Estudos de risco seguem acontecendo sem consulta aos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs)
Em março, a Comissão PCTRAMA elaborou uma Carta de reivindicações e enviou às IJ’s exigindo respeito ao critério de autodeclaração e cumprimento do Protocolo de Consulta Prévio já existente.

Ato realizado em Juatuba, Região 2 da Bacia do Paraopeba, pelos Povos e Comunidades Tradicionais de Religião Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) | Foto: Rurian Valentino
Lideranças dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) da Bacia do Paraopeba e Lago de Três Marias denunciam a forma como os Estudos de Avaliação de Risco a Saúde Humana e Risco Ecológico (ERSHRE), custeados pela mineradora Vale S.A, vem ocorrendo ao longo dos 29 municípios atingidos pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrido em Brumadinho.
Entre as queixas apresentadas, está o indicativo de aplicação de um Protocolo de Consulta padrão e a não disponibilização do Plano de Trabalho para a avaliação dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs).
Os estudos são conduzidos pelo Grupo EPA (Engenharia de Proteção Ambiental) e foram estabelecidos em Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo Ministério Público (MP) junto à Vale S.A, em fevereiro de 2021.
Destaca-se a importância destes estudos por terem como objetivo identificar os riscos potenciais à saúde humana e ao meio ambiente devido à presença de contaminantes químicos na Bacia do Rio Paraopeba, bem como definir estratégias integradas de intervenção para os territórios atingidos pelo rejeito.
Como são os estudos?
Os ERSHRE se dividem em três projetos: Estudos de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH) no âmbito da Saúde Pública; Estudos de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH) no âmbito do Meio Ambiente; e Estudos de Avaliação de Risco Ecológico.
Organizados em 5 fases:
1- Levantamento de preocupações das comunidades e de informações sobre saúde e meio ambiente;
2- Coletas de amostras ambientais;
3- Avaliação de risco;
4- Elaboração de um plano de gestão integrando saúde e meio ambiente e;
5- Execução do plano de gestão integrada.
A última fase é a única que não será executada pelo Grupo EPA, ficando sob responsabilidade do Poder Público.
A aprovação dos planos de trabalho, bem como o acompanhamento e fiscalização dos ERSHRE se dá por algumas instituições.
Importante saber que a auditoria dos estudos é de responsabilidade da AECOM, o acompanhamento geral é realizado pelos compromitentes, enquanto a Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais (SES) e Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SISEMA) são responsáveis pela análise, acompanhamento técnico, fiscalização e aprovação das etapas dos estudos.
Assessoria Técnica Independente (ATI)
A Aedas acompanhou os estudos durante a execução das primeiras etapas da Fase I através do acompanhamento das pessoas atingidas nas reuniões de nível 1 e nível 2, virtuais e presenciais.
No entanto, o principal espaço de informação sobre o desenvolvimento dos estudos é na reunião mensal da auditora AECOM, na qual é apresentado o balanço das atividades executadas no mês anterior.
Nestas reuniões, a Assessoria Técnica Independente (ATI) participa exclusivamente como ouvinte, não havendo espaço para falas, dúvidas e/ou intervenções. A partir das informações apresentadas na reunião da AECOM, a Aedas dialoga com as comunidades atingidas para potencializar a participação informada.
Atualmente a Fase I dos estudos está em processo de finalização, contudo sem a participação de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), pois o plano de trabalho que está sendo executado não previa a participação e metodologia específica para PCTs, povos a quem é imposto historicamente um contexto de iniquidade e violação de direitos.
Destaca-se que no Acordo Judicial para reparação dos danos está afirmado em consideração as especificidades dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Protocolo de Consulta

Lançamento do Protocolo de Consulta em Belo Horizonte | Foto: Lucas Jerônimo – Aedas
Tal cenário impôs aos Povos e Comunidades Tradicionais a necessidade de se dedicar a identificar as problemáticas, bem como de mobilizar para reivindicar seus direitos.
Sendo assim, a Comissão de atingidos(as) formada por representantes dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA) da Região 2 da Bacia do Paraopeba, tem acompanhado desde o início as discussões sobre os referidos estudos, bem como sua execução no território, em busca de compreender como será sua realização.
Histórico de cobranças
Entre ofícios, notas e cartas, foram realizados oito envios desde março de 2022 para tentativa de diálogo com as Instituições de Justiça. Em março de 2022, a Comissão PCTRAMA encaminhou ofício para o Grupo EPA questionando como se daria a inclusão dos PCTs nos estudos, dando ênfase à garantia da participação com respeito aos protocolos de consulta prévia.
Quatro meses depois, a empresa auditora em sua reunião mensal pontuou a presença recorrente de ribeirinhos nas reuniões de comunidades, lembrou que a esses povos é assegurado o direito de consulta a partir dos seus protocolos adequados conforme Convenção 169 da OIT, Decreto nº 6.040/2007 e PL (MG) nº 883/2011.
A auditora ainda orientou que o Grupo EPA ao iniciar reunião fizesse questionamentos-chaves sobre a presença de PCTs na reunião – sobre a existência de protocolo de consulta estabelecido pela comunidade; sobre o desejo de permanecer ou não na reunião em curso. Em acordo, os compromitentes orientaram que PCTs não participariam das atividades dos estudos, até que fossem definidas tratativas específicas.
Sem previsão de um plano de trabalho que contemplasse os PCTs, em agosto de 2022 foi enviado as Instituições de Justiça (IJs) o “Produto J”, no qual as ATIs sistematizaram as atividades realizadas para o acompanhamento dos ERSHRE. As ATIs pontuaram a falta de metodologia específica que contemple os PCTs em suas tradições e a não previsão do cumprimento do Protocolo de Consulta e das normativas internacionais na metodologia dos estudos, dentre outras intercorrências na condução dos estudos pelo Grupo EPA.
Também em agosto do mesmo ano, o Grupo EPA foi autorizado a desenvolver e apresentar o plano de trabalho para as comunidades tradicionais, no entanto, a princípio reconhecendo apenas nove comunidades tradicionais, considerando um reconhecimento prévio pela FUNAI e Fundação Cultural Palmares. Contudo, além destas, outras 86 comunidades foram apontadas como tradicionais pelas ATIs em toda a bacia do Paraopeba.
No mês seguinte, em setembro de 2022, os compromitentes solicitaram as ATIs as informações sobre os PCTs que estavam dentro das áreas alvo dos ERSHRE. A Aedas disponibilizou o detalhamento das comunidades tradicionais que estão localizadas nas áreas alvos.


A assessoria também elaborou ofício fazendo a defesa da inclusão dos PCTs que utilizam das áreas alvo para seus rituais, abordando a expansão das áreas alvo dos estudos, tendo em vista a possível exposição e riscos à saúde. Nos ERSHRE, “áreas alvo” são áreas afetadas delimitadas de acordo com suas características em comum tanto em relação às feições do meio físico, quanto em relação às características socioeconômicas.
Respostas
Apenas em janeiro de 2023, a Comissão PCTRAMA recebeu resposta dos compromitentes acerca dos ofícios enviados ao longo do ano de 2022, onde informa oficialmente a esta Comissão que a elaboração do projeto específico já estava em andamento, com previsão de ser apresentado durante o primeiro bimestre de 2023. A partir deste momento, nas reuniões da AECOM passa a utilizar o termo “PICTs”, sigla para “Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais”.
Em março, a Comissão PCTRAMA elaborou uma Carta de reivindicações e enviou às Instituições de Justiça na qual, dentre outras temas, solicitou com relação aos ERSHRE a análise do plano de trabalho específico, o respeito ao critério de autodeclaração e cumprimento do Protocolo de Consulta Prévio já existente.
Nesse contexto, em abril de 2023, os compromitentes enviaram ofício às ATIs sobre a temática, no qual reforçam o respeito a legislação de proteção aos PCTs e a elaboração de metodologia específica para desenvolvimento dos ERSHRE.
Afirmam que será garantida a Consulta Livre, Prévia e Informada as comunidades certificadas e autor reconhecidas existentes nas áreas alvo dos estudos, que serão respeitados os Protocolos de consulta já elaborados e apresenta o “Protocolo Padrão de Consulta” a ser oferecido para ajuste para comunidades que não possuírem.
A proposta de construção do protocolo de consulta padrão para as comunidades que não tem esse instrumento se alinha a resolução ilegal e inconstitucional da SEDESE e SEMAD de nº 01, de 04 de abril de 2022, que foi revogada em 31 de maio de 2023 e fere a legislação internacional que resguarda os Povos e Comunidades Tradicionais.
Tida como importante ferramenta de luta, o Protocolo de Consulta fortalece e integra a luta dos PCTs em contextos de racismo e desigualdade socioeconômica. Contemplando os modos de vida desses povos e comunidades, resguarda as suas práticas religiosas tradicionais, profundamente conectadas com os elementos da natureza, em toda a sua diversidade.
Este instrumento reafirma direitos garantidos pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, pela Constituição Federal e por outras legislações federais e estaduais, deixando nítida a necessidade de que o Estado e demais organizações estejam em constante observância ao que dizem os povos tradicionais sobre projetos que os impactam.
Embora o comitê de compromitentes e o Grupo EPA já tenham afirmado em diferentes momentos o atendimento a OIT 169, as decisões acerca dos ERSHRE seguem acontecendo em diálogos restritos ao Grupo EPA, AECOM e compromitentes para correções e atualizações deste plano, sem participação dos PCTs e ATIs.
Um ano após as primeiras iniciativas de diálogo com as Instituições de Justiça, sem respostas satisfatórias, a Comissão PCTRAMA publicou uma carta aberta ao público onde reivindica, mais uma vez, a participação na validação do plano de trabalho, o respeito aos protocolos de consulta e ao critério de autodeclaração. Atualmente, já foram apresentadas oito versões do projeto por parte do Grupo EPA desde o primeiro bimestre de 2022.

Foto: Lucas Jerônimo | Aedas
Pendências
Permanecem pendências e incongruências importantes apontadas pela auditoria AECOM quanto a adequação da utilização do “nexo de causa” conforme o documento das “Diretrizes para elaboração de Estudos de Avaliação de Risco à Saúde Humana por exposição a contaminantes Químicos (2010)”, do Ministério da Saúde, e ao detalhamento da avaliação de “vulnerabilidades sociais” e “riscos adicionais”, entre outras.
Ainda assim, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES) aprovou e disponibilizou a versão final do plano de trabalho específico para conhecimento e análise dos compromitentes, da auditoria AECOM e da Vale S.A.
O Grupo EPA deu início a formação e treinamento da equipe de execução, elaboração do plano de trabalho de campo e o desenvolvimento da programação e cronograma, indicando uma previsão de iniciar os contatos com as pessoas atingidas no segundo semestre de 2023.
Enquanto isso, a nota de denúncia encaminhada pela Comissão PCTRAMA em julho deste ano manifesta que até o momento não foi compartilhada nenhuma versão do projeto. A Comissão PCTRAMA avalia que o cenário é de mais violação de direitos e um grande desrespeito.
Somente 14 meses após os primeiros questionamentos e solicitações por parte da Comissão PCTRAMA, os ERSHRE seguem em execução, deixando os estudos com os povos tradicionais com mais de um ano de atraso.
A Comissão PCTRAMA e a Aedas consideram indispensável a análise prévia da metodologia e a validação do plano de trabalho específico elaborado pelo grupo EPA, por parte dos representantes dos Povos e Comunidades Tradicionais que devem participar dos estudos.