Cristiane Dias e Iridiani Seibert, coordenadoras da Equipe de Monitoramento de Gênero da Aedas, falam sobre o documento

Ao todo, o Dossiê Temático contará com seis capítulos. O primeiro, divulgado no início desse ano, trouxe um Perfil das Mulheres Atingidas pelo rompimento da barragem da Vale S/A nas regiões 1 e 2.
No capítulo 2 do Dossiê Temático de Mulheres, foram reunidos todos os danos divididos em Temas (Áreas Temáticas), seguida de análises e reflexões sobre eles, com argumentos técnicos e jurídicos, afirmando as mulheres como sujeito de direitos.
1) Qual o papel da equipe de monitoramento de gênero?
A equipe surge atrelada as equipes de mobilização, acompanhando os territórios e as mulheres atingidas. Depois percebe-se que o papel desempenhado, estava mais ligado as áreas temáticas, que é de qualificar e sistematizar os danos sofridos pelas mulheres, pensar processos metodológicos e de incidência da equipe e dos debates de gênero em outras pautas. Esse acompanhamento, avaliação e o monitoramento dos espaços participativos e a construção de documentos/metodologias/pareceres tem o propósito de levantar as diferenças e desigualdades enfrentadas especificamente pelas mulheres atingidas, objetivando, assim, a equidade de gênero no processo de reparação.
A equipe tem um papel central e pioneiro nas discussões dos grupos prioritários, seja na Matriz, nos Anexos, ou nos espaços participativos, a fim de que as mulheres e toda a heterogeneidade das pessoas atingidas se vejam e sejam vistas.
2) O que é o dossiê temático de gênero?
O Dossiê é um compilado do trabalho da equipe em todas as frentes prioritárias de atuação sistematizando propostas, ações concretas e efetivas e desafios para a Reparação dos Direitos Violados das Mulheres. Além de um documento, é um instrumento de sistematização e análise de dados técnicos referentes a todas as frentes de trabalho, atividades, espaços participativos e acúmulos, elaborações, análises, pesquisas, estudos e propostas da Equipe de Monitoramento de Gênero da R1 e da R2, que busca a construção de um processo de reparação justo e equitativo para as mulheres Atingidas. Um documento de memória, e de visibilidade do protagonismo das mulheres atingidas na mobilização e organização comunitária no processo de reparação integral na Bacia do Paraopeba.

3) Como foi seu processo de elaboração? Tempo de produção, quem estava envolvida, levantamentos teóricos, etc..
O dossiê surge em discussões internas da equipe de Monitoramento de Gênero, que viu a necessidade de desenvolver um documento mais robusto e que reunisse todas as nossas produções a partir das mulheres atingidas. As coordenações aprovaram e passou a fazer parte do Plano de Trabalho a Assessoria. A partir desse momento, todas as técnicas e as coordenações da equipe começaram a pensar em um roteiro e os pontos principais que gostaríamos de elaborar, como número de capítulos, que serão 06, e estamos na elaboração do terceiro capítulo, e dos dados que partiríamos e quais referencias teóricas debateríamos em cada um deles. São dois Dossiês, um na R1 e outro na R2, embora eles sejam espelhados entendemos que são produções próprias, pois cada território tem uma realidade diferentes, assim como as mulheres atingidas. Cap 01: Outubro/2022 – Cap 02: Fevereiro/2023.
4) Como se deu a metodologia para o levantamento dos dados? Quais ferramentas, espaços, etc, foram utilizados?
Para a elaboração do capítulo 2, esse que será lançado no mês de março, e que reuni e discute os danos e agravos à vida das mulheres atingidas, além dos direitos violados, partimos dos acúmulos do trabalho da assessoria. O ponto central na sistematização dos danos foi o levantamento feito pelas Consultorias especializadas, 06 na R1 e 09 na R2, dos dados do Registro Familiar, o RF, as medidas sistematizadas na Matriz de Medidas Emergenciais Reparatórias, os Pareceres de Vulnerabilidade, além de dados sistematizados nos espaços participativos como o Grupo de Atingidos e Atingidas – GAAs, no caso o GAA Enchentes, as Rodas de Diálogos – RDs Mulheres e Mulheres Quilombolas e Seminários Temáticos de Mulheres – STMs.
Assim, a equipe começou a levantar todos esses danos em um banco de dados, com divisões em tema, subtema, dano, descrição/fundamentação do dano sob uma perspectiva de gênero, fonte, natureza do dano. Isso foi feito no intuito de garantir uma categorização dos danos a partir das áreas temáticas de diagnóstico da AEDAS e ao mesmo tempo garantindo, que esses danos identificados, tivessem rastreabilidade a partir da identificação das fontes.
Já para o capítulo 1, a fonte de dados foi o RF, contamos com o apoio da equipe de Gestão da Informação e levantamos e cruzamos dados de mais de 23 mil pessoas cadastradas, entre R1 e R2. Levantando dados desde o perfil de gênero, raça e geração, até escolaridade, renda, classe e categorias de trabalho. Tudo isso para termos um panorama de quem são as mulheres atingidas.

5) Após o levantamento dos dados, como o dossiê foi dividido/estruturado?
Com o banco de dados elaborado partimos para organização e análise desses dados. Dividimos o conjunto de danos em 6 temas, que são as áreas temáticas trabalhadas pela Aedas e cada tema tem uma análise com questões técnicas e jurídicas. Além disso o capítulo conta com uma introdução teórica e jurídica com leituras feministas e um capítulo metodológico, no qual apresentamos detalhadamente cada fonte de dados e como utilizamos.
6) A partir dos dados levantados, quais os principais danos que atingiram a vida das mulheres na R1? E na R2?
É muito difícil apontar os “principais”, pois existe um conjunto de danos que se articulam e possuem desdobramento e nuances diferentes. Mas pensando quais os danos que as mulheres vêm apresentando com maior frequência são os danos relacionados a saúde, delas próprias e de seus familiares. E quando estamos falando de saúde são desde a saúde reprodutiva dessas mulheres, até a saúde física, por estarem mais expostas (no ambiente doméstico) a poeira no momento da limpeza e de produtos químicos, como também a saúde mental/psicológica, um adoecimento constante, de luto, de violações, de sobrecarga de trabalho e de violência. Esse é um outro dano latente, o aumento de violência doméstica, nos territórios e de assédios
O aumento o trabalho doméstico e a perda de renda e de autonomia financeira das mulheres também é um dano recorrente nos territórios, na R1 a gente tem essas questões muito mais ligadas ao trabalho rural, da produção agrícola e na R2 mais ligada a pesca e contaminação das águas. Percebam que todos esses exemplos se articulam. Os danos, agravos e violações na vida das mulheres funciona assim, atrelado, isso porque são elas também as responsáveis pela manutenção dos laços comunitários e familiares e da preservação da sociobiodiversidade.

7) Quem são as mulheres atingidas?
Estamos falando de uma diversidade de mulheres com atravessamentos e violações múltiplas também. São mulheres que vivem em áreas rurais e urbanas, de Comunidades e Povos Tradicionais, quilombolas, profissionais de diversas áreas de atuação, pescadoras, trabalhadoras rurais e camponesas, são meninas, mulheres jovens, mulheres idosas, são negras, indígenas, brancas. Todavia, alguns dados são importantes destacar: 64% das mulheres atingidas de Brumadinho se declaram negras, 65% na R2. A maioria estão na faixa etária entre 25 e 54 anos, idade laboral. Todavia, são elas que estão na precariedade do trabalho, do trabalho informal, autônomo ou desempregadas. Dos dados das que possuem trabalho, 40% estão em trabalho informal em Brumadinho, e 57% não exercem trabalho remunerada, já na R2 o número de mulheres no trabalho informal sobe para e 47%, e 57% não exerce trabalho remunerado. Essa foi uma discussão bastante analisada no capítulo 1 “Perfil das Mulheres Atingidas” que já está disponível no site da Aedas, nele também fazemos discussões sobre classe, acessos à bens e serviços públicos e as intersecções com outros debates como o racismo ambiental e a divisão sexual do trabalho.
8) Sobre os dados e danos revelados no dossiê. O que vocês observaram em relação ao impacto do rompimento na saúde física e mental das mulheres atingidas?
As mulheres experenciam os danos à saúde de maneira aprofundada. Isso devido a diversos fatores: são elas as responsabilizadas socialmente pelos trabalhos domésticos e de cuidados – trabalhos que foram intensificados em decorrência do rompimento da barragem, assim, além da sobrecarga de trabalho, sofrem também os efeitos da maior exposição à poeira de rejeito de minério à água contaminada; elas são as que mais sofrem com a insegurança em suas casas e comunidades devido à circulação de pessoas estranhas; historicamente, são elas as grandes mobilizadoras sociais e responsáveis pelos laços comunitários, portanto, tiveram seus modos de vida, sua sociabilidade, relações de troca e solidariedade e redes de apoio afetados; sofrendo, dessa forma, os danos à saúde física, mental e emocional de forma intensificada.

9) Quais tipos de violências foram levantados e potencializados pelo rompimento na vida das mulheres? Como isso impactou seus modos de vida?
O rompimento impôs às comunidades o convívio com pessoas estranhas ao território – funcionários terceirizados das obras de reparação e outras atividades ligadas à mineração -, gerando para as mulheres um grande sentimento de insegurança em circular em suas comunidades – sendo frequentes os relatos de assédio sofrido por elas. Soma-se a isso o sentimento de insegurança em deixar as crianças e jovens circularem pelas comunidades. Ademais, em cenários de territórios vulnerabilizados, observa-se o aumento do consumo de álcool e outras drogas, o que acaba acarretando o aumento do índice de violência doméstica sofrida pelas mulheres.
10) De que forma o rompimento sobrecarregou o trabalho doméstico e os cuidados na vida das mulheres?
Devido ao rompimento, as pessoas adoeceram ou tiveram suas condições de saúde preexistentes agravadas – seja física, mental ou emocionalmente. Em consequência também do rompimento, as pessoas vivem um cenário de insegurança hídrica, insegurança alimentar, têm suas casas invadidas pela poeira de rejeitos de minério, e seus espaços de lazer e educação comprometidos. Isso impõe uma sobrecarga de trabalho às mulheres – e também às meninas – do território, pois são elas as responsabilizadas socialmente pelos trabalhos domésticos e de cuidados. São elas que cuidam dos familiares adoecidos das mais diversas maneiras: seja no cuidado com a alimentação, na administração dos remédios, na marcação e acompanhamento de consultas médicas; são elas que cuidam dos jovens e das crianças que tiveram seus espaços de lazer e educação destruídos e, em consequência, encontram-se mais tempo no espaço doméstico; são elas as responsáveis pela gestão hídrica em suas casas, atentando para a obtenção e utilização de água em quantidade e qualidade suficientes para o consumo, para o preparo de alimentos, para a limpeza da casa e para a higiene pessoal; são elas também as responsáveis pela gestão alimentar em seus domicílios, cuidando cultivo e da obtenção de alimentos seguros e suficientes para a satisfação alimentar e nutricional; e, por fim, podemos apontar também o fato de as mulheres serem as sujeitas responsáveis pela limpeza de suas residências, tendo esse trabalho fortemente intensificado pós rompimento, devido à suspensão de poeira de minério de rejeitos decorrente, que, incessantemente, invade suas casas e torna a manutenção da limpeza de suas casas um trabalho sem fim.

11) Quais os principais danos ao meio-ambiente e a água e como estes atingiram a vida das mulheres?
Em relação ao meio ambiente e à água, destacam-se os danos relativos à poluição do ar e das águas. Podemos observar um grande impacto na vida das mulheres no que diz respeito à saúde e aos trabalhos domésticos de cuidado. A poeira de rejeitos, bem como a água contaminada ocasionam sérios danos à saúde das pessoas atingidas. Responsabilizadas pelos cuidados dos familiares doentes, as mulheres se veem sobrecarregadas. Em decorrência também da suspensão dessa poeira contaminada, bem como da poluição das águas, as mulheres sofrem os danos da sobrecarga de trabalhos domésticos no esforço de manter suas casas limpas e higienizadas. Mais expostas ao contato com a poeira e com a água, as mulheres se veem mais suscetíveis às doenças decorrentes, bem como aos danos à saúde mental e emocional devido à toda sobrecarga a elas imposta.
12) Como e por que o rompimento atingiu o âmbito do trabalho, acarretando perda financeira das mulheres?
Em decorrência do rompimento, as mulheres tiveram seus trabalhos domésticos e de cuidados fortemente intensificados. Assim, adstritas ao âmbito doméstico, elas se veem muitas vezes impedidas de exercerem atividades laborais geradoras de renda fora desse espaço. Ademais, podemos citar danos referentes à contaminação dos quintais produtivos – historicamente cuidados pelas mulheres –, impactando suas rendas, uma vez que, impedidas de consumir sua produção e de realizar operações de troca comunitária desses produtos, elas são obrigadas a comprar produtos que antes produziam e, dessa forma, comprometem sua renda.

13) O que se pôde observar até o momento? Momento de conclusões do dossiê de forma geral.
As mulheres sofrem mais em contextos de transformações socioambientais, pois as desigualdades de gênero são aprofundadas e quando interseccionada com outros marcadores de desigualdade social de raça e classe os efeitos são ainda maiores, afetando significativamente a vida dessas mulheres atingidas. Nas mais diversas áreas de suas vidas, elas sofrem os danos de maneira diferenciada e, sendo assim, essas especificidades devem ser levadas em conta para que uma reparação integral de fato seja possível.
14) Por fim, qual a importância do dossiê para as atingidas e para a reparação integral dos danos?
O dossiê sistematiza e aponta as análises demonstrativas de como as mulheres sofrem os danos de uma maneira própria e/ou diferenciada e intensificada. Dessa forma, temos um instrumento que conjuga observações dos desdobramentos das violações de direitos vivenciadas por essas mulheres, servindo de subsídio para a luta por uma reparação justa e integral, que leve em consideração que diferentes sujeitos sofrem os danos de diferentes maneiras e, portanto, suas especificidades devem ser tidas em conta no processo reparatório. Destacamos também que o direito a memória e a construção de narrativas que denunciam e visibilizam a constituição e/ou agravamento desses danos específicos é essencial para rompermos com a revitimização e garantirmos a reparação justa e integral para as mulheres atingidas.
15) Como os dados apresentados pelo dossiê podem contribuir para a luta por direitos das mulheres nesse 8 de Março?
Entendemos que o processo de reparação só será de fato integral, justo e igualitário ao reconhecer essas mulheres atingidas como sujeito de direito e que com o rompimento da barragem de Brumadinho tiveram suas vidas modificadas, direitos violados e agravamentos no que diz respeito a desigualdade entre os gêneros e na conquista de direitos. O 08 de março, data marco na luta e na organização política das mulheres em todo o mundo, também deve reforçar a luta de resistência e protagonismo dessas mulheres nesse processo de reparação, resistindo em seus territórios. Quando as mulheres falam, não estão falando apenas sobre seus corpos, mas de toda uma coletividade, que integra as comunidades, o meio ambiente e seus modos de vida. Os dados do capítulo dois do dossiê temático traz um conjunto de direitos violados e de danos às suas vidas e de seus territórios, esse é um momento de visibilizar e de criar memoria, para que as mulheres, e outros grupos prioritários, não sejam esquecidos, para que elas sejam vistas e se vejam nessa luta pela reparação integral.
Por Felipe Cunha
