Desde o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, a população atingida viu constantemente, não sem denunciar, seu patrimônio cultural, o direito ao esporte e lazer serem atacados e suprimidos pelas condições decorrentes do desastre. Por essa razão, dentre as diversas medidas reparatórias emergenciais listadas pela matriz construída pelas famílias de Brumadinho e sistematizada pela Aedas na região 1, está o tombamento e registro dos bens materiais, imateriais e naturais das comunidades atingidas como forma de proteção e valorização de sua cultura.

No documento sistematizado pela Aedas, é reforçado, ainda, que tal medida se faz urgente diante da ameaça constante de desaparecimento de sítios históricos, arqueológicos e paisagísticos, considerados patrimônios culturais das comunidades atingidas. Exemplo disso é a questão que vem sendo enfrentada pela comunidade de Ponte das Almorreimas em relação aos danos causados ao segmento de Muro de Pedras de junta seca, construído por pessoas escravizadas, e à Capela São Vicente de Paulo, Patrimônio Histórico e Cultural de Ordem Material e Imaterial.

Em virtude da obra de reparação “Novo Sistema de Captação e Adução de Água do Rio Paraopeba da Companhia de Saneamento de Minas Gerais – COPASA”, tem sido identificada pela comunidade a destruição de parte do Muro das Pedras e a inviabilidade do uso da Capela como local sagrado. Esta percepção dos moradores foi comprovada pelo laudo técnico n° 22/20206 complementar ao laudo 05/2020 produzido pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

O laudo do MPMG conclui que houve danos ao patrimônio cultural da comunidade, indicando que “a supressão do segmento de muro de pedras pode ter fragmentado um conjunto arqueológico, cujas estruturas possuíam articulação”. Além disso, o documento aponta que, em razão da obra, houve impactos negativos ao entorno da Igreja de São Vicente de Paulo, bem de valor histórico, cultural e afetivo, um dos principais espaços de encontro comunitário.

Esse diagnóstico também foi reafirmado por um parecer do Ministério Público Federal (MPF), nº 387/2020 – SPPEA7. Este documento, por sua vez, informa que não houve zelo pelo patrimônio cultural durante as intervenções realizadas em Ponte das Almorreimas pela Vale S.A, e reitera, ainda, que os prejuízos poderiam ter sido evitados caso tivessem sido feitas análises técnicas aprofundadas no local previamente.

Parecer da Aedas

A Aedas, enquanto Assessoria Técnica Independente das pessoas atingidas do município de Brumadinho, tem acompanhado essa questão, junto à Comissão de Atingidos e Atingidas de Ponte das Almorreimas, além da Arquidiocese de Belo Horizonte, a Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser) e a Coordenação de Metodologia Finalística da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (CAMF-PUC). A partir dessas discussões e sob demanda das famílias da comunidade, a assessoria elaborou um parecer que teve como objetivos fazer um diagnóstico a respeito desse impacto ao patrimônio cultural causado pela obra da adutora e sinalizar os vários desdobramentos na comunidade.

Para isso, foram ouvidos atingidos e atingidas que residem nas proximidades do Muro e da Capela, para que fossem percebidos os danos ao patrimônio histórico e cultural sob o ponto de vista dessas pessoas. No documento, foram feitas considerações referentes aos danos irreversíveis gerados ao patrimônio da comunidade, a falta de diálogo entre a empresa Vale e os/as atingidos/as, a impossibilidade de exercício de atividade religiosa e a supressão de espaços de convivência em virtude dos danos provocados à Capela, os laços de pertencimento dos/as integrantes da comunidade ao território, entre outras questões.

Como principais sugestões de medidas urgentes e reparatórias, o parecer apontou que o prosseguimento das obras deve ocorrer após o diálogo com as comunidades atingidas e que deve ser garantido o direito à participação informada, a memória e o respeito e centralidade do sofrimento da vítima. O parecer registrando os danos ao patrimônio histórico de Ponte das Almorreimas foi encaminhado ao Ministérios Público Estadual e Federal, Governo do Estado de Minas Gerais e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Córrego do Feijão enfrenta processo semelhante

O Sítio Arqueológico Histórico Muro de Pedras é uma construção de aproximadamente 1 km, que circunda boa parte da comunidade Córrego do Feijão. Segundo o Relatório de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico na Área de Implantação do Projeto Córrego do Feijão Território-Parque, levantado pela Peruaçu Arqueologia em dezembro de 2020, trata-se de uma construção associada ao período colonial que se encontra, ainda, em bom estado de conservação, apesar de alguns pontos terem sido danificados por obras de reparação do rompimento.

Na última quinta-feira (6), a equipe da Aedas realizou uma visita técnica à comunidade Córrego do Feijão para acompanhamento, registro e apuração sobre o salvamento dos vestígios e peças encontradas no Sítio Arqueológico Resistência, localizado na área delimitada para a construção do Memorial das Vítimas Fatais pelo rompimento da barragem. A visita da Aedas foi acompanhada por engenheiros da obra e um atingido do Córrego do Feijão. Conforme observado na visita, mesmo com atividades suspensas em algumas áreas do terreno, foi possível registrar caminhão pipa e trator transitando pelo canteiro em atividade. Outra coisa percebida, durante a visita, foi a dimensão do memorial. A planta do projeto foi apresentada pelos engenheiros, de forma que ocupará um espaço com sinalização de área de meditação, monumento, recepção, estacionamento e uma alça que irá direcionar as pessoas até a área da lama.

Em reunião anterior com Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Comitê Pró Brumadinho e pessoas atingidas do Córrego do Feijão, em sete de abril, foi sinalizado pelo MPMG a possível necessidade de remoção temporária de algumas pessoas, residentes nas ruas Um e Dois, as mais próximas ao local de construção do Memorial das Vítimas Fatais, até finalizarem as obras. A Aedas realizou um levantamento com alguns núcleos familiares residentes nestas ruas e foi possível constatar que nenhuma dessas famílias tiveram acesso à informação sobre o projeto em execução e sobre os possíveis impactos atrelados às obras. Todos os atingidos e atingidas contactados relataram à assessoria sentimentos negativos em relação à possibilidade de ter que deixar sua residência temporariamente para construção do Memorial.

Além do impacto sobre as residências próximas a área de construção do Memorial, na última visita técnica realizada na comunidade, uma pessoa atingida (que preferiu não ser identificada na matéria) comentou que, apesar de considerar a obra importante, a construção do Memorial nesta área compromete e contribui para o possível apagamento do sítio arqueológico: “Tinha que se pensar mais em preservar a memória de uma comunidade que está desaparecendo, isso vai desde a origem dela… Não existe destruir a memória de uma comunidade para um projeto novo”, avalia. Ela reforçou, ainda, que há pouca informação e transparência a respeito das obras, de modo que a comunidade não tem participado dos debates e reuniões sobre o Memorial de Vítimas Fatais.

Após a visita, o principal encaminhamento acordado entre a Aedas e os/as atingidos/as da comunidade Córrego do Feijão, foi a elaboração de um parecer de extrema vulnerabilidade com uma nova avaliação para o tombamento do muro de pedra do Córrego do Feijão. O Muro de pedra centenário, reconhecido como patrimônio da comunidade, teve parte de seu segmento interrompido para abertura de uma estrada, nos dias iniciais após o rompimento, para acesso dos Bombeiros. Além desse dano, devido a intensa movimentação de veículos pesados, parte das pedras próxima a abertura da estrada também sofreram impactos. Logo, o tombamento vem no sentido de assegurar a proteção ao patrimônio histórico-cultural do Córrego do Feijão.