Povos e Comunidades Tradicionais frente os desafios do Racismo Ambiental

Foto: Marinha do Brasil/RS

Há alguns dias o povo brasileiro vem acompanhando com estarrecimento a tragédia que atinge o estado do Rio Grande do Sul. O cenário de crise ambiental e humanitária impressiona e alerta sobre a realidade da emergência climática e suas catástrofes, que ao que tudo indica serão cada vez mais presentes nos territórios.

Fortes chuvas caem continuamente sobre o estado desde o fim de abril, provocando a cheia de vários cursos d’água na Bacia Hidrográfica do Guaíba, com destaque para a região do Vale do Taquari e a região metropolitana de Porto Alegre. Os Rio Pardo, Taquari, Jacuí e o Lago Guaíba (ou rio, a depender da interpretação) foram os mais impactados pelos altos indicies pluviométricos (quantidade de chuvas) no período.

A partir das cheias, as águas invadiram regiões dos municípios gaúchos que ficam as margens dos rios e rapidamente, a paisagem trágica que se vê hoje nas redes sociais e na mídia, se instalou à medida em que as águas não pararam de subir.

Os números são espantosos e inéditos, dada a dimensão do desastre. Atualmente, de acordo com informações oficiais da Defesa Civil gaúcha, os dados (consultados em 12 de maio de 2024) indicam:

447 municípios afetados;
2.115.703 milhões de pessoas afetadas;
617 mil pessoas fora de suas casas;
79.540 pessoas abrigadas;
538.241 pessoas desabrigadas;
806 pessoas feridas;
127 pessoas desaparecidas;
147 pessoas mortas;

A crise que já se estende há quase duas semanas e que, infelizmente, tende a prosseguir (e talvez se agravar) por mais alguns dias com a continuidade das chuvas e a chegada do frio, contudo, não pode ser explicada meramente como fenômeno natural, isolado de fatores determinantes atrelados às responsabilidades políticas.

A região central do Brasil estava recentemente sobre a atuação de massas de ar quente e secas, que formaram uma zona de alta pressão. Essa “bolha de calor” funciona como uma barreira contra outras massas de ar, e neste caso, impediu o avanço de massas de ar polares vindas do sul do continente e dos fluxos de escoamento da umidade tropical que vem da Amazônia, para outras regiões, “represando” essas massas de ar no sul do país. A junção entre a umidade tropical, as massas de ar frias e o calor das zonas de alta pressão, provocaram o volume de chuvas surpreendente.

Todas essas dinâmicas atmosféricas aconteceram justamente sobre grande parte do estado do Rio Grande do Sul, onde as chuvas formadas precipitaram. Contudo, soma-se a estes elementos atmosféricos as ações políticas que de fato, contribuíram para as chuvas, fossem sinônimo de tragédia.

Considerando uma escala global, não podemos descontextualizar a crise no sul do país com a realidade de emergência climática que se instala no planeta provocando catástrofes em todos os continentes: as ondas de calor, os longos períodos de seca, o derretimento das calotas polares, o aquecimento dos oceanos, o alto índice de CO² na atmosfera, as chuvas em níveis elevados, dentre outros.

Estes são todos sintomas do que alguns cientistas têm chamado de “Capitaloceno”, uma era geológica na qual a atmosfera, o clima e demais dinâmicas ambientais são diretamente influenciadas pelos impactos do desenvolvimento do capitalismo global.

O ano de 2023 é o mais recente exemplo deste panorama cataclísmico.

Para a Organização Meteorológica Mundial (OMM), 2023 foi o ano mais quente dos últimos 170 anos do planeta Terra, o que nos remete às revoluções industriais, dos séculos XVII e XIX, marcos para o surgimento e expansão do Capitalismo assim como para a comparação dos níveis de CO² na atmosfera terrestre.

No Brasil, a OMM aponta a ocorrência de 12 fenômenos climáticos extremos no ano passado: ondas de calor, ondas de frio, secas e ciclones extratropical, são alguns deles.

Também no ano de 2023, mais de 400 municípios gaúchos viveram emergências por conta de secas intensas que se iniciaram em 2021, mas se agravaram no último ano, segundo informações da Defesa Civil do estado. Um cenário absolutamente oposto ao que se vê em 2024. Meses de diferença, separando extremos climáticos.

Todos esses eventos não podem ser encarados com surpresa, ainda que os impactos nos espantem. O negacionismo científico intencional sobre tudo aquilo que vem sendo insistentemente denunciado por cientistas, instituições de pesquisa, movimentos sociais e comunidades tradicionais é uma das formas de correlação entre a crise climática, o desenvolvimento capitalista e a política neoliberal.

O Painel Intergovernamental da Mudança Climática (IPCC) em 2023 relatou que o aumento da temperatura da superfície global aumentou mais desde os anos 1970 do que em qualquer outro período da história terrestre e que os esforços para conter as mudanças climáticas, são até então, insuficientes.

Em 2014 o Governo Dilma (PT) encomendou o estudo “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, que previu o avanço da crise climática e aponta inclusive para o aumento de chuvas na região sul do país ao longo dos anos futuros.

A MetSul Meteorologia, empresa do ramo privado voltada para a produção de conteúdo científico sobre o clima, vinha emitindo alertas e relatórios sobre os recentes eventos climáticos na região sul do país e indicou no ano anterior, os riscos de fortes chuvas e enchentes em 2024.

Ainda assim, mesmo diante de tantas informações e denúncias sobre as mudanças climáticas e seus riscos, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), alterou quase 500 tópicos do Código Ambiental do estado, na direção de fragilizar legislações e normativas de proteção do meio-ambiente. Essa medida, estava alinhada com os direcionamentos do Governo Bolsonaro, de “passar a boiada” por sobre as leis ambientais brasileiras, expressão usada por Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente na ocasião.

Junto à diretriz de Eduardo Leite, soma-se a atuação do prefeito de Porto Alegre (RS), Sebastião Melo (MDB), que no ano passado investiu 0 (zero) reais em políticas e obras de contenção de enchentes na capital gaúcha (já que estas não foram as primeiras à nível de calamidade pública). Em 2021 houve investimento de 1,7 milhões na área, já em 2022 a queda é drástica: apenas 141 mil reais. Porém, em 2023, nenhuma parte dos 428 milhões de reais disponíveis para o Departamento Municipal de Águas e Esgoto (DMAE) foi empenhado em obras que poderiam ter diminuído significativamente os impactos das cheias e enchentes.

As ações de Eduardo Leite e Sebastião Melo estão diretamente envolvidas com a crise humanitária no Rio Grande do Sul, pois ambas, poderiam reduzir as mortes, mas também mitigar as perdas dos imóveis, dos móveis, da produção, e todos os demais danos provocados ao povo gaúcho nas últimas semanas. Ao contrário disso, o governador do estado e o prefeito da capital, contribuíram para o agravamento dos problemas.

Negar a ciência, neste caso, não é mera ignorância ou incapacidade técnica de entendimento, mas sim a negligência intencional de quem prefere escamotear a realidade de emergência climática evidenciada pelos dados apresentados, para garantir que os interesses de agentes econômicos descompromissados com o bem viver e a preservação do meio ambiente fossem contemplados. Trocando em miúdos, é tapar o sol com a peneira para vender o meio ambiente e o território pra quem irá destruí-lo.

Em tempo, é preciso destacar que, a conta das irresponsabilidades destes gestores públicos e do empresariado (industrial, imobiliário, do agronegócio) que incentiva e se beneficia da fragilidade das legislações ambientais, não é paga por estes grupos.

Ainda que crise climática atinja a todo planeta, e as chuvas inundem cidades inteiras, os danos, as perdas, toda a tragédia, se impõem de forma mais profunda sobre grupos minoritários: os pobres, os negros e indígenas e os demais povos e comunidades tradicionais (dentre outros)

Estes grupos sociais são historicamente vulnerabilizados e ao longo do processo de urbanização das cidades brasileiras, ainda que com as particularidades de cada centro urbano, é possível afirmar, ocupam as periferias, vivendo em lugares negligenciados pelo poder público. Realidade que também se manifesta no espaço rural, onde os quilombos e aldeias disputam território com o agronegócio e latifundiários e vivem a desproteção do poder estatal.

É nas favelas, nas periferias e nos territórios periféricos e tradicionais que a negligência do estado se revela através da ausência de serviços básicos de saneamento, infraestrutura e saúde, criando condições de insalubridade para a vivência dessas populações que estão submetidas por exemplo, à adoecimentos e inúmeros obstáculos para acessar cuidados de saúde pública.

Essa já uma das dimensões do racismo ambiental. Outra, porém, se expressa no agravamento dos impactos dos eventos climáticos extremos e desastres ambientais em que as perdas e os danos se aprofundam, tanto no sentido material dos bens perdidos, quanto no sentido imaterial e simbólico.

No caso específico de povos tradicionais de matriz africana, quilombolas, indígenas e outros, tragédias como a que assola o Rio Grande do Sul, mas que podem ser tristemente encontradas ao longo do território nacional, significam a destruição de modos de vida que são tradicionais e ancestrais, formas de ser, estar e interagir com o mundo, que sobreviveram aos processos violentos de tráfico humano, colonização e escravização e se reinventaram no fluxo do tempo.

Desastres ambientais também são a ruptura de seus territórios tradicionais, constituídos pelos saberes, conhecimentos, técnicas produtivas, arquitetônicas, geossímbolos e demais elementos que fazem da terra aldeia, quilombo, roça. O território existe como solo por sobre o qual a vida se dá, mas como condição para o viver e conexão com o espaço e o tempo, o lugar e o mundo. É a casa da memória destas comunidades anciãs e uma biblioteca de saberes orientados por uma ética ecológica capaz de oferecer à humanidade, de forma generosa, caminhos para enfrentar à crise climática inventada pela sanha capitalista, exigindo uma transformação radical na maneira como a humanidade interage com o meio ambiente.

Neste sentido, o negacionismo que orientou as ações de Ricardo Sales, Eduardo Leite, Sebastião Melo e outros, não ignora somente o argumento científico das universidades, das e dos pesquisadores, de empresas. Ignora também a voz, a experiência e o conhecimento dos povos que vivem com a terra, o território e com o meio ambiente, uma relação ética de respeito, preservação e interdependência. Inúmeras lideranças como Nego Bispo, Ailton Krenak, Capitã Pedrina Loures, dentre outras, vem nos alertando sobre os riscos da exploração desenfreada e o descompromisso com o meio ambiente e o clima, ao passo que seguem na defesa de seus territórios;

Portanto, toda luta enfrentada por estes grupos é a ponta de lança do desafio ambiental e climático contemporâneo.

Segundo dados do IBGE (2022), o Rio Grande do Sul tem cerca de 2,3 milhões de pessoas negras (pretas e pardas), 17,5 mil quilombolas e 36 mil indígenas e outros tantos milhares e centenas de povos e comunidades tradicionais. Boa parte desse contingente está concentrado nas áreas afetadas pela tragédia das enchentes: a região metropolitana de Porto Alegre, o Vale do Taquari e o Vale do Pardo.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul) e outras organizações, estimam que cerca de 80 comunidades indígenas foram profundamente impactadas, são Xokleng, Kaingangs, Charruas, Guaranis Mbyá e outras etnias.

A Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), aponta que praticamente todas as famílias quilombolas do Rio Grande do Sul, distribuídas em 70 municípios, foram impactadas.

Estas famílias e pessoas, certamente estão entre as 617 mil pessoas desabrigadas no Rio Grande do Sul. Desterritorializadas, tornam-se agora, refugiadas climáticas, condição identificada pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), como aquela em que se é forçado (temporária ou definitivamente) a migrar saindo de seu território para sobreviver à eventos climáticos extremos que o afetaram.

A ACNUR aponta que de 2020 para cá, foram registrados cerca de 30,7 milhões de novos deslocamentos atrelados à eventos climáticos extremos.

O Banco Mundial em pesquisa, aponta que até o ano 2050, cerca de 216 milhões de pessoas podem se tornar refugiadas climáticas.

A OMM, informa que nas próximas três décadas, mais de cinco bilhões de pessoas sofrer insegurança hídrica por pelo menos um mês.

Os e as refugidas climáticas, tendem somente a aumentar.

São estes mesmos grupos marginalizados, negros, indígenas, quilombolas, povos de terreiro entre outros, que tem menor pegada ecológica no meio ambiente, isto é, produzem menos impactos ambientais negativos a partir do seu modo de vida e padrão de consumo, na contramão das grandes empresas do agronegócio, da mineração, da construção civil e de outros ramos, que são capazes de modificar biomas e ecossistemas inteiros através do desmatamento, de desastres-crimes, de impermeabilização dos solos e da exploração dos territórios.

Neste sentido, há uma aproximação, guardadas as devidas proporções, entre outros grupos de atingidos e atingidas, que são parte de povos e comunidades tradicionais e foram impactados negativamente por catástrofes climáticas e desastres ambientais ao redor do país (e do planeta).

É o que verificamos na realidade de alguns povos e comunidades tradicionais brasileiros nos últimos cinco anos: atingidos pela fome nas aldeias e pelo garimpo ilegal em terras indígenas na Amazônia, pela degradação ambiental de territórios quilombolas na serra do espinhaço mineira, pela bioetnopirataria no cerrado e nas florestas, pelo rompimento da barragem de Brumadinho, pela contaminação das águas, dos solos e do ar, decorrentes do neoextrativismo desenfreado, dentre outros conflitos.

Considerando o andar da carruagem, no horizonte distópico que a crise climática oferece a humanidade, as pessoas periféricas, os marginalizados, o sul global, os povos e comunidades tradicionais, são justamente aqueles que pagam a conta do desenvolvimento capitalista neoliberal, da exploração desregrada, do negacionismo científico.

São eles e elas que fogem da boiada que avança sobre seus territórios e quer passar sobre tudo e todos: são os refugiados climáticos os “condenados da terra”.

Diego Dhermani Lopes Germano – Equipe PCT

Referências:

https://news.un.org/pt/story/2024/05/1831366?s=08

https://www.intercept.com.br/2024/05/06/enchentes-no-rs-leia-o-relatorio-de-2015-que-projetou-o-desastre-e-os-governos-escolheram-engavetar/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/entenda-por-que-catastrofe-no-rs-e-um-evento-climatico-extremo

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/11/chuvas-rio-grande-do-sul-rs-temporais-alagamentos-previsao-tempo.htm

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/12/a-cronologia-da-tragedia-no-rio-grande-do-sul.ghtml

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/oito-mil-familias-indigenas-sao-afetados-pelas-chuvas-no-rs

https://www.acnur.org/portugues/temas-especificos/mudancas-climaticas/

https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/03/20/ipcc-acoes-urgentes-contra-mudancas-climaticas-ainda-podem-garantir-futuro-habitavel-na-terra.ghtml

https://www.wribrasil.org.br/noticias/10-conclusoes-do-relatorio-do-ipcc-sobre-mudancas-climaticas-de-2023

https://epbr.com.br/entenda-por-que-as-mudancas-climaticas-devem-aumentar-o-numero-de-refugiados-no-mundo/#:~:text=A%20Acnur%20aponta%20que%20mais,por%20conta%20das%20mudanças%20climáticas.