“A Vale pegou nossos sonhos, colocou numa caixinha e enterrou”

O córrego estava à beira de um menino do canto doce, que hoje atende por seu Antônio. Nasceu em 1949. Tem 76 anos. O córrego que era transparente, hoje tem densidade de cor e de cheiro. A paz é invadida por poeira e por lamento. A água escorre não só entre pedras, mas entre peles. A história foi escrita pela expulsão dos que não voltaram mais.
Antônio Paulorinho nasceu e foi criado no Córrego do Feijão, onde o feijão batizou o lugar depois que um carro de boi derramou sua carga no leito d’água. Diz que seus pais eram ‘filhos da terra’, como ele também é. Hoje, ao caminhar pela comunidade, vê casas com placas da Vale, cobertas pelo mato. O barulho dos caminhões, a poeira no ar. No ônibus escolar, quase nenhuma criança. Hoje não reconhece mais o território, intencionalmente descaracterizado.
“A Vale pegou nossos sonhos, colocou numa caixinha e enterrou”, diz, com os olhos umedecidos.

Seu Antônio não mora mais na comunidade do Córrego do Feijão. Assim como — ele aposta — mais da metade da comunidade. Hoje vive no centro de Brumadinho, cerca de 15 quilômetros do lugar onde cresceu guiando bois e pisando espinhos, roçando pasto para os fazendeiros em troca de quase nada. “Trajetória de um camponês do interior”, resume.
Se lembra do tempo em que o silêncio reinava: “Escutávamos os passarinhos nas copas das árvores. Caminhão era difícil de passar”.

Trabalhou na mineradora Ferro-Carvão. Depois, na Ferteco. Tentou lutar contra o grande avanço da mineração, principalmente contra a Vale S.A., que acabou com as águas da região: “Ela entope as nascentes da vida, do lençol freático. Eu lutei, mas não tive êxito. Disse: vocês vão acabar de matar, estão destruindo a vida, pois sem água não existe vida, ela está em tudo!”.
Para ele, a mineração não se importa com a vida, apenas com o lucro. “Isso sempre foi assim. Não é de agora. Não mudou”. Sobre o acordo de reparação, é direto: “Foi feito sem escutar os verdadeiros atingidos”.
Seis anos após o desastre-crime, a mudança está nos olhos de quem vê. Seu Antônio esteve no Córrego do Feijão e mal reconheceu sua antiga casa. “Descobri onde ela ficava pelo número, 238. Tudo mudou. Quase não encontrei a casa que construí”.

Denuncia a disposição de rejeito na cava da Mina do Córrego do Feijão. Diz que essa prática contamina ainda mais o ambiente, as nascentes e o lençol freático.
A falta de transparência, segundo ele, agrava as vulnerabilidades da população.
“Nós somos 70% água. Sem água, não existimos. E a Vale está atingindo isso. Matar a vida é matar a água, é atingir as nascentes”.
Faz uma comparação: “Pega seu corpo. Agora imagina que eu tenho uma seringa com material contaminado. Se eu injetar isso na sua veia mestra, contaminei tudo. É isso que a cava faz com o território”.
Sobre sua saúde, desabafa: “Capengo com a saúde. E cada dia piora com a atuação da mineradora. Cada dia, mais pessoas somem de um lugar onde nasceram, viveram, criaram suas famílias. A Vale conseguiu exterminar várias delas com sua ganância”.


Pede mais empatia, mais consciência coletiva: “As pessoas precisam pensar no entorno, não só no próprio umbigo. Ainda há quem resista a esse crime bárbaro da história do Brasil. E Brumadinho é a menina dos olhos, viu todos os danos”.
Sobre o rio Paraopeba, a denúncia é clara: A Vale não retirou rejeitos nem de 2 quilômetros do fundo do rio. Com o assoreamento, qualquer chuva faz as águas invadirem as ruas de Brumadinho.
Ele luta há anos. E pergunta: “Quantas vezes fui lá antes do crime da Vale? Avisei, alertei. E continua matando”.

Seu Antônio questiona: “A mineração diz que precisa de ferro para microfone, mas o microfone falaria algo se eu estivesse morto?”
E sobre o PTR (Programa de Transferência de Renda), afirma: “Não é justo acabar agora. A Vale não terminou sua obrigação. Nem em 2030 vai terminar.”
O rio, antes lugar de lazer e pesca, foi partido pelo rompimento. E seu Antônio encerra com a certeza de quem sabe o que diz: “Saúde e meio ambiente andam juntos. Se não tem meio ambiente saudável, não tem saúde”.

Veja a entrevista em vídeo
Texto e fotos: Felipe Cunha (comunicação/Aedas) | Captação do vídeo: Douglas Keesen (comunicação/Aedas) | Apoio: Kalahan Battiston (MSD/Aedas)
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