Capacitação dialogou sobre Inventário Participativo do Patrimônio Cultural e reforça a valorização das tradições nas regiões atingidas 

Equipe de PCT da Aedas e Povos e Comunidades Tradicionais das Regiões 1 e 2 | Foto: Felipe Cunha / Aedas

No último sábado, 15 de março, a equipe de Povos e Comunidades Tradicionais da Aedas promoveu uma formação em Direitos Humanos, em Betim, voltada para os Povos e Comunidades Tradicionais das Regiões 1 e 2 da Bacia do Paraopeba. 

O encontro reuniu quilombolas e ribeirinhos de Brumadinho, além dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) e indígenas da Região 2, que abrange os municípios de Betim, Juatuba, Mateus Leme, São Joaquim de Bicas e Igarapé. 

Formação fortalece autonomia e reconhecimento de Povos e Comunidades Tradicionais 

Momento da manhã da formação | Foto: Felipe Cunha / Aedas

A formação em Direitos Humanos teve como objetivo promover o autorreconhecimento e fortalecer a autonomia dos Povos e Comunidades Tradicionais. A atividade foi direcionada à instrumentalização das Unidades Territoriais Tradicionais (UTTs), dos quilombos, de povos indígenas e comunidade ribeirinha, buscando ampliar o acesso a políticas públicas, tanto culturais quanto ambientais e de segurança alimentar, para as comunidades tradicionais das Regiões 1 e 2. 

Uma das metodologias da formação foi a produção de Inventários Participativos do Patrimônio Cultural, fundamentais para o reconhecimento territorial e para a construção de diagnósticos que valorizam as práticas tradicionais. Esses levantamentos permitem que as comunidades tenham maior autonomia na sistematização de dados sobre seu patrimônio cultural e modos de vida, e na definição de suas reais demandas para salvaguardar seus conhecimentos. 

Além de contribuir para a elaboração de políticas públicas, os dados levantados podem ser incorporados em Planos Diretores, planejamentos orçamentários municipais e estaduais e em processos de licenciamento ambiental.  Ferramentas como a Consulta Livre, Prévia e Informada, o Estudo de Impacto do Patrimônio Cultural (EPIC) e o Relatório de Impacto do Patrimônio Cultural (RIPIC) são exemplos de como esse reconhecimento pode influenciar medidas de proteção e reparação integral das comunidades. 

Grupo PCTRAMA | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Além disso, no contexto da reparação em que a Aedas atua, a identificação das referências culturais das comunidades tradicionais atingidas é fundamental para fortalecer o reconhecimento e reparação dos danos coletivos e difusos que atingem o patrimônio cultural material e imaterial. 

O patrimônio material e imaterial, transmitido entre gerações, e a guarda da memória são fundamentais para garantir a continuidade dos valores culturais territoriais.  

Entende-se patrimônio material e o patrimônio imaterial como formas de patrimônio cultural que representam a história e as memórias de um povo. O patrimônio material é composto por bens tangíveis, como edifícios, objetos e monumentos, enquanto o patrimônio imaterial engloba bens intangíveis, como tradições, crenças e manifestações culturais. 

Memória e Ancestralidade: Construção Coletiva do Inventário Participativo para a Proteção do Patrimônio Cultural 

Apresentação da ficha de inventário participativo | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Na parte da manhã, foi realizada uma Mística com o tema “Memória, Ancestralidade e Patrimônio Cultural”. Em seguida, houve uma abordagem conceitual e teórica sobre Patrimônio Cultural, Instrumentos Jurídicos de Proteção e Inventário Participativo. 

Após essa introdução, os povos tradicionais se reuniram em grupos para preencher as fichas utilizadas no inventário participativo:  Ficha de Lugares, Ficha de Celebração e Ficha de Saberes, que foram apresentadas pelas pessoas atingidas ao final da formação. 

Durante o processo, ocorreram debates e uma seleção coletiva dos bens e referências culturais a serem identificados e catalogados pelas comunidades. 

Dessa forma, a equipe desenvolveu o Inventário Participativo como uma metodologia voltada para a defesa do território, a proteção do patrimônio, o fortalecimento das identidades tradicionais e o acesso a políticas públicas culturais, além de outras ferramentas para a reparação dos danos causados à cultura e ao patrimônio. 

Educação patrimonial fortalece territórios tradicionais 

Janaína Moscal e Antônio Sampaio, da equipe PCT Aedas | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Antônio Sampaio, Coordenador da Equipe de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) da Aedas, destaca a importância da formação em direitos humanos promovida pela equipe. A atividade, prevista no plano de trabalho da Aedas, tem como foco o inventário participativo do patrimônio cultural para povos e comunidades tradicionais

“O objetivo desse tema é reconhecer e destacar a cultura enquanto um direito humano. Nesse universo da cultura, estamos dialogando sobre patrimônio, tanto material quanto imaterial. Hoje, temos a presença de povos de terreiro e povos de matriz africana, ribeirinhos, quilombolas e comunidades indígenas”, explica Antônio. 

A formação é dividida em duas etapas. No primeiro momento, são apresentados os conceitos de patrimônio e os órgãos responsáveis e sujeitos por sua preservação. Em seguida, ocorre uma oficina prática, na qual as comunidades e suas lideranças preenchem fichas descrevendo seus bens que identificam como patrimoniais. 

“Essa descrição compõe o inventário participativo, que resulta em um documento que a comunidade pode utilizar para acessar políticas públicas, auxiliar na construção do plano diretor de seus municípios e outras iniciativas”, afirma o coordenador da equipe PCT. 

Elementos dos Povos e Comunidades Tradicionais | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Além de ser uma ferramenta para reconhecimento e valorização cultural, o documento sistematizado do inventário participativo tem um papel estratégico. 

“As comunidades reconhecem seus patrimônios, mas é essencial que essas informações estejam organizadas de forma que possam ser dialogadas, apresentadas e levadas a organizações e entes que possam reconhecê-las oficialmente”, destaca. 

A educação patrimonial, segundo Antônio Sampaio, é um elemento essencial para a defesa dos territórios tradicionais

“Quando o patrimônio é reconhecido, ele precisa ser protegido, assim como os seus detentores, que são os responsáveis por mantê-lo vivo. A preservação do patrimônio é, também, a proteção dos territórios e dos modos de vida tradicionais”. 

Formação em direitos humanos para reparação e a presença da Aedas 

Nina de Castro, Gerência Geral Eixo Diretrizes da Reparação do Acordo Judicial na Aedas | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Durante a formação em direitos humanos voltada para os povos e comunidades tradicionais, Nina de Castro, da Gerência Geral do Eixo de Diretrizes da Reparação do Acordo Judicial na Aedas, destacou a importância dessa atividade dentro do processo de reparação. Segundo ela, a metodologia da Aedas busca contemplar aspectos que vão além do que está previsto no Acordo Judicial. 

“A formação em direitos humanos foi pensada dentro da metodologia da Aedas para contemplar uma parte da reparação que não é prevista dentro do acordo judicial, porque as atividades relacionadas ao acordo são a prioridade dentro do Plano de Trabalho 06. Mas existe também uma parte da reparação que está fora do acordo, e que é direito das pessoas atingidas ter esse conhecimento”, explica. 

A proposta da formação é oferecer um panorama sobre outros direitos humanos e fundamentais que também são essenciais para a reparação e a proteção das comunidades atingidas. 

Apesar de não estar diretamente ligada ao acordo judicial, a formação em direitos humanos e o uso do inventário participativo são ferramentas essenciais para a luta das comunidades atingidas. 

“Esse conhecimento é um mecanismo de luta importantíssimo, inclusive para que essas comunidades possam reivindicar seus direitos dentro dos anexos do acordo”, finaliza. 

Inventário participativo fortalece a cultura e os direitos dos povos indígenas 

Lideranças do povo Aranã, de Juatuba | Foto: Felipe Cunha / Aedas

João Índio e Maria Marlene, lideranças do povo Aranã, de Juatuba, destacaram a relevância da oficina para a preservação dos saberes tradicionais e para a luta contra os impactos da mineração. 

“Entrei aqui com zero conhecimento e saí bastante munido de informação. Foi muito proveitoso”, contou João Índio.  

Maria Marlene explicou que, durante a atividade, as comunidades preencheram fichas sobre seus saberes tradicionais, o que permitiu registrar e valorizar elementos importantes da cultura indígena. Ela compartilhou um exemplo: 

“Nós fizemos uma ficha sobre os Saberes, e eu falei sobre o nosso Chamego, que é algo que veio dos nossos avós ancestrais há muito tempo, e que a gente continua carregando. Depois, vamos passar para nossos filhos, netos e dar continuidade. O Chamego é uma bebida dos Aranãs, feita com o quiabinho, que é uma planta que temos. O pessoal a chama de vinagreira, de hibisco, mas a gente conhece como quiabinho desde sempre. Desde pequena, minha mãe falava: ‘Ah, vamos fazer o Chamego, quiabinho’”, relatou. 

Maria Marlene, lideranças do povo Aranã, apresenta seus saberes tradicionais | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Além do reconhecimento cultural, a formação também trouxe reflexões sobre os impactos da mineração na vida dos povos indígenas. João Índio destacou as mudanças que atingiram os modos tradicionais de vida da comunidade Aranã, especialmente em relação à pesca. 

“O impacto da mineração na comunidade Aranã é muito forte. A gente tinha o hábito, o costume, a prática de pescar. Os povos iam na pescaria, e de repente chegamos no rio e estava com uma placa de ‘proibido pescar, proibido nadar’. Aí vem uma pergunta muito perigosa: o que vai acontecer com nossos filhos daqui para frente? Por exemplo, os filhos nossos não sabem pescar. Isso é sério. Numa comunidade indígena, os filhos menores não sabem mais pescar. Nossos netos não saberão o que é pesca, porque o rio está contaminado. O impacto dentro de uma comunidade indígena é grande demais”, alertou. 

Ele reforçou que a formação e o inventário participativo são ferramentas fundamentais para a garantia dos valores e saberes ancestrais, permitindo que as futuras gerações continuem reconhecendo e protegendo sua cultura. 

“A formação é importante para ter esse reconhecimento, esse inventário participativo. É muito importante para que possamos seguir com nossos valores. Nós recebemos esses valores dos nossos ancestrais, dos nossos antepassados, e temos uma responsabilidade muito grande: garantir que os que estão vindo agora possam seguir esses conhecimentos e saberes”, concluiu João Índio. 

Saberes tradicionais e memória coletiva: a importância do inventário participativo 

Márcia Medeiros, da Comunidade Tradicional Ribeirinha Rua Amianto, em Brumadinho | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Márcia Medeiros, da Comunidade Tradicional Ribeirinha Rua Amianto, em Brumadinho, destacou a importância da oficina e compartilhou memórias sobre as tradições locais, que foram atingidas pelo rompimento da barragem da Vale. 

“Citei o exemplo do nosso modo de fazer o bolinho de feijão, nossa quitanda, uma tradição de família. A gente fazia aquele procedimento de colocar de molho, moer e temperar com os temperos verdes da horta, do quintal. Os vizinhos eram muito unidos. Muitas vezes, nos juntávamos nas casas uns dos outros para fazer as quitandas, preparar carne de lata. Também tinha a troca de ervas medicinais: quando alguém precisava de um chá, buscava na casa do vizinho para tratar alguma doença. Além disso, utilizávamos o rio para pesca e lazer. Essa era a nossa rotina antes do rompimento. Era algo muito bom, mas infelizmente agora não temos mais muitas dessas coisas, porque não podemos mais utilizar o rio por conta do que aconteceu”, lamentou. 

A oficina possibilitou não apenas a troca de experiências, mas também a valorização dos saberes tradicionais e o reconhecimento da necessidade de protegê-los. 

Grupo de preenchimento de ficha do inventário participativo | Foto: Felipe Cunha / Aedas

“Foi uma troca de conhecimento. A interação foi muito boa. Gostei muito, porque pude participar e posso levar esse aprendizado para a comunidade”, afirmou Márcia. 

Ela reforçou a importância de registrar e enviar as informações sobre os saberes tradicionais para os institutos responsáveis, garantindo que a cultura das comunidades ribeirinhas seja preservada para as futuras gerações. 

“Valorizar e proteger os saberes tradicionais das comunidades é fundamental. Um dos exemplos é essa ficha do inventário participativo, que pode ser enviada para os institutos. Isso é importante porque mantém viva a tradição, para que possamos passá-la para aqueles que ainda estão vindo: as crianças, os netos, os sobrinhos. Precisamos manter viva nossa cultura”, concluiu Márcia. 

Proteção da natureza e saberes ancestrais: a importância do inventário participativo 

Mãe Kimazandê, integrante dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) | Foto: Felipe Cunha / Aedas

Para Mãe Kimazandê, integrante dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA), a atividade trouxe reflexões essenciais sobre o cuidado com o patrimônio natural e a preservação dos saberes ancestrais. 

“Foi uma formação muito produtiva. Com ela, nós aprendemos muita coisa, até mesmo como lidar com o material tão grandioso que a natureza nos dá. E, como estávamos falando de patrimônio, representamos uma cachoeira, que para nós é muito importante. Aprendemos como cuidar desse patrimônio, como preservar o que é nosso e ensinar o próximo sobre essa importância”, destacou. 

Durante a oficina, os participantes discutiram formas de proteção e uso sustentável dos bens naturais.  

Grupo de preenchimento da ficha de inventário participativo | Foto: Felipe Cunha / Aedas

“Falamos sobre tomar conta e cuidar de um bem que é nosso. Sobre ensinar as pessoas a importância da preservação e o que podemos fazer. Poder realizar um casamento, um banho ritualístico, ensinar como limpar aquele espaço, mostrar para os nossos povos tradicionais o valor da natureza. Tudo isso faz parte da nossa cultura e da nossa identidade”, explicou. 

Além do reconhecimento dos bens patrimoniais, a formação também apresentou ferramentas jurídicas e institucionais que podem auxiliar as comunidades na luta por seus direitos. 

“Aprendemos sobre legislações e onde esses direitos se encaixam. Foi mais uma lição, uma orientação para todos nós. Uma formação que trouxe uma ferramenta que também pode servir de apoio, um suporte muito grande. Saber que podemos nos organizar e batalhar por essa luta tão importante nos fortalece ainda mais”, concluiu Mãe Kimazandê. 

Texto e fotos: Felipe Cunha | Aedas