Três dias de cinema, oficinas e debates deram voz às comunidades atingidas. Confira como foi

Nos dias 29, 30 e 31 de agosto, a equipe de comunicação da Aedas, com apoio de outras equipes da ATI, realizou a “Mostra Cine Paraopeba: Onde eu nasci passa um rio”, reafirmando que o cinema corre entre margens, atravessa territórios, promove encontros, carrega memórias e deve ser democratizado.
Foram três dias de exibição de filmes no Cine Santa Tereza, totalizando cinco sessões, além de um dia com seis oficinas e uma exposição fotográfica.
Participaram da Mostra pessoas atingidas de Brumadinho (Região 1) e da Região 2 da Bacia do Paraopeba (Juatuba, Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Betim, Igarapé e Mateus Leme), além de pessoas atingidas das demais regiões da Bacia, técnicas/os da Aedas e de outras Assessorias Técnicas Independentes (Nacab, Guaicuy e INSEA), público adulto e infantil de Belo Horizonte, produtoras/es de cinema e educação, além de pesquisadoras/es e docentes.

Parte dos espaços participativos do Plano de Trabalho da Aedas, a “Mostra Cine Paraopeba: onde eu nasci passa um rio” teve como objetivo fortalecer os territórios atingidos por meio da produção e da reflexão audiovisual no contexto do processo de reparação e do direito à comunicação, além de promover oficinas criativas que dialogaram com o fazer e o pensar cinema.
Para a coordenadora de Comunicação da Aedas Paraopeba, Elaine Bezerra, a Mostra conseguiu abrir espaço para novas narrativas e renovar forças:
“Os filmes abordaram os territórios atingidos e as lutas socioambientais. Esse contato com processos criativos fortalece a fruição cultural e a disputa de narrativas sobre a reparação. Saímos do Cine Paraopeba com energia renovada e com a certeza de que as histórias das pessoas atingidas precisam ser contadas por elas mesmas e visibilizadas”.
Como foi a mostra “Cine Paraopeba: onde nasci passa um rio”

No primeiro dia, a abertura da Mostra contou com oficinas exclusivas para pessoas atingidas, realizadas na Casa Terra. Foram quatro oficinas voltadas para adultos: Vídeoativismo; Cineclubismo; Artes e Cenário; e Expressão Corporal e duas para crianças: Fotografando pela janela; e Audiovisual em 1 minuto. As oficinas proporcionaram experiências de criação coletiva, experimentação artística e expressão do corpo, valorizando as narrativas e sensibilidades das comunidades atingidas.
Fotos ao final das oficinas de Videoativismo, Artes e Cenografia, Cineclubismo e Expressão Corporal




Fotos das oficina para as crianças: Fotografando pela janela; e Audiovisual em 1 minuto




Douglas Keesen, da comunicação da Aedas, foi um dos facilitadores da Oficina de Vídeoativismo e contou: “O objetivo foi aproximar os atingidos da linguagem audiovisual, abordando captação de áudio, noções de roteiro e elaboração de perguntas. Também discutimos sobre fake news, o uso do celular como ferramenta de comunicação acessível e como instrumento de denúncia nos territórios, que muitas vezes contrasta com a narrativa veiculada pelas grandes mídias sobre a reparação”.
No início da noite, as pessoas atingidas se reuniram no Cine Santa Tereza para a abertura oficial das Sessões da Mostra, com a exibição da Sessão Filmes-Memória, composta por produções realizadas por elas nas oficinas de comunicação da Aedas no ano passado.
Geisa Tomé, atingida de Monte Calvário, em Betim, teve seu Filme-Memória exibido na telona e, após a sessão, integrou a mesa de debate, onde afirmou: “Nós estamos aqui, jamais vamos deixar de contar nossas histórias ou permitir que elas sejam silenciadas. É por memória e por justiça”.

O segundo dia da Mostra trouxe a Sessão Águas Infantil, dedicada ao público infantil, com filmes que destacaram o encontro com as águas e as tradições. Em seguida, a Sessão Águas Adulto exibiu produções que retratam a resistência e a luta de indígenas, ribeirinhos, povos de terreiro, pescadores e foliões em seus territórios.




O encerramento, no terceiro dia, começou com a Sessão das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), que exibiu filmes produzidos junto às comunidades atingidas das cinco regiões da Bacia do Paraopeba.

Everton Martins, mais conhecido como Pai Tozinho, do Paraopeba. atingido da Região 3, teve seus filmes exibidos na Mostra e contou: “O primeiro filme que exibimos, Entre Mundos, foi gravado em uma oficina realizada pelo Nacab e aborda o racismo ambiental e os crimes cometidos pela mineração. O segundo filme retratou uma festa tradicional do Preto Velho, na Aldeia das Flores. Foi uma experiência fantástica participar da Mostra. Quero agradecer à Aedas, estou feliz de estar aqui e espero que venham mais festivais, para que esse movimento cresça. Nunca imaginei me ver em uma tela de cinema”.
Sávio Alves, de Pompéu, morador da comunidade Fazendinhas Baú, atingido da Região 4 e assessorado pelo Guaicuy, teve seu documentário exibido na Mostra e comentou: “Hoje foi uma noite importante, assistindo a esse documentário e reencontrando pessoas que viveram situações muito difíceis por causa do rompimento de 25 de janeiro de 2019. E a gente continua na luta pra ver a reparação chegar pra todos”.
Kenya Donato, da Aldeia Naô Xohã, em São Joaquim de Bicas (Região 2), assessorado pelo INSEA, estava presente na Sessão ATIs e destacou: “O filme que exibimos aqui na Mostra CineParaopeba retrata a nossa luta, do povo Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe. Ele mostra as dificuldades e violações que enfrentamos e, sobretudo, a resistência do nosso povo e a luta pela reparação justa, pela luta coletiva e pela preservação da nossa cultura”.
Para fechar a Mostra, aconteceu a Sessão Filmes de Plástico, com produções da reconhecida produtora mineira.

Regiane Farias, assessora da Gerência Geral da Aedas Paraopeba, que já trabalha em produções da Filmes de Plástico, comentou sobre a sessão, da qual foi mediadora: “A ideia de trazer a Filmes de Plástico como parceira da Mostra Cine Paraopeba foi porque se trata de uma produtora mineira, que surge em Contagem a partir de questionamentos sociais e econômicos, principalmente sobre como a população brasileira era representada no cinema. Eles começam a produzir das margens para o centro, invertendo a lógica e colocando na produção cinematográfica novos corpos, narrativas e povos, muitas vezes retratados de forma estereotipada no cinema brasileiro. Assim, rompem com essa sequência de estereótipos e apresentam novas perspectivas”.
Todos os dias, após as sessões, foram realizados debates que reuniram as pessoas atingidas, realizadoras/es da Mostra, diretoras/es, curadoras/es, educadoras/es, técnicas/os da Aedas e de outras ATIs e pesquisadoras/es, ampliando a reflexão sobre cinema, memória e resistência.
Infâncias na Mostra Cine Paraopeba

As oficinas com crianças atingidas foram pensadas como espaços de experimentação. A proposta era mostrar que fotografar e filmar envolve sempre uma escolha: o que entra e o que fica de fora do quadro. Assim como a brincadeira, o cinema exige corpo, jogo e coletividade, possibilitando que as crianças expressem seus territórios, identidades e até traumas de forma criativa. Além disso, filmar e fotografar pressupõe um olhar para o outro, e esse exercício também abre caminhos para olhar para si mesmo.


Luana Farias, gestora operacional da Aedas e coordenadora da Ciranda, falou sobre a Sessão Águas Infantil: “Esta sessão buscou trazer filmes que colocam a água no centro da vida, não como recurso a ser explorado, mas como parte de uma visão circular, ancestral e comunitária. São obras que dialogam com as infâncias e territórios, revelando saberes que muitas vezes os adultos não escutam e que, por isso, podem ensinar também a nós”.

Maria Fernanda, de 11 anos, atingida da comunidade de Satélite, em Juatuba, participou da oficina Audiovisual em 1 Minuto, voltada para crianças atingidas, e contou sua experiência: “Saímos dos nossos espaços para gravar e fazer um filme. Filmamos na praça do Santa Tereza e eu registrei um jardim, porque ele é muito bonito. Eu amo fazer filmes. Na oficina também assistimos a um filme antigo, de apenas 1 minuto”.
Thayla Tomé, de 10 anos, atingida de Monte Calvário, em Betim, também esteve na oficina de audiovisual e completou: “Fizemos filmes de 1 minuto e eu filmei algumas pinturas que eram muito bonitas. Eu captei a imagem e achei tudo muito legal”.
Oficinas e trocas de experiências

As oficinas da Mostra Cine Paraopeba proporcionaram momentos de encontro e diálogo entre as pessoas atingidas das regiões 1 e 2. Para muitas, representaram aprendizado, fortalecimento e reconhecimento de suas próprias histórias, além de oferecer ferramentas para que possam contar suas narrativas.
Margareth da Piedade, moradora atingida de Piedade do Paraopeba, em Brumadinho, participou da Oficina de Vídeoativismo. Ela contou que a experiência foi transformadora:
“Adorei a oficina, foi engrandecedora. Tudo que a gente aprende serve para a vida e desperta a vontade de lutar contra as injustiças sociais. Fizemos filmagens, fotos na praça do Santa Tereza, e isso nos empodera”.

Da comunidade de Aranha, também em Brumadinho, a atingida Rosimeire Souto esteve na Oficina de Cineclubismo. Para ela, foi uma oportunidade de pensar o cinema como ferramenta comunitária:
“Aprendemos sobre falas, sons e personagens. Isso é muito importante para que possamos levar para nossas comunidades e contar nossas próprias histórias, do que vivemos antes [do rompimento] e do que vivemos hoje”.


Já Íris da Piedade, também atingida de Piedade do Paraopeba, escolheu a Oficina de Cenário e Artes. Ela destacou que o aprendizado dialoga diretamente com o desejo de movimentar o cinema em sua comunidade:
“Quero levar o cinema para a praça do meu território e aprender a criar cenários com o que a gente tem. Assim posso contribuir para que o cinema aconteça por nós mesmos”.
Sônia Silvana, atingida da comunidade de Satélite, em Juatuba, participou da Oficina de Expressão Corporal. Ela lembrou que o corpo também é linguagem:
“Nosso corpo fala. Ele mostra quando estamos com raiva, felizes ou tristes. Aprendemos a transmitir mensagens com movimentos e expressões faciais. Foi muito enriquecedor”.


Mãe Kimazandê, atingida de São Joaquim de Bicas e integrante dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA), esteve na Oficina de Vídeoativismo. Para ela, a experiência também foi espiritual e política:
“Participei para aprender como lidar com a internet e com as gravações, mas também para mostrar a nossa religião e os saberes do nosso povo. Fizemos uma linda entrevista em que pude falar sobre minhas tradições e sobre o conhecimento das ervas. Foi um momento de fortalecimento”.
Exposição: Histórias Atingidas – Retratos

Durante a Mostra, a exposição “Histórias Atingidas – Retratos” esteve aberta no hall do Cine Santa Tereza, reunindo retratos de pessoas atingidas das regiões 1 e 2 da Bacia do Paraopeba e uma experiência sonora. A exposição de retratos buscou evidenciar a força e identidades de quem resiste e (re)existe diante das perdas e injustiças socioambientais, reafirmando a luta por memória, justiça e reparação.
Para Felipe Cunha, fotógrafo da exposição e integrante da equipe de comunicação da Aedas, “A escolha das fotos nasceu do encontro com as pessoas atingidas, registradas em seus territórios por mim e por outros colegas da equipe. Cada fotografia surgiu a partir do diálogo e da escuta, reunindo histórias singulares que, ao mesmo tempo, são marcadas por um mesmo desastre-crime. São olhares, expressões, modos de vida e memórias atravessadas pela negligência e pela ganância minerária”.
Do território à tela

O que a Mostra Cine Paraopeba mostrou é que o audiovisual vai muito além do entretenimento, ele se transforma em ferramenta de luta, resistência e reparação. Por meio das oficinas, das sessões de filmes e dos debates, as pessoas atingidas de territórios diversos puderam contar suas histórias a partir de suas próprias narrativas e subjetividades, refletir sobre suas vivências e fortalecer a mobilização por direitos, memória, reparação, justiça social.
O cinema, nesse contexto, se afirma como uma ponte entre territórios, um instrumento de empoderamento e uma voz ativa na construção da reparação e na luta por futuro mais justo para quem foi atingido pelo rompimento da barragem. É também ferramenta de luta, de memória, de encontro, de criação e de potência.


Texto e fotos: Felipe Cunha/Aedas
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