Anaise Pio: Eu sou descendente de reis e rainhas que foram escravizadas
No mês em que se completa 135 anos da abolição da escravização no Brasil, o Histórias Atingidas aborda o tema do 13 de maio a partir da memória de Anaise e Seu Silvestre

Anaise Silva Fortunato Pio de Souza tem 60 anos, nasceu em Volta Redonda, no Rio de Janeiro e cresceu em uma cidade com a maioria da população negra. Em 1984, se mudou para Belo Horizonte. Com essa mudança, vieram outras mudanças. Quando chegou em Minas Gerais, se mudou para o bairro Jaraguá e notou que os espaços eram segregados entre a população negra e branca, contexto que não estava acostumada em sua cidade natal. “Quando alguém batia na porta da casa de minha mãe e ela atendia, a pessoa perguntava: a dona da casa está?”.
Em 1988, ano do centenário da abolição, Anaise se mudou para Contagem e voltou a conviver em bairros em que a população negra estava mais presente. Pertencente ao grupo paroquial, começou a discutir o tema da negritude e refletir sobre o lugar que o povo negro ocupa na sociedade e qual era a história construída e dada como natural no sistema hegemônico e colonial.



Anaise, em seguida, entrou para uma entidade do movimento negro, que são os Agentes de Pastoral Negros. “Lá, a gente começa fazer o trabalho além da paróquia, que me abriu um leque imenso sobre pautas raciais”.
Em 1989, Anaise chegou na comunidade dos Arturos. Foi como catequista das crianças da comunidade. “Toda vez que que trabalhávamos o 13 de maio, falávamos do autorreconhecimento negro, da nossa história e dos nossos ancestrais”. A partir disso, Anaise lutava para trabalhar a conscientização de outras pessoas negras. Relembra que na primeira reunião perguntou aos alunos e pais se conheciam Zumbi dos Palmares. Eles responderam “não”. E perguntou: E a Princesa Isabel? Obtendo a resposta: “sim, é uma bondosa senhora”. Anaise, então, teve como missão contar a história a partir da perspectiva, da sabedoria e da luta de seus ancestrais, dos verdadeiros guerreiros e guerreiras e do empoderamento negro.
Em dezembro de 1989, recebeu a coroa de São Sebastião. Passou a ser rainha do Congado. Em 1997, casou-se com seu marido que passou a ser rei junto dela. “Eu casei e vivi minha gravidez no Congado, e, hoje, tenho uma filha de 24 anos chamada Núbia e que estuda veterinária”.
Anaise frequenta um terreiro de Juatuba, em Francelinos, “e que trouxe uma discussão de pauta racial, do meio-ambiente, da vida e da importância que a natureza dá a partir da religiosidade.” reconhecendo a necessidade que ela e seu povo tem do rio, da mata e dos espaços para viver o sagrado.
O leque que começou a abrir em 1988 está aberto até hoje.



Anaise é pedagoga formada pela UFMG da turma de formandos de 1999. Participou de um pré-vestibular alternativo em 1994, chamado pré-vestibular alternativo Palmares. “A gente tinha duas aulas por dia e fazíamos recortes raciais. Era um cursinho voltado para inserção de pessoas negras na faculdade, não havia cotas. Escolhi educação pelo meu processo de catequese e hoje sou professora de anos iniciais. Trabalho com alunos de 6 a 10 anos e toda vez que tenho oportunidade eu pergunto a eles: quantas supervisoras negras vocês já tiveram?”. Anaise diz que a educação é uma ferramenta que possibilita mais equidade, consciência racial, ocupação de espaços e empoderamento aos seus alunos.
“Meus alunos são mais novos, mas eu resgato o que eles têm de valor. (…) Sei que tem muita questão na educação que precisa resolver, mas meus alunos não têm culpa disso, não posso tirar deles o direito de estudar.”
Sobre o 13 de maio e mineração, “milhões de africanos foram trazidos contra sua vontade para o Brasil e em Minas Gerais”, diz Anaise. “Esse processo que hoje vemos na mineração em busca por reparação, começou há anos com a chegada, contra a vontade, dos povos escravizados em Minas Gerais que vieram forçados para o Brasil para poder “salvar’ Portugal. A comunidade negra, reis e rainhas, tinham conhecimento, sabiam trabalhar na mineração. Trouxeram mão de obra qualificada e nisso foi aumentando a renda para o país de Portugal. Hoje, aqui, a mão de obra é assalariada, mas o salário não é digno, onde muitos continuam adquirindo doenças fortíssimas e condições precarizadas de trabalho.”

Anaise deu aula em escola pública e particular e relata que, muitas vezes, nas escolas públicas, os filhos dos trabalhadores perderam ou tiveram algum parente adoecido pela mineração. “Os alunos também enxergam ali [mineração] o lugar para ele, mas não como engenheiro, chefe.”
Sobre o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrido em Brumadinho em 25 de janeiro de 2019, Anaise diz que a lama faz os seus percursos atingindo variados modos de vida; indo da água que se bebe à terra que se planta, e provoca: “qual a extensão do rompimento? Ele continua atingindo muita gente e no mais particular. O quintal não é só onde se coloca roupa para secar, é onde se planta ervas que ajudam na cura de outras pessoas”, exemplifica.
Hoje, quando pensa a mineração, Anaise pensar no tempo histórico passado e “que estamos passando de novo o que nossos antepassados passaram, mas de outra forma. Ainda assim, um lugar sem voz, sem vez, tendo que aceitar o que é dado, não sendo sujeito do processo.” e complementa: “Mas a organização e a luta do povo preto continuam. Estamos nos organizando enquanto Povos e Comunidades Tradicionais na região que foi atingida pelo rompimento, fazendo nossa voz chegar. Não é fácil. É uma luta. Os nossos antepassados tiveram isso. Os que vieram trazidos forçados para mineração em Minas Gerais tiveram esse processo”.
Anaíse diz que a data do 13 de maio é uma data em que o povo preto é protagonista. “A minha experiência na comunidade dos Arturos me fez perceber que o 13 de maio é estratégico. Aqui em Minas reúnem pessoas. Reúne o povo de fé do congado, que é o conjunto de irmãos que se visitam. E quando você conversa, você vê que a luta é bem próxima, que um pode ajudar o outro, fazendo bandeira de lutas. Vemos isso no PCTRAMA, todo mundo ali em prol de uma luta.”




Sobre a demanda por reparação, Anaise diz, “a gente continua vivendo em um país que é racista, que é preconceituoso, um país que julga pela cor da pele, não pelo que você traz de história e conhecimento. Eu quero que a gente chegue num momento em que as pessoas engulam o preconceito e não externem seus pensamentos racistas. Eu tenho direito de ser como sou.”
Anaise diz que seu povo luta por reparação desde o 14 de maio de 1888. “A lei disse que não éramos mais escravizados, mas não nos deu mais nada. E os anos de trabalho que a gente teve para deixá-los [brancos] ricos? E nossa indenização por tempo? Por ter perdido as famílias, separado dos filhos, morrido de tanto trabalhar? Hoje, a organização continua, as bandeiras se tornaram outras, não buscamos mais a carta de alforria, porque em tese, ela existe, mas lutamos por direitos, como direito à escola, por que meu aluno negro não estuda? Por que, de repente, ele não consegue ir às aulas todos os dias? Tudo isso é um processo em busca por reparação.”



Anaise também reforça que a luta por reparação histórica tem que passar por dentro, “você tem que estar consciente do seu valor. De onde você vem. Quem é que veio antes de você. Qual a riqueza do seu povo. A ideologia é uma senhora competente, ela veio e foi tirando da gente quem nós somos, a nossa história, o valor que temos, que é diferente do valor que recebo. A gente corre atrás do valor que eles têm de nos passar, seja cuidando do leito dos rios para que eu possa rezar, não contaminando a terra para que eu possa continuar plantando. Não podemos esquecer, somos empoderados sim, temos poder sim, nós pretos e pretas temos que saber dos nossos direitos e nos organizarmos.”
Anaise conta a importância do poder da conscientização infantil e do empoderamento das crianças pretas, que são sujeitos transformadores: “Uma vez falei sobre a revolta dos Palmares em sala. Um aluno de 10 anos me perguntou: O que é uma revolta?”
Anaise trouxe o exemplo, ao contar que o povo negro não aceitava as condições em que era submetido e se revoltava contra a situação e lutava por dignidade.
“Pensa em uma situação que tem uma roda e está todo mundo andando para o mesmo lado. Você percebe que aquele não é o lado que você merece andar e fala: quero que seja ao contrário! E para isso, você faz com que o sistema mude para que ele te atenda da forma que você quer e merece. É quando você fala: não, chega, basta, isso para mim não serve e você vai ter que me ouvir de um jeito ou de outro e me ponha como cidadão de direito!”.
Texto: Felipe Cunha

Veja essa e outras matérias na 18ª edição do Jornal Vozes do Paraopeba