Liquidação coletiva: a inversão do ônus da prova na busca pela reparação individual
Confira perguntas e respostas sobre o tema de inversão do ônus da prova e suas implicações no contexto da reparação individual

A equipe de Estratégias Jurídicas da Reparação reuniu alguns pontos, para compartilhar com as pessoas atingidas, que podem ajudar a entender melhor o que é a inversão do ônus da prova, quando ela pode acontecer, e como tem sido discutida nos processos contra a Vale S.A, mineradora responsável pelo rompimento.
Nesta quinta (24/10) haverá a segunda sessão de julgamento, ocasião na qual esperamos que seja confirmada a inversão do ônus da prova com o julgamento do terceiro desembargador, que pediu vista do processo.
1. O que é a inversão do ônus da prova?
O ônus da prova é um termo jurídico que orienta a responsabilidade de quem tem o dever de provar se houve ou não o dano. No caso da inversão, o pedido é que a obrigatoriedade de provar que não houve o dano tem que ser de quem causou o dano, ou seja, a Vale, conforme previsto em lei e essencial para garantir a efetividade da reparação.
Este termo jurídico é compreendido como uma facilitação da proteção do direito das pessoas consideradas hipossuficientes dentro de uma relação processual, que impõe a responsabilidade do réu de contrapor os argumentos e provas que validam a existência do dano e a relação entre os fatos e os danos. Assim, a parte ré do processo deverá apresentar provas que confirmem a não ocorrência dos fatos e dos danos.
Este reconhecimento de hipossuficiência é feito pelo juiz, mas também pode ser requerido pela parte autora. A hipossuficiência pode ser reconhecida pela falta de condições materiais, informacionais e técnicas para a produção de provas que comprovem a materialidade e extensão dos danos.
A previsão desta possibilidade está contida no art. 6º, VII do Código de Defesa do Consumidor e no art. 21 da Lei da Ação Civil Pública.
2. Qual importância dela no processo do Paraopeba?
A inversão do ônus da prova é muito importante no processo reparatório do rompimento bacia do Rio Paraopeba e a região do Lago de Três Marias, pois garante maiores chances de reconhecimento de direitos para a população atingida frente a desigualdade de forças contra a mineradora. Muitas provas dos danos sofridos são de alta complexidade e podem necessitar de perícia específica, o que custa caro na justiça.
Entendemos que a importância da inversão do ônus da prova neste processo significa que em casos de análise se uma pessoa é atingida ou não, se os seus danos devem ser indenizados ou não, quem tem que provar é a própria empresa.
Isto porque estamos falando de um rompimento que causou diversos danos socioeconômicos e socioambientais em comunidades em situação de vulnerabilidade diante de grandes empresas. Esses são apenas alguns pontos sobre a importância da inversão do ônus da prova, pois a manutenção da decisão inicial contribui para a luta de toda a população atingida na busca por direitos já reconhecidos em lei.
3. O que as IJs e ATIs já defendem?
As IJs defendem que o ônus da prova deve ser da mineradora, pois ela é a responsável pelos danos causados, utilizando o código de defesa do consumidor para subsidiar seu pedido, além da condição das pessoas atingidas. A partir desse entendimento, os atingidos se assemelham ao consumidor e polo mais frágil da relação, cabendo a Vale a comprovação de que não causou o dano ou que o dano não tem relação com o rompimento, e não o contrário.
Além disso, decorre do regime jurídico dos atingidos por barragens e do próprio sistema de tutela jurídica coletiva a necessidade de inversão do ônus da prova, impondo ao empreendedor/causador dos danos o dever de refutar as afirmações tecnicamente fundamentadas pelos autores da ação civil pública.
Defendem que é possível sim nesse momento, visto que a liquidação coletiva inaugura uma nova fase do processo e, por isso, há permissão legal para que a questão do dever de provar os fatos seja rediscutida. Nesse sentido decidiu o Juiz Murilo de Abreu em dezembro de 2023, inversão do ônus da prova em favor das pessoas e comunidades atingidas nas ações indenizatórias.
4. O que a empresa vem argumentando sobre o tema?
A Vale recorreu da decisão do Dr. Murilo Silvio de Abreu que determinou a inversão do ônus da prova e impôs à mineradora o dever de “provar as refutações que fizer às afirmações das Instituições de Justiça, da Perícia e das Assessorias Técnicas Independentes que estejam lastreadas em laudos ou relatórios técnicos.
A Vale defende que as Instituições de Justiça possuem condições e recursos suficientes para comprovar a existência dos danos e o reconhecimento dos sujeitos atingidos. A Vale tenta se eximir da responsabilidade de reparar os danos ao defender a inversão do ônus da prova, gerando mais dificuldades para os atingidos terem seus direitos reconhecidos, garantidos e os seus danos indenizados. Ou seja, a Vale quer transferir para as pessoas atingidas a obrigação desproporcional de identificar danos, valores e provas de forma individualizada. Todos os argumentos já foram rebatidos pelas Instituições de Justiça. Entendemos que a empresa tem recursos financeiros e técnicos para produzir provas.
Quanto à coisa julgada, a alegação da empresa não se sustenta, por ser a liquidação uma nova fase no processo e se baseia em fundamentos diferentes daqueles analisados em outro momento. Isto porque o procedimento de liquidação coletiva inaugura um novo momento processual, com objeto autônomo e diverso em relação àquele da fase de conhecimento, não havendo que se falar, portanto, que decisão proferida nesta etapa processual viole a coisa julgada (decisão definitiva).
5. O que decidiu o juiz de primeira instância, Dr. Murilo de Abreu?
O Juiz concordou com a ampliação do estudo pericial da UFMG para incluir novas categorias de danos e abranger mais grupos de pessoas atingidas; Apontou a necessidade de inclusão dos danos identificados pelas ATIs e com base nos estudos e no diálogo com as pessoas atingidas; Determinou a inversão do ônus da prova, ou seja, indicou que é dever da Vale comprovar a ausência de danos e a condição de pessoa atingida, ou seja, determinou a inversão do ônus da prova; por fim, concordou com a necessidade da liquidação de maneira coletiva, através de um sistema de indenizações simplificado a ser construído. Sobre este sistema, o juiz ainda determinou que pretende criar uma plataforma eletrônica que irá integrar a fase de elaboração da Matriz de Danos com a fase de execução da sentença. Ou seja, por meio da plataforma, após o levantamento e valoração dos danos, cada interessado poderá fornecer dados e documentos necessários para comprovação e pedir a indenização devida de forma simplificada e rápida; por fim, reconheceu a legitimidade do Ministério Público para representar as pessoas atingidas também nessa fase do processo.
6. Como os desembargadores já votaram?
O Desembargador relator, André Praça Leite negou pedido de liminar da empresa em fevereiro e abril desse ano e a decisão segue válida.
No dia 10 de outubro, o TJMG formou maioria sobre o andamento da liquidação coletiva. A maioria dos desembargadores apresentou concordância com a resolução coletiva das indenizações, ficando pendente somente esse ponto da inversão do ônus da prova.
Para o Desembargador relator André Leite Praça, a decisão sobre a inversão do ônus da prova é correta com base no entendimento do STJ e representa uma:
“Medida que facilita a produção de provas por parte dos atingidos e evita que a superioridade técnica e econômica da Vale se transforme em um obstáculo instransponível para a realização da justiça. O STJ reconhece que nos casos de grande complexidade e impacto social a inversão do ônus da prova é ferramenta processual legitima para garantir o acesso à justiça e a efetividade da tutela coletiva”.
O Desembargador Marcus Vinícius Mendes divergiu do posicionamento de André Praça Leite, considerando não ser possível a inversão do ônus da prova por entender que as Instituições de Justiça têm condições de arcar com a produção de provas.
Próximos passos
No dia 24/10 teremos a segunda sessão de julgamento, ocasião na qual esperamos que seja confirmada a inversão do ônus da prova com o julgamento do terceiro desembargador, que pediu vista do processo.
Texto: equipe de Estratégias Jurídicas da Reparação