Uma história contada nos espaços da Ciranda da Aedas

Ilustração: Freepik

Era uma vez um quilombo. E chamamos de quilombos as comunidades que hoje são formadas por descendentes de negros que no passado foram escravizados. A vida lá sempre foi boa. As crianças cresciam soltas nadando no rio, catando fruta do pé e indo para a escola da comunidade. Já os adultos faziam coisas de adultos: pagavam suas contas, iam trabalhar e ver jornal à noite. E os mais velhos à tardinha sentavam na porta das casinhas para observar o pouco movimento local e conversar sobre a vida. Era assim no quilombo liberdade. Um bom nome, para um bom lugar. Mas houve um dia em que algumas coisas começaram a dar muito errado: primeiro as plantações locais começaram a murchar e produzir menos, os animais de criação começaram a adoecer e por fim as crianças e os idosos também ficaram doentes. Tosse, manchas na pele, dor de barriga… Muita gente no Quilombo Liberdade reclamava desses problemas, mas por não saberem o que causava tudo isso, todos achavam apenas coincidência e nada faziam.

Mas acontece que nessa mesma comunidade moravam a Dara, o Gil e o Luiz, colegas de classe e amigos inseparáveis de aventuras desde que ainda engatinhavam. Quando não estavam na escola, estavam pelas redondezas aprontando suas peripécias. Esse trio de crianças teve que se separar por um tempo porque Gil ficou doente com aqueles mesmos sintomas da doença misteriosa, teve até que se internar no hospital e o trio de crianças se separou. Tristes, Dara e Luiz um dia se perguntaram o porquê aquilo estava acontecendo e como fazer para ajudar o amigo a se recuperar o mais rápido possível. Inteligentes e inquietos como eram, tiveram uma ideia, iam pesquisar por uma resposta. Dara foi para o laboratório de informática da escola e Luiz para a biblioteca. De um jeito ou de outro eles queriam descobrir a causa daquela doença misteriosa que atingia o Quilombo e, assim como muitas outras crianças da comunidade, havia deixado seu amigo Gil doente. Os dois haviam combinado de se encontrar a noitinha, debaixo de uma grande mangueira na pracinha do Quilombo, lugar em que antes o trio de amigos costumava brincar de se balançar nos galhos e comer manga a vontade. Lá, cada um ia falar o que havia descoberto ao pesquisar sobre a doença misteriosa.

Pois bem, assim o fizeram, primeiramente Luiz falou. Ele descobriu na biblioteca que aqueles sintomas podiam significar que a água que eles estavam usando no quilombo estava contaminada. Ele leu isso nos livros de biologia que encontrou e os quais gostava muito de folhear na escola durante o intervalo. Ele falou também que dentre muitas coisas que podem contaminar a água que ingerimos estão os metais pesados, tipo o mercúrio e chumbo. Mas isso não explicava por inteiro o porquê de aquilo estar acontecendo na comunidade. Faltava alguma coisa…

Depois foi a vez de Dara compartilhar o que descobriu xeretando na internet. Dara descobriu que a alguns quilômetros do Quilombo Liberdade existia uma grande mineradora, viu também que no processo de mineração são usados metais pesados para separar o ferro do restante da terra. Descobriu ainda várias denúncias e acusações feitas a essa empresa em outros cantos do país por praticarem o racismo ambiental. Ela explicou pra Luiz que racismo ambiental é quando as grandes empresas escolhem os locais pertos de comunidades de pessoas muito pobres, indígenas ou negras para despejar seus dejetos, ou seja o lixo tóxico, que elas produzem causando assim muito mal a essas pessoas. Elas escolhem esses lugares por pura discriminação de cor, raça ou etnia acreditando que por serem mais humildes e minorias essas pessoas não vão saber cobrar seus direitos e aí as empresas ficam livres para poluir naqueles territórios sem nenhuma consequência para elas. Logo a parte da explicação que faltava se completou: a doença misteriosa só podia ser fruto da contaminação da água do rio causada pela mineração. Pronto, agora eles podiam botar a boca no mundo e dizer para os adultos do Liberdade o que possivelmente estava acontecendo com a comunidade. Mas como fazer isso?

A ideia que Dara teve foi a seguinte, aproveitando que os três estudavam na mesma classe, na aula do dia seguinte, pediram a palavra para a professora Carolina porque tinham um assunto muito importante para falar à turma. Contaram sobre tudo que tinham descoberto e sobre como aquela situação não podia mais continuar. Mas, que eles como crianças não podiam fazer muita coisa a não ser cada um dos alunos do 5º ano explicasse para seus pais e familiares a origem do problema, a professora que ficou surpresa com a iniciativa deu a ideia de eles fazerem um jornalzinho para ser distribuído para as famílias e demais pessoas da comunidade. Ela mesmo ia ajudar imprimindo. E, como todos ali estavam também com saudade de Gil, toparam e assim o fizeram logo no dia seguinte.

O cenário agora era esse: todo o Quilombo Liberdade só falava nisso, elogiavam a iniciativa de Dara e Luiz e até as senhoras fofoqueiras das portas da rua cochichavam sobre como tinham sido espertas aquelas crianças. Não demorou nem uma semana os adultos do lugar marcaram sua primeira reunião para discutir o que fazer com aquele problema. Que medidas tomar. E, claro que as crianças do 5º ano estavam todas ali presentes ouvindo tudo. Logo, tiraram dali uma comissão de pessoas que foram procurar o ministério público e denunciar a situação. Enquanto as demais foram para frente do fórum de justiça protestar pelos seus direitos e contra toda aquela situação de racismo ambiental que estavam sofrendo. As crianças ajudaram fazendo os cartazes de protesto. Essa manifestação se repetiu algumas vezes até que, enfim, a justiça obrigou a

mineradora a parar a mineração até que todos os problemas nas plantas, nos animais e nas pessoas fossem resolvidos. Nesse dia houve uma grande festa de comemoração no quilombo liberdade, pois todos tinham a certeza de que seus problemas tinham acabado de vez e logo tudo voltaria ao normal como antes: as crianças iriam, saudáveis, voltar a escola e brincar como de costume, os adultos, saudáveis, trabalhar e assistir tv como antes, e os idosos, saudáveis, sentar-se às portas das ruas para papear como antes. Dara e Luiz até ganharam uma medalha simbólica do povo da comunidade por sua inteligência e coragem frente àquele problema. E vejam só qual não foi a surpresa e alegria dos dois ao descobrirem que quem iria entregar as medalhas era o seu amigo Gil, que estava superfeliz em rever os amigos, já com a saúde recuperada, tinha acabado de voltar pra comunidade. Depois de abraçarem Gil com um longo sorriso no rosto, Dara e Luiz se olharam e falaram juntos:

-Valeu a pena, Dara.

-Sim, valeu a pena Luiz.

Autor: Dheimes de Moura, pedagogo na Ciranda Aedas

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