Atingidos e atingidas cobram legislativo e judiciário por justiça na reparação de danos pós-rompimento; Veja pautas apresentadas
Na jornada de luta conjunta, as pessoas atingidas denunciam os danos causados pela privatização de estatais, reforçam a luta por indenização individual e deram sequências às reivindicações por participação no processo de repactuação.

As ruas e instituições dos poderes legislativo e judiciário de Minas Gerais ouviram o coro de atingidos e atingidas das bacias do Rio Doce, Paraopeba e Três Marias, em ato conjunto realizado na última terça-feira (27), em Belo Horizonte. Na jornada de luta conjunta, as pessoas atingidas denunciam os danos causados pela privatização de estatais, reforçam a luta por indenização individual e deram sequências às reivindicações por participação no processo de repactuação.
Nesta matéria, acompanhe como se deu a participação das pessoas atingidas no Médio Rio Doce; saiba quais dados a Aedas apresentou durante audiência pública e as principais reivindicações feitas em reunião no Tribunal Federal Regional da 6° Região sobre a repactuação na Bacia do Rio Doce.
“Atingidos e Atingidas de MG e ES em Luta”
Requerente da audiência, ao receber a pauta dos movimentos sociais em defesa das estatais e o lançamento da Campanha Revida Mariana, a deputada Beatriz Cerqueira une duas questões de extrema importância no Espaço José Aparecido da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), onde mais de 1200 pessoas estiveram presentes com suas reivindicações.
De acordo com a deputada, o Governo Zema precisa temer a luta do povo organizado. “Como a gente explica pro mundo que não tem ninguém preso depois do assassinato da nossa Bacia do Rio Doce? A síntese é que Vale, Samarco e BHP trazem fome, morte e violação de direitos. Mas a gente não fala pelo atingido, ele sabe das suas dores, dos seus problemas, da sua vida. O que nós precisamos é compreender isso, respeitar cada pessoa atingida, e construir condições para que as pessoas falem, ao mundo, ao Parlamento, que é o que nós faremos através dessa audiência”, disse a deputada ao longo da escuta de falas dos presentes.

Beatriz Cerqueira afirma que é preciso lutar para que qualquer repactuação ou reparação tenha o atingido diretamente. “Tem muita gente que fala do atingido sem saber da sua realidade”, afirma.
Com a proximidade dos 8 anos do desastre-crime de Mariana, os atingidos também lançaram presencialmente a campanha “Revida Mariana”, cujo propósito é convocar a sociedade a pressionar a justiça brasileira e estrangeira a garantir reparação efetiva e integral aos atingidos e punição aos criminosos.
Luta contra a Privatização das Estatais
O coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens e representante da Campanha Revida Mariana, Thiago Alves, explicou a confluência das duas pautas. “Nós estamos em ato conjunto com a Frente Mineira em Defesa dos Serviços Públicos. Nós somos contra a privatização das estatais mineiras (Copasa, Cemig e Gasmig). Nós atingidos somos vítimas da privatização. A privatização da Vale em 97 gerou essa condição da gente estar aqui hoje. Infelizmente vítimas do crime que não é só na Bacia do Rio Doce.”, destaca.


Panorama atual da Bacia do Rio Doce
Além da fala de dezenas de pessoas atingidas, quem mostrou de maneira objetiva a atual situação que o Vale do Rio Doce se encontra foi Franciene Almeida, coordenadora institucional da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social – Aedas. Ela começou sua explanação, explicando o papel central que a deputada Beatriz Cerqueira teve, ainda em 2022, quando mandou um ofício para o juiz do caso Rio Doce na época, Michael Procópio, questionando sobre a implementação das assessorias nos territórios até então.
“Hoje, nós só temos os projetos de assessoria técnica na Bacia do Rio Doce, tanto em Minas quanto no Espírito Santo, porque houve lutas muito grandes, de muitas figuras. Estamos aqui, Aedas, Cáritas Mariana, Cáritas Itabira, Cáritas Valadares, Adai e CAT, por causa de muitas lutas, para dizer que a função da assessoria técnica, o nosso trabalho é produzir dados técnicos com embasamento científico e metodológico, e eu quero trazer exemplos práticos e concretos”, explicou a advogada.
Dados: Perda de renda
A representante da Aedas aproveitou o momento para explicitar um pouco dos dados que a assessoria técnica do Médio Rio Doce já levantou por meio do Registro Familiar. “Os dados confirmam o que já foi dito aqui antes. Nos territórios que atendemos, já identificamos que 88% das pessoas declararam que perderam renda depois do rompimento da barragem, isso quer dizer que, a cada 10 pessoas, 9 empobreceram quando a barragem se rompeu. Dessas pessoas que atendemos, 93% delas realizava alguma atividade de subsistência: pescavam, plantavam, utilizavam os seus quintais para prover a sua segurança alimentar”, expõe.
88% das pessoas declararam que perderam renda depois do rompimento da barragem
93% das pessoas atendidas pela Aedas realizava alguma atividade de subsistência: pescavam, plantava, utilizavam os seus quintais para prover a sua segurança alimentar
Dados: Fome
Hoje, depois do rompimento da barragem, a coordenadora da Aedas explica que 81,5% dessas pessoas está enfrentando algum tipo de insegurança alimentar. “Nós trazemos a denúncia de que o rompimento da barragem causou fome na Bacia do Rio Doce. Dessa fome, já levantamos que 32% das pessoas estão com insegurança alimentar leve, 19,67% estão com insegurança alimentar moderada e 29,83% das pessoas estão em situação grave de insegurança alimentar. A denúncia que trazemos é que o rompimento tirou pessoas que produziam, pessoas que tinham o seu autossustento garantido e colocou essas pessoas em situação de fome”, lamentou Franciene, com o público atento à sua fala.
81,5% das pessoas está enfrentando algum tipo de insegurança alimentar
32% das pessoas estão com insegurança alimentar leve
19,67% estão com insegurança alimentar moderada
29,83% das pessoas estão em situação grave de insegurança alimentar.
Dados: Negativa de auxílio e indenização
“Nós também já apuramos que 76,58% das pessoas nunca receberam auxílio financeiro emergencial, o AFE, e dessas pessoas que não receberam, 91,18% disseram pra nós que a Fundação Renova sequer explicou o motivo da negativa, por que esses cartões foram negados”, continua Franciene, trazendo de forma mais aprofundada esse panorama. “E temos outro dado, que pra nós esse é o mais alarmante, e por isso apoiamos a Campanha Revida Mariana, de que 65,04% das pessoas que atendemos não receberam nada, nenhum tipo de pagamento, indenização ou auxílio financeiro. E dos que receberam indenização, a maioria foi por meio do NOVEL, com 24,36%”, explicou a coordenadora institucional da assessoria.
Para ela, essa fotografia do território vai na contramão das campanhas publicitárias das empresas que dizem que está tudo bem e a reparação é um sucesso. “Isso causa conflito no território, umas recebem e outras não e nós nos deparamos com o dado de que mais da metade das pessoas não recebeu nada. Estamos aqui hoje pra afirmar que o Revida Mariana nunca foi tão necessário. O Vale do rio Doce era considerado um dos vales mais férteis e ricos do mundo, e hoje temos nesse local pessoas passando fome”, finalizou.
76,58% das pessoas nunca receberam auxílio financeiro emergencial (AFE)
Das pessoas que não receberam, 91,18% disseram que a Fundação Renova não explicou o motivo da negativa
65,04% das pessoas atendidas pela Aedas afirmam que não receberam nada, nenhum tipo de pagamento, indenização ou auxílio financeiro
Histórias atingidas
Joelma Fernandes, agricultora, ilheira, pescadora e coordenadora da Comissão de Atingidos de Governador Valadares, classificou o rompimento na calha do Rio Doce como um crime federal.
Já Meire Mniamá Purí, atingida indígena, liderança da Comunidade Uchô Betlháro Purí e e representante do Movimento de Ressurgência Purí na Bacia do Rio Doce, entregou oficialmente à deputada Beatriz Cerqueira, o Protocolo de Consulta Livre, Prévia e Informada, formulado junto à Assessoria Técnica Independente, Aedas. “Nós indígenas tivemos nossa renda prejudicada de várias formas, tivemos parte da nossa ancestralidade morta porque nós dependemos do rio. Parte das nossas heranças, que é ancestral, foi embora. Dentro dessa questão, gostaria de solicitar a vocês, um estudo étnico-histórico e antropológico, pois nós somos o povo mais antigo da Bacia do Rio Doce”, disse a liderança, ao tempo em que pediu apoio para o cumprimento do Protocolo de Consulta.
Veralucia Gomes de Oliveira , atingida pelo rompimento, moradora de Caratinga e vice-presidenta da Associação de Desenvolvimento Econômico e Sóciocultural de Cordeiro de Minas, também falou sobre como os danos persistem na realidade de quem convive com o desastre-crime do rompimento. Ela também cobrou escuta. “Nós não temos voz, deputada, na nossa cidade. Apareceu um advogado pegou o cadastro das pessoas, mas não tem nenhum processo no cadastro da renova. Aí pergunta, cadê o dinheiro? Mais de 30 milhões. E nada foi feito por nós. Nosso povo está doente, na saúde, não temos uma ambulância e nem médicos”, denuncia.




Weverson Miranda, da Associação de Pescadores de Conselheiro Pena, participou do dia de luta junto à uma caravana de 23 pescadores e ilheiros do município. Ele destacou a dura realidade experimentada pela população que perdeu direito ao trabalho e ao contato com o Rio. “O pescador come o peixe que está contaminado, mas não pode vender os peixes pra chegar na mesa dessas pessoas grandes. Eu venho trazer um alerta, estão discutindo a repactuação, cortaram pagamentos do auxílio financeiro, estão tentando discutir um outro pacto, como vai ser isso? Nós temos o direito de saber o que está sendo discutido em nosso nome. O pescador tem direito, o principal atingido somos nós. Uma pessoa que foi retirada do seu ambiente natural, da sua casa, o seu emprego, […] isso vai gerar angústia, depressão, ansiedade, não somente ao pescador, mas para toda a família”, declara.
Geraldo Batista, o “Geraldinho”, da comunidade quilombola Córrego 14 em Naque, afima que o luto e a luta fazem parte da vida do povo. “Aqui, enquanto pessoas atingidas pela barragem, nós seguimos de luto. De onde nosso povo tirava o sustento da família acabou. Os nossos pescadores, ilheiros, areeiros pararam, todos os produtores rurais ficaram com suas demandas fracassadas. Mas na luta estamos conseguindo caminhar e tomar de novo nossas forças. Mas a recuperação dos nossos bens perdidos ainda está difícil de conseguir”, pontua.
TRF6: participação na repactuação, danos individuais e novo encontro

“O TRF6 tem uma grande sensibilidade por esse caso”. Foi com essa fala que a desembargadora Mônica Sifuentes, presidente do TRF6 (Tribunal Regional Federal da 6a Região), abriu a reunião que debateu três pontos relacionados ao processo de reparação na Bacia do Rio Doce. O encontro aconteceu com pessoas atingidas pelo desastre-crime de territórios de Minas e do Espírito Santo e representantes das Assessorias Técnicas Independentes AEDAS, Cáritas Regional Minas Gerais e ADAI, na sede do Tribunal, logo após o fim da audiência pública que acontecia na ALMG.
A importância do espaço se deve ao fato de que, com a criação do TRF-6 em agosto de 2022, o órgão passou a ter responsabilidade sobre o caso, já judicializado. O relator do processo, o desembargador Ricardo Machado Rabelo, optou pela conciliação para a repactuação do acordo de reparação pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.
Foram três pautas essenciais apresentadas: a participação, na mesa da repactuação, para atingidos, que haja reparação de danos individuais no acordo e que haja a realização de uma nova reunião, dessa vez aberta para mais pessoas.
A Aedas, enquanto Assessoria Técnica que atua junto a municípios do Leste de Minas e Vale do Aço, esteve presente para acompanhar no assessoramento técnico dos representantes dos municípios de Aimorés, representado por Deuáma Meire Mniamá Purí; Periquito, representado por Jandir Arcanjo; do distrito de Pedra Corrida (Periquito), Itamar Coelho Maciel; e de Barra Longa, representado por Cristiane Donizete.
A liderança indígena Purí (no Leste de Minas), Deuáma Meire Mniamá Purí, por exemplo, apresentou o Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada, que foi feito pelo povo Pury junto à Aedas. Ela também entregou uma cópia do documento para a desembargadora. Acompanhe no vídeo abaixo:
As pessoas atingidas fizeram um pedido de reforço para que, na repactuação, sejam considerados os direitos individuais e não aconteça como no acordo do Paraopeba, quando apenas direitos coletivos foram contemplados pelo acordo. Ainda destacaram a necessidade de que os valores da repactuação sejam ampliados, pois o temor é de que os valores não deem conta de fazer a reparação em toda extensão da Bacia e em toda a extensão dos danos, que já chega a 8 anos sem reparação.
A desembargadora Mônica Sifuentes disse que, embora ela não seja a presidenta da mesa da repactuação, iria passar as propostas para o presidente, o desembargador Ricardo Machado Rabeno.
Franciene Vasconcelos, coordenadora institucional da Aedas, destaca que o momento de diálogo aberto e escuta das pessoas atingidas é fundamental para uma reparação de danos justa. “A desembargadora foi bem receptiva, estava muito interessada nas pautas e deixou todo mundo falar. Por isso, nós avaliamos que foi uma reunião bem positiva dentro desse processo que deve ter como protagonistas as pessoas atingidas”, afirma.







Texto: Carmen Kemoly e Glenda Uchôa – Equipe de comunicação/Aedas Médio Rio Doce