As comunidades quilombolas de Brumadinho (Sapé, Rodrigues, Ribeirão e Marinhos), o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e AEDAS se reuniram virtualmente, no dia 15 de abril, para ouvir as reivindicações das comunidades quilombolas após acordo fechado entre a poluidora Vale, as Instituições de Justiça de Minas Gerais e o Governo do Estado, bem como propor recomendações às empresas e instituições competentes.

A Aedas é a Assessoria Técnica Independente que acompanha as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Vale nas regiões 1 (Brumadinho) e 2 (Betim, Igarapé, Juatuba, Mário Campos e São Joaquim de Bicas) da Bacia do Paraopeba e que, assim como as pessoas atingidas, não teve acesso aos documentos e não participou do processo de negociação do acordo firmado no dia 4 fevereiro de 2021.

O pedido da reunião foi feito ainda em 16 de dezembro de 2020, fruto dos diálogos entre as comunidades quilombolas de Brumadinho, Aedas e Conaq, em sintonia com a articulação popular que vinha se dando ao longo da Bacia do Rio Paraopeba. Na ocasião, encaminharam um ofício ao CNDH e à 6º Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), responsável pelos temas relacionados à indígenas e povos tradicionais, para que fossem adotadas medidas imediatas que parassem as violações aos direitos dos atingidos e atingidas.

As organizações se baseiam também no descumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário (ou seja, o país assina e deve implementar). A normativa assegura que povos e comunidades tradicionais sejam previamente consultados sobre ações em seus territórios que afetam seus modos de vida.

A reunião tinha como intuito coletar os relatos das participantes sobre o acordo, já que as comunidades não foram escutadas e se sentiram violadas durante a negociação, pois o conteúdo era sigiloso e logo depois se tornou confidencial. O CNDH também pretendeu ouvir sobre os direitos das comunidades que estão sendo violados para além do acordo.

Maria Matuzinha, idosa de ativismo constante no Quilombo Rodrigues, reitera que o acordo foi feito sem participação da comunidade e que, para além disso, o auxílio emergencial caiu para metade do valor. “Estão sendo tomadas ações sem consultar, parecendo que não fomos atingidos, que a gente não teve dor e sofrimento e que a cabeça da gente continua a mesma. É muita gente sem dormir, ás vezes sem se alimentar. Preocupada porque esse crime tão horroroso aconteceu. Durante a minha vida nunca tinha ouvido falar em acontecer um crime tão horroroso como esse, em que as pessoas são enterradas vivas. Como falar que a gente não foi atingido? A gente foi muito atingido. Muito mesmo!”, diz emocionada.

Um assunto também levantado na reunião, ocorrida no mesmo dia da Audiência Pública na Câmara dos Deputados, foi o Rodoanel. Conhecedora do lugar que vive, Matuzinha expôs suas reivindicações. O Rodoanel vai trazer mais complicações não só para nós quilombolas, mas para o todo. Mais desmatamento, mais asfalto, mais poluição e pode trazer mais consequências para afetar não só eu que estou mais velha, mas fico muito preocupada com o que será dos meus bisnetos, dos filhos deles. Fico imaginando porque o governo quer implantar esse rodoanel, será que tem necessidade? No lugar que mais precisa, como nós do quilombo, não acontece. Foi tão falado na continuidade do asfalto de Aranhas até Sapé. Imagino que deveria ser até a Casinhas, que é a divisa de Moedas com Brumadinho”, propôs.

A prioridade das falas foi das comunidades, e então a moradora do Quilombo Marinhos, Nair de Fátima Silva, afirmou que direitos quilombolas estão sendo violados. “Não fomos consultadas em momento nenhum do acordão. Desde antes os direitos já estavam sendo violados, a partir do momento que teve essa tragédia, que houve essa matança. Eles pensam que não fomos atingidos porque moramos acima do ocorrido. Mas, tirando as famílias que perderam familiares, essas comunidades são as mais atingidas”, relata. Isso porque os danos, de acordo com seu depoimento e outros dados que vêm sendo levantados pela assessoria, foram de grandes dimensões. As comunidades quilombolas ficaram por três meses sem nenhum recurso para atravessar dos quilombos ao centro de Brumadinho, ficando isoladas.

De acordo com a moradora Nair, que também é congadeira, a vida foi completamente alterada após o rompimento. “Nossas compras eram feitas em Brumadinho e os motoristas não levavam para as comunidades. Sempre com medo de outra barragem romper. Inauguraram outra ponte e no mesmo dia, com uma grande chuva, a ponte desabou. Atualmente, a ponte está em funcionamento, foi arrumada. Mas não tem como passar pela ponte e não lembrar de tudo o que aconteceu. À noite ainda passamos com muito medo, pois não tem como ver nada”, diz.

O pagamento emergencial da Vale é outra grande queixa. “Além dos pagamentos que estão sendo feitos pela metade, houve também suspensão de pagamento, sem qualquer informação da Vale sobre o motivo”, expõe e segue indignada. “Num lugar onde morreu tantas pessoas, não tem nenhum culpado. Até hoje ninguém foi punido. A gente espera a justiça divina. Muitos conseguiram fugir, correndo para o meio do mato, ficando perdido. Duas vidas da comunidade de Marinhos foram embora e os direitos não são reconhecidos. Às vezes a gente tem até medo de falar, sem esperança, porque as pessoas violam os direitos e não tem o que fazer”, relembra.

Como já vem sendo comum, as lideranças quilombolas que estão à frente dos processos de luta são as mulheres. Na ocasião, Olízia Braga, do Quilombo Ribeirão, diz que a Vale já foi um sonho de emprego para muitos, mas hoje dão graças por não ter conseguido. “Se trabalhar lá, vai morrendo de medo, pois é um campo minado e correndo o risco de morrer a qualquer momento. Com seis anos, meu sobrinho já tem um trauma muito grande sem nem entender o que é o assunto”, informa Olízia, trazendo com firmeza o abalo à saúde mental das comunidades.

“Do lado de cá, somos muito dependentes da mineração. Ter que passar por aquele caminho todo dia e nada disso mudar, somos atingidos, sim. Dependência deles, daquele caminho, da mineradora. Os governantes que põem no papel os programas para quilombolas. Tudo acontece na sede, mas não trazem para cá. Espero que a gente não tenha mais que sair de madrugada para ter acesso aos benefícios. A gente não tem informação. Chegam tarde pra gente, por não termos internet, telefone. O ritmo é esse, como tratam a gente: fazem os projetos deles e depois dizem que os quilombolas e as pessoas da zona rural não quiseram participar. Sendo que a gente só fica sabendo depois, quando as vagas já terminaram. Até das reparações que puderem acontecer, a gente não tem garantia que vamos ser assistidos. Mesmo quando se fala em benefício, a gente tem medo de não ter os benefícios garantidos”, afirma Olizia sobre a situação de participação e da descrença em relação às ações da poluidora.

As representantes da Aedas presentes na reunião, expuseram os trabalhos que a assessoria vem desenvolvendo e explicaram o funcionamento dos espaços participativos. A assessora de mobilização, Naiade Britto, informa que houveram casos no quilombo de Rodrigues de pessoas que perderam a visão, por não conseguirem ir às consultas médicas. No caso de Marinhos, mulheres que ficaram sem conseguir fazer o pré-natal por conta do isolamento. “A Aedas está apoiando as comunidades quilombolas na formulação dos projetos, a partir do que já levantamos nos registros familiares, nas rodas de diálogo e nos Grupos de Atingidos e Atingidas (GAAs). A assessoria também construiu uma Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais, que está sendo utilizada no levantamento dos projetos que são urgentes e emergenciais, tanto no anexo 1.3, em relação aos projetos da Bacia do Paraopeba, como no anexo 1.4, com relação às demandas do município de Brumadinho”, explica.

A assessora reforçou que negar informação já é uma violação de direitos e informa que um dos anexos do acordo fala sobre as reparações socioeconômica, e contempla um Programa de Transferência de Renda – com duração de 4 anos – que vai substituir o auxílio emergencial, com valor de 4,4 bilhões, e os critérios ainda estão sendo construídos.

A partir do determinado no acordo, os Compromitentes (MPF, MPE, DPE), a Coordenação Metodológica-Finalística (PUC-MG) e as Assessorias Técnicas Independentes chegaram a uma proposta de método para garantir a consulta informada prevista no Acordo. Assim, nos GAA’s, foi apresentado as propostas de critérios e de enquadramentos para o novo Programa de Transferência de Renda.

A conselheira do CNDH, Sandra Andrade, reforçou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o autorreconhecimento é suficiente para o acesso a direitos e que a Conaq está apoiando o autorreconhecimento das quatro comunidades. De acordo com ela, em Minas Gerais há cerca de 1.132 comunidades quilombolas e 345 delas tem seu autorreconhecimento certificado pela Fundação Cultural Palmares.

De acordo com Cleide Hilda, coordenadora da área de Patrimônio, Cultura e Lazer e Esportes da Aedas, as 4 comunidades têm seu autorreconhecimento, com certificado pela Fundação Cultural Palmares, mas não possuem titulação definitiva do território.

A reunião foi finalizada de forma encaminhativa. Leandro Scalabrin, conselheiro do CNDH, solicitou um texto sobre o processo de titulação das comunidades e sugeriu que também seja feita uma recomendação à Fundação Palmares sobre o caso. Para o conselheiro, o trabalho deve se dar em três frentes: pagamento emergencial e Programa de Transferência de Renda; indenizações individuais e projetos de interesse a constarem no Acordo.

** Com informações do CNDH