam. E se falam, é porque ainda há esperança. E se plantam, é porque ainda acreditam no amanhã.

Izabel, Pedro, Marlene, João: quatro corpos, uma só alma. Retrato vivo da história indígena. São a lembrança de que ainda pulsa, no coração do Brasil, a força da Mãe Terra.

Pedro Índio e João Índio | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Porque resistir é plantar — mesmo em solo ferido — e esperar que, um dia, tudo germinará novamente.

Os passos dos povos indígenas seguem firmes como o tronco do Jequitibá e os galhos do Juazeiro — árvore cuja resistência atravessa os tempos. Juatuba, aliás, tem nome de origem indígena e significa ‘sítio dos juás’, o fruto do juazeiro, que resiste mesmo quando a ganância tenta derrubá-lo.

Que a sabedoria ancestral da Comunidade Indígena Aranã continue ecoando pelas matas, rios e corações. Que a justiça um dia saiba ouvir, com respeito, o que a terra e os territórios indígenas já gritam há séculos. Que cada luta travada seja também uma semente lançada. E que o que chamaram de Brasil aprenda a honrar aqueles que primeiro o chamaram de lar.

Veja a entrevista em vídeo


Texto e fotos: Felipe Cunha (comunicação) | Captação do vídeo: Douglas Keesen (comunicação) | Revisão e co-autora: Jacqueline Martins (equipe PCTs Aedas)

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