Atingidos dos territórios relataram insegurança diante da instabilidade financeiras das ATIs e da falta de garantia de recursos para os próximos anos 

Anunciado em março, um corte dos recursos para as assessorias técnicas independente (ATIs) na Bacia do Paraopeba reforçou o cenário de instabilidade na manutenção dos instrumentos de acesso à direitos e a participação informada dos atingidos nos territórios. 

Na última terça, dia 9 de maio, centenas de atingidos de todas as regiões da Bacia do Rio Paraopeba compareceram à audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em Belo Horizonte. A audiência foi realizada na Comissão de Administração Pública.  

Os cortes de recursos para as ATIs já vêm sendo debatidos por parlamentares. No último dia 10 de abril, ocorreu uma reunião das Comissões Externas sobre Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação com as Instituições de Justiça (IJS), as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) e representações dos atingidos na sede do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).   

É possível assistir à gravação da audiência pelo canal da ALMG no Youtube. Clique e acesse a gravação.

Instabilidade financeira das ATIs 

Na audiência dessa terça (09), a advogada e coordenadora institucional da Aedas no Projeto Paraopeba, Flávia Gondim, explicou que a instabilidade com as assessorias técnicas independentes (Aedas, Guaicuy e Nacab) já vinha ocorrendo nos últimos anos. O repasse para as ATIs não estava sendo feito nas datas corretas e os planos de trabalho elaborados não foram aprovados de maneira definitiva. 

“A gente chega no ano de 2023 nesse contexto, com um histórico de repasses que não foram feitos na data correta, e isso já é uma instabilidade para as assessorias técnicas. A gente já está numa situação de instabilidade financeira, porque não tivemos o plano aprovado. Escrevemos vários planos e os repasses não foram feitos na data correta”, afirmou Flávia. 

Flávia Gondim, coordenadora institucional da Aedas no Projeto Paraopeba. Foto: Valmir Macêdo/Aedas

O último Plano enviado pelas ATIs foi parcialmente aprovado em fevereiro de 2023, mas sofreu um corte de 50% no orçamento previsto, forçando uma desmobilização massiva antecipada ainda no primeiro semestre de 2023, com a demissão de técnicos por conta da falta de recursos.  

Flávia Gondim explicou que o plano de trabalho foi orientado pela CAMF (a Coordenadora de Acompanhamento Metodológico e Finalístico). A CAMF é a assessoria das Instituições de Justiça no trabalho de assistência técnica feito pelas ATIs. É a CAMF quem coordena, em nível de bacia, os trabalhos das assessorias. 

A advogada criticou o corte e o avalia como um desperdício de recursos pelo trabalho feito anteriormente.  

“Na prática, depois de três anos, nós seguimos sem plano de trabalho e todo o esforço para a escrita que foi feito, todo o esforço que foi feito para a gente ter esse lastro de ter uma aprovação de recurso organizado foi inviabilizado pelo corte. E sobretudo pela maneira como esse corte foi feito”, reforçou Flávia. 

Cartaz de atingida da comunidade de Aranha, em Brumadinho.
Falta de garantia para as ATIs nos próximos 3 anos 

A coordenadora da Aedas também pontuou como preocupante o cenário futuro de manutenção das assessorias, para além do primeiro semestre de 2023.  

“O corte foi feito no meio do semestre, no mês de março, e falando apenas do recurso para um semestre. Qual o valor que nós vamos receber no próximo semestre? Nós não sabemos. Qual é o valor para os três anos, o valor global? Nós não sabemos. Essa é uma pergunta importante que já foi feita pelas três ATIs”. 

Atingidas e atingidos relatam insegurança 

“Não há reparação sem a voz dos atingidos e não há voz dos atingidos sem as ATIs”, estava escrito no cartaz erguido por Maria Santana Alves, atingida pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. 

Foto: Uiara Costa/Aedas

Na audiência pública, pessoas atingidas de vários municípios da Bacia do Paraopeba foram à tribuna reivindicar o direito à assessoria técnica e à participação informada, na cobrança por participação popular no processo de reparação.  

Ilza Márcia, atingida do Bela Vista, em Brumadinho (MG), se emocionou ao falar do papel das assessorias. Ela comparou a ferramenta de acesso à direitos com suas ferramentas de trabalho. “Sem minha pá, sem meu rodo, sem minha vassoura, eu não sou ninguém. Agora se tirarem as ATIs da minha mão, eu vou ficar em vão”, contou. 

Monalisa Cardoso, do município de Paraopeba, na Região 3, vê o corte como uma retirada de direitos. 

“O direito à assessoria foi muito comemorado e falado pelas IJs. ‘Isso é um direito, isso é novo, vocês estão conseguindo’. Então quer dizer, nós conseguimos um direito e agora querem tirar o nosso direito? É uma estrada de mão dupla, está muito estranha essa situação”, disse Monalisa, que é vereadora no seu município. A assessoria da região é feita pelo Nacab, Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragem.   

Quesia Martins, da comunidade de Santa Cecília, em Pompéu (MG), falou da importância das assessorias no reconhecimento da população enquanto atingidos e atingidas e do acesso a direitos que não conhecidos pelas pessoas. 

“As assessorias chegaram e estenderam à mão para a gente. E falaram: vocês têm direito à reparação, vocês são atingidos. Porque a Vale insiste em nos dizer que nós não somos atingidos, mas colocam uma placa no nosso município dizendo que nós não podemos pescar. E aí, vai se entender. Mas quem chegou lá foram as ATIs, que caminhou conosco, que nos levantou, que nos acendeu um fio de esperança”, relatou Quésia. A assessoria das regiões 4 e 5 são feitas pelo Instituto Guaicuy. 

Joelisia Feitosa, que é representante da Comissão de Atingidas e Atingidos do Satélite, em Juatuba (Região 2), considerou o corte das assessorias como mais uma diminuição da participação dos atingidos na reparação.

 “Eu acho que não dá pra justificar que precisa reduzir recursos para nós que já estamos sofridos, que já estamos humilhados, que já estamos sem dignidade, que estamos sem saúde. Eu acho que esqueceram que morreram 272 pessoas assassinadas covardemente. E que hoje a gente ainda vive no nosso território as dores das pessoas que não conseguem mais levar o sustento pra casa, que têm o rio no fundo do quintal, mas não têm como comer o peixe que ali viviam, que nós não temos água mais pra beber”, lembrou.

Faixa cobra Programa de Transferència de Renda (PTR) na Região 5. Diversas famílias atingingidas da bacia ainda não tiveram acesso ao direito. Foto: Henrique Chendes/ALMG
Estudo de pertinência 

Um outro ponto reforçado pelas pessoas atingidas diz respeito a um estudo de pertinência que está sendo feito nos territórios atingidos da Bacia.  

Fernanda Perdigão, atingida de Brumadinho e do movimento Paraopeba Participa, criticou o prazo do estudo e a metodologia aplicada nas comunidades. 

“Um estudo que, para justificar, camuflar a análise de custo da ATI, recebe o nome de estudo de pertinência. As perguntas realizadas na entrevista coletiva, porque são vários formulários, em um prazo ínfimo, até 31 de maio, é exatamente sobre o nosso direito à assessoria técnica. O que nós entendemos? Entendemos que queremos que a assessoria seja um direito executado, enquanto se for necessário que ele exista”, afirmou 

Fernanda também avaliou como delicadas algumas perguntas do estudo e apontou a preocupação quanto a processos de revitimização dos atingidos.  

“Durante a entrevista, as pessoas choraram porque a primeira pergunta é ‘o que é ser atingido’. O que é ser atingido? Nessa altura do campeonato? É revitimizar as pessoas atingidas para cortar o direito das pessoas atingidas. Então o primeiro pedido é que cesse esse estudo”, afirmou Perdigão. 

Criminalização das assessorias 

Na audiência, a deputada Beatriz Cerqueira (PT), que coordenou a mesa, chamou atenção para o processo de criminalização das assessorias técnicas.  

“Eu dizia na reunião que participávamos no Ministério Público que o que eu observava era um grande movimento de criminalização das assessorias técnicas. Eu acho que é isso que está em curso. Quando começa-se a atentar a construir uma ideia de que é muito dinheiro, de que precisa sobrar dinheiro para outras tarefas. Porque criminaliza-se, diz que é muito dinheiro para depois comprometer o trabalho e retirar recursos”, afirmou. 

Para a deputada, há interesses econômico e políticos no enfraquecimento do direito à assessoria aos atingidos por desastres-crimes na medida em que esse direito fortalece a voz e a percepção das comunidades diante dos danos sofridos que continuam nos territórios, mesmo após anos do rompimento.   

“De fato, para alguns setores econômicos e políticos em Minas Gerais a assessoria técnica independente ela incomoda”. 

Disputa de território 

Para a deputada estadual Bella Gonçalvez (PSOL) o corte das assessorias fortalece a empresa poluidora nos territórios atingidos quando gera instabilidade para as assessorias técnicas independentes e o trabalho direto com os atingidos. 

“Para a Vale, interessa sim a redução das ATIs, porque você tira a ATI do território e coloca mais Vale. Você tira a ATI do território e coloca as auditorias que são cheias de funcionários da Vale. Então é sobre disputa de território que nós estamos falando, é sobre esse território que hoje a Vale ainda cobiça para minerar e para ampliar processos minerários, como está fazendo em Mariana (MG), pedindo inclusive para retomar a atividade minerária na cena do crime”. 

Presença da presidenta da ALMG 

A deputada Leninha Alves (PT) presidente interina da Assembleia Legislativa também esteve presente na audiência. Ela cobrou mais transparência na compreensão de quais recursos da reparação estão diretamente ligados aos direitos dos atingidos. 

“Há um problema, na nossa avaliação, de que falta transparência nessa questão dos acordos, falta um ente que possa fazer o controle financeiro das atividades”, pontuou. 

Outros deputados e deputadas também participaram da reunião como o deputado estadual Leleco Pimentel (PT), a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), deputado federal Padre João (PT). Representantes das Instituições de Justiça também participaram da audiência.  

Assessoria técnica independente é prevista em lei 

Joceli Andrioli, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), lembrou da Lei nº 23.795/21, que fala sobre a Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB). A lei de 2021 prevê o direito à Assessoria Técnica Independente. 

“A lei que nós conquistamos em Minas é clara: direito à assessoria técnica independente escolhida pelos atingidos por barragens a ser custeada pelo empreendedor para orientá-los no processo de reparação integral nos termos no regulamento. Aqui fala muita coisa, por mais que vai ser regulamentado, mais aqui fala durante o processo de reparação integral. Ou seja, até alcançar a reparação integral, tem o direito à assessoria técnica”. 

Desafios na construção popular e participação 

A defensora pública Carolina Morishita, em atuação no Núcleo de Proteção aos Vulneráveis em Situação de Crise, da Defensoria Pública de Minas Gerais, pontuou os desafios da participação na Bacia do Paraopeba. 

 

“A gente ainda tem muito a avançar para processos participativos populares, mais do que participação informada, ou participação social ou controle social. Esse espaço de diálogo que a gente está e ainda vai enfrentar muita coisa, por muitos anos, com muitos outros atores”, afirmou.  

Para a defensora, é preciso que a população e as instituições tenham um alinhamento quanto a importância do Anexo I.1, dos Projetos de Demandas da Comunidades Atingidas, que prevê R$ 3 bilhões para projetos comunitários e acesso a crédito e microcrédito.

“A gente precisa ter um alinhamento. O anexo I.1 é a nossa possibilidade de mostrar o que pode ser um processo popular de sucesso de autogestão de construção das pessoas. É claro que a gente precisa da assessoria técnica independente forte para isso”, assinalou Morishita.  

 A defensora apontou ainda o avanço na compreensão da importância das assessorias técnicas, fato que, segundo ela, não era uma realidade antes da chegada das assessorias nos territórios. 

“Eu sinto internamente que a gente começa a ter um avanço no entendimento de que ninguém pode ficar sem assessoria técnica. Isso é um avanço”, afirmou.  

Encaminhamentos 

A audiência, que durou 5 horas, produziu 15 requerimentos que serão encaminhados às Instituições de Justiça , ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a Defensoria Pública Federal, ao Governo de Minas Gerais e outros órgãos.  

Dentre os encaminhamentos estão: 

  • Requerimento sobre fundamento legal para o corte de 50% das assessorias 
  • Requerimentos sobre o período de análise e o caráter do Estudo de Pertinência 
  • Que seja encaminhado ao MPE, MPF e Defensoria o pedido de providência para que essas instituições garantam que as auditorias socioambientais (Anexos II.1 e II.2) sejam custeadas pela Vale S/A. 
  • Que seja encaminhado ao MPE investigar a relação entre a Vale e o corpo funcional das empresas Aecom do Brasil e da Arcadis, haja visto possível conflito de interesses 
  • Que seja encaminhado ao MPE, MPF e Defensoria, prosseguimento das atividades das ATIs tendo em vista os riscos da saúde pública sobre o risco de contaminação. 
  • Que seja encaminhado ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) requerimento sobre a fiscalização e transferência dos gastos e recursos previstos para as estruturas de apoio. 
  • Requerimentos que encaminham as notas taquigráficas da audiência, ou seja, o que foi discutido, para a Secretaria de Relações Institucionais, Ministério da Justiça, Conselho Nacional de Justiça e Tribunal Regional Federal (TRF). 

Texto: Valmir Macêdo/Aedas