Após 5 anos, comissão reúne familiares na busca por três vítimas fatais ainda não encontradas

Placa com o nome das 272 joias em Brumadinho – Foto: Felipe Cunha | Aedas

Cinco anos, 1.826 dias, 72 meses, 313 semanas. São números que medem o tempo de uma dor que não tem medida, de uma data que parece ter sido ontem para as famílias das 272 vítimas fatais do rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho. Três pessoas, com trajetórias interrompidas e famílias abaladas, ainda seguem não encontradas.

“Parece que o tempo não passou, porque o tanto que ainda dói, minha saudade. Como é difícil falar deles sem chorar”, conta Natália de Oliveira, professora em Brumadinho (MG). Natália perdeu a irmã, Lecilda de Oliveira, que trabalhava na mineradora há 28 anos.

De 2019 até 2021, Natália, sua mãe e sobrinhos aguardaram pelo encontro de Lecilda. Foram meses e anos de uma ausência dolorosa que abalou a vida dos familiares. Foi durante este período que a família de Lecilda se juntou a outras 10 famílias que continuavam aguardando pelo encontro de seus familiares, carinhosamente chamados de “joias”. Fruto dessa união, foi criada a Comissão dos Não Encontrados, para fortalecer as famílias na busca por seus entes queridos.

Lecilda de Oliveira com o uniforme da mineradora, local onde trabalhou por 28 anos. Foto Arquivo pessoal.

“Esse trabalho da Comissão dos Não Encontrados, ele é um trabalho feito por um motivo sagrado: os nossos ficaram ali”, conta Natália. “Lá atrás, quando havia 11 [pessoas] para serem encontrados, nós fizemos um compromisso. Ninguém sabia quando e onde, quem seria a primeira joia, dessas 11, e quem seria a última. A gente fez o compromisso de permanecer junto. Nós viramos uma grande família, mesmo os que sepultaram e os que não sepultaram, nós estamos ali juntos”, completou.

No dia 29 de dezembro de 2021, mais de três anos após o rompimento, o corpo de Lecilda foi identificado. Ainda assim, a dor e luta de Natália continuam junto com o compromisso de apoio às famílias que aguardam pelo encontro das três joias ainda não encontradas.

Homenagem às vítimas fatais durante a Romaria Pela Reparação Integral de Brumadinho no dia 25 de janeiro de 2024 – Foto: Felipe Cunha | Aedas

“É irreparável, é injusto, é pra sempre. Hoje, quando eu acordo, depois de 5 anos do rompimento, eu queria que, pelo menos, eu desejaria que todos ali, mortos, tivessem sido resgatados da lama, identificados, e que a família pudesse fazer seu sepultamento”, afirmou.

Para Natália, a história das buscas em Brumadinho diz respeito à Corporação do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, mas, principalmente, à luta permanente das famílias desde 2019 até hoje. “A Comissão dos Não encontrados ela nunca mudou. Nós vimos a área, a lama correr rápido. Nós vimos a lama parar, a lama estacionar, a lama secar, ela ficar toda quebradinha, vimos os matos nascerem, de ter que fazer poda. Ninguém nos contou isso. Isso nós vivenciamos nesses cinco anos”.

O amor move

Balões em homenagem às 272 joias soltos em Brumadinho, quando o rompimento completou 5 anos – Foto: Felipe Cunha | Aedas

Natália também comenta sobre a pesada responsabilidade da luta por memória e da força motriz que move as famílias na luta por encontro e memória. Para ela, o amor é o que movimenta as famílias nas adversidades, inclusive contra a injustiça, a ganância e a falta da lei.

“Nada é maior que o amor. O amor supera tudo, o amor é a mola compressora de tudo. O amor nos move. Eu não sabia que era uma pessoa forte. Mas quando a gente se depara com uma situação que não tem outra possibilidade. Quem vai lutar pela Lecilda? Quem vai lutar por todas as outras joias que ainda estão lá? Somos nós, os familiares. Porque, para as outras pessoas, eles são apenas um número. Agora para nós eles jamais serão um número”, afirmou Natália. Ela lembrou ainda das músicas que marcaram sua adolescência com a irmã e de suas comidas prediletas: broinha de canjica e sequinhos.

As três vítimas ainda não encontradas:

Maria de Lurdes da Costa Bueno, 59 anos

Moradora de São José do Rio Pardo (SP), estava de férias com a família em uma pousada em Brumadinho. O local foi soterrado pela lama da barragem. Seu marido, Adriano Ribeiro, seus dois enteados Camila Taliberti e Luiz Taliberti e uma nora, Fernanda Damian também morreram no rompimento.

Nathália de Oliveira Porto Araújo, 25 anos

Estagiária na mineradora Vale. Deixou dois filhos e o marido.

A família de uma das vítimas fatais não encontradas pede que não seja publicada a foto de seu familiar.

‘Vocês têm coragem de dormir tranquilo?’

Natália, que tem problemas com o sono e chega a tomar mediação para dormir, relata que se tivesse todo o dinheiro do mundo, faria outdoors (placas gigantes com propagandas) por toda parte com perguntas:

“Eu ia querer que a Vale, eu ia querer que a Tuv Sud, eu ia querer que o governo, que os acionistas, que a mídia me respondessem: vocês têm coragem de dormir tranquilo? Vocês fizeram diferença? Vocês tiveram empatia com essas mortes? Vocês demonstraram essa empatia em algum gesto?”, contou.

Para Natália e tantos outros familiares, as indenizações pagas pela mineradora andam longe de reparar o sofrimento e ausência sentidos ao longo desses 5 anos.

“A minha irmã não Vale o que a Vale me pagou por ela. Mas se a Vale tivesse dado todo o dinheiro dela também não valeria. Uma simples alegria de ver o carro dela chegar na frente da casa da minha mãe, e ela descer com os filhos. Nunca mais. Quando os filhos dela chegam, o coração dói. Porque ela nunca mais vai chegar”, conta com a voz embargada.

Antes e depois do rompimento

Natália lembra de que quando viu o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), que ocorreu três anos antes do rompimento em Brumadinho. Ela conta que ficou impressionada, passou alguns minutos de frente à TV e que depois seguiu sua vida. Ela não imaginava que tempos depois um rompimento de barragem traria tanta dor à sua vida.

“Eu estava de férias, feliz, estava em casa assistindo uma série, quando as mensagens começaram a chegar falando do rompimento da barragem. E ali, naqueles minutos após o assassinato dos nossos, eu morri também, porque a Natália que eu era jamais, eu acho, jamais ela será a mesma porque tudo dá medo, tudo é gatilho, tudo lembra a dor, tudo dá revolta, tudo dá tristeza”, lembra ao contar do dia 25 de janeiro de 2019.

Natália, que é professora, relata falta de sono e necessidade de medicamentos para dormir. Ela se queixa da noção do tempo e da sensação ruim trazida pelo modo como o rompimento ceifou a vida dos familiares.

“O relógio não para, as coisas vão continuando a girar, girar, girar. É como se eu tivesse naquele mar de lama onde eles foram chacoalhados, esquartejados, despidos, mortos de uma maneira tão cruel. E a sensação que eu tenho é que ainda eu estou ali. E que igual a mim há outras, eu não sou a única”, relatou.

Primeiros dias de buscas

Angustiada e preocupada com irmã, Natália saiu de madrugada nos primeiros de buscas após o rompimento. Ela deu voltas no cerradão, na comunidade do Tejuco, em Brumadinho, e chegou a ver o trabalho dos Bombeiros nas primeiras horas da manhã.

“Eu já estava lá com meu marido e andando lá dentro. Quando eles [Bombeiros] chegaram perto de mim e falaram: ‘Senhora, a senhor atem que sair’. E eu falei: ‘Agora eu posso sair’”, relembra.

Natália também contou sobre a primeira imagem que a impactou: a estrutura do pontilhão destruída pela lama.

“Fiquei muda, fiquei em estado de choque quando eu vi aquele viaduto partido. Eu só olhava pro tamanho do viaduto, a largura dos sombreiros dele e pensava nas toneladas de cimento, nas toneladas de arame e pensava assim: Se essa lama derrubou esse pontilhão, se essa lama amassou, estraçalhou caminhões, vagão, máquina, eu só pensava na fragilidade de um corpo humano”.

Ao lembrar da quantidade de rejeito que chegou a ver durante todos os seus percursos pela área do rompimento, Natália define como “surreal” as dimensões da lama. “Meu Deus, estava ali, cabia dentro daquele buraco esse tanto de rejeito?”. Foram cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de produção mineral despejados com o rompimento em Brumadinho.

“Eles não estão desaparecidos”

A expressão “não encontrados” é usada pelos familiares que já não consideram que seus entes estejam desaparecidos. Natália lembra do diálogo feito com a equipe de Bombeiros, quando as famílias tiveram essa compreensão. “Eles não estão desaparecidos, eles foram trabalhar, eles estavam lá. Vocês só não os encontraram para nos devolvê-los”, disse lembrando de conversas com as equipes de busca.

Sensacionalismo na mídia

Um prato cheio para o sensacionalismo, o número de vítimas e a magnitude do rompimento foram pautas da grande mídia. Natália e os familiares reclamam da falta de ética e de preocupação com o emocional das famílias.

“A mídia mais uma vez passa por cima dos familiares. Corre para dar a informação sem saber que aquilo dói, sem saber que o pai, a mãe, os irmãos, se eles seriam avisados antes. E muitas vezes a gente viu que as famílias ficaram sabendo, e nós brigamos por isso também, pedimos o respeito, que ninguém deveria saber por uma notícia da imprensa”.

A professora aponta que as matérias sobre Brumadinho hoje não têm mais o destaque que tinham na época do rompimento.

“Por trás disso tudo, tem as pessoas cujos olhares nunca saíram dali. A Comissão é a única que nunca, em momento algum, não desistiu. A Comissão dos Não Encontrados é a única que não esmoreceu, que brigou, que chorou, que gritou, que não aceitou. São tantas coisas que as pessoas nem imaginam, do que a mídia passa e a nossa realidade”, afirma Natália.

A despedida

“Nós enterramos a Lecilda no final do ano (2021), chovendo, foi um dia muito triste, com muita chuva. Passou uns dias e a minha mãe falou: ‘Eu lembrei da Le hoje, mas ela não foi mais o meu primeiro pensamento do dia’. Porque você pode ter certeza, que a gente esperou o telefone tocar e falar: agora é a Le, chegou a vez dela nessa fila, chegou o dia de despedirmos dela”, relembra Natália.

Para ela, o principal é que todo mundo despeça de sua joia, a encontre e possa dar um pouco de dignidade para a sua família.

“Apesar de que não existe dignidade em caixão fechado. Fez dois anos que eu me despedi da minha irmã. Foi importante sim, esse ritual. Mas eu queria ter colocado a mão nela. Queria que fosse em caixão aberto. Eu queria despedir da Lecilda vendo o sorriso dela, vendo o rosto dela, o cabelo dela”, diz Natália emocionada.

Mesmo com a dor, Natália fala da gratidão que tem por ter convivido com a irmã.

“No fundo, no fundo, eu sou muito grata. Grata a Deus por ter deixado um ser igual a Lecilda aqui no meio da gente. A minha irmã não faz falta só pra minha família, ela não faz falta só na minha vida não. Ela faz falta pra muita gente”.

Leia também:

Texto: Valmir Macedo

Leia essa e outras matérias na edição 26 do Jornal Vozes do Paraopeba