O desastre-crime que resultou no rompimento da barragem de Fundão, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), completa dez anos neste 5 de novembro. Considerado o maior desastre socioambiental da história do Brasil e o maior do mundo envolvendo barragens de rejeitos de mineração, o rompimento de Fundão marcou profundamente a vida de milhares de pessoas e deixou danos profundos ao longo da bacia do Rio Doce. 

O colapso da estrutura da barragem de Fundão, de responsabilidade das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, causou a morte de 19 pessoas, o aborto de um bebê, deixou três vítimas ainda desaparecidas e diversos danos ainda não reparados. Mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram lançados no meio ambiente, contaminando o rio Doce e seus afluentes, destruindo comunidades inteiras e seus modos de vida, além de ter alcançado o litoral brasileiro no Espírito Santo e na Bahia. 

Desde então, famílias atingidas enfrentam uma década de dor, resistência e luta por direitos diante de uma reparação marcada por lentidão e sem a completude da participação social. 

Pessoas atingidas fazem ato em Mariana (MG), na ocasião dos 9 anos do rompimento da barragem de Fundão.
Pessoas atingidas em ato realizada em Mariana (MG) em 2024, quando o rompimento completou 9 anos. (Foto: Glenda Uchôa / Aedas)

Do desastre-crime às investigações 

As investigações sobre as causas do rompimento começaram em 13 de novembro de 2015, conduzidas pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Inicialmente tratado como um “acidente”, o caso passou a ser reconhecido como um desastre-crime previsível: relatórios técnicos e documentos oficiais apontaram falhas graves no sistema de drenagem da barragem, omissão diante de alertas de risco e negligência por parte das mineradoras. 

Ao longo dos anos, denúncias de órgãos públicos e estudos independentes reforçaram o caráter criminoso do rompimento e a responsabilidade das mineradoras. 

Reparação lenta e sem participação social  

Apesar de avanços, o caminho até uma reparação justa e, assim, integral segue distante. A maior parte das pessoas atingidas continua sem indenização completa, com reassentamentos atrasados e sem plena recuperação ambiental da bacia do Rio Doce.  

O primeiro grande acordo, o TTAC (Termo de Transação e Ajustamento de Conduta), foi firmado em março de 2016 e criou a Fundação Renova, responsável pela execução de 42 programas de reparação. Em 2018, o TAC-Gov buscou estabelecer um modelo de governança que garantisse a participação das pessoas atingidas. Na prática, porém, os compromissos firmados não se concretizaram como previsto. 

A partir disso, iniciou-se o processo de Repactuação, conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A Carta de Premissas foi assinada em 2021, e as negociações ocorreram no mesmo ano sem a participação das pessoas atingidas. Somente em 2022, entretanto, as pessoas atingidas foram oficialmente incluídas no escopo da repactuação, ainda assim, sem participação efetiva nas decisões que definem a forma como desejavam ser reparados. 

Pessoas atingidas participam de caminhada em Governador Valadares (MG), em setembro de 2023. Ao fundo, vê-se o Pico da Ibituruna.
Ato realizado em Governador Valadares (MG), em setembro de 2023 (Foto: Comunicação / Aedas)

Marcos e conquistas da organização popular 

Mesmo diante da exclusão e da morosidade da reparação, a organização coletiva das pessoas atingidas e o trabalho dos movimentos sociais, garantiram marcos e conquistas importantes ao longo da última década. Entre elas, destacam-se: 

  • Carta de Valadares, carta-reivindicação elaborada pelas pessoas atingidas durante encontro em Governador Valadares solicitando participação e denunciando violações e danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão; 
  • Direto e a efetivação das Assessorias Técnicas Independentes em toda a bacia do Rio Doce; 
  • Transparência na divulgação dos relatórios produzidos pela Aecom do Brasil sobre a contaminação de alimentos, peixes e da água do rio Doce; 
  • Divulgação de valores indenizatórios e a correção de critérios de cálculo; 
  • Direito ao reassentamento individual de diversas famílias em Mariana e Barra Longa; 
  • Reconhecimento de comunidades do litoral norte capixaba como atingidas; 
  • Reconhecimento do Povo Puri do leste de Minas Gerais, assessorado pela Aedas, como Povos Indígenas e Povos e Comunidades e Tradicionais atingidos dentro do processo reparatório; 
  • Criação de Fundos reparatórios que contarão com a participação das pessoas atingidas; 
  • Criação do Conselho Federal de Participação Social das Pessoas Atingidas da Bacia do Rio Doce; 
  • Programa de Transferência de Renda (PTR-Rural e PTR-Pesca); 
  • Programa de Reparação específico para as mulheres atingidas. 

Essas vitórias, fruto da luta organizada pelo povo atingido, reafirmam que a busca por justiça segue firme. Uma década após o rompimento da barragem, as marcas do desastre ainda permanecem nas casas e nos corações das pessoas atingidas, assim como também permanece a força de quem transformou dor em resistência. 

A seção “Protagonistas da Reparação” deste especial ecoa as vozes das pessoas que seguem construindo o caminho da reparação com coragem, solidariedade, esperança e fé no que virá. 

Pessoas atingidas fazem ato em Brasília.
Pessoas atingidas em Brasília fizeram ato em apoio da Política Nacional de direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB). (Foto: Comunicação / Aedas)

 
Acordo Rio Doce: novo capítulo na luta por justiça e reparação  

A assinatura do novo acordo de reparação entre as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton e o poder público, homologado em novembro de 2024, representou um importante marco na luta das comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão.   

O caminho até a assinatura desta nova estrutura de reparação, no entanto, foi longo. O primeiro grande acordo após o rompimento, o TTAC (Termo de Transação e Ajustamento de Conduta), foi firmado em março de 2016 e criou a Fundação Renova, responsável pela execução de 42 programas de reparação. Em 2018, o TAC-Gov buscou estabelecer um modelo de governança que garantisse a participação das pessoas atingidas. Na prática, porém, os compromissos firmados não se concretizaram como previsto.   

A partir disso, iniciou-se as discussões para um processo de repactuação do acordo, conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A Carta de Premissas foi assinada em 2021, e as negociações ocorreram no mesmo ano sem a participação das pessoas atingidas. Somente em 2022, entretanto, as pessoas atingidas foram oficialmente incluídas no escopo da repactuação, ainda assim, sem participação efetiva nas decisões que definem a forma como desejavam ser reparados.   

Ainda que tenha sido construído sem a participação das pessoas atingidas, o novo Rio Doce busca corrigir falhas da reparação anterior e garantir mais transparência no processo de reparação.  

Com valor total de R$ 132 bilhões, o acordo prevê investimentos em programas de saúde, saneamento, retomada econômica, educação, meio ambiente e apoio a povos e comunidades tradicionais. Parte dos recursos — R$ 5 bilhões — será destinada ao Fundo de Participação Popular da Bacia do Rio Doce, uma conquista dos movimentos sociais que permitirá a criação de projetos construídos diretamente pelas comunidades atingidas.  

Outro avanço importante é o reconhecimento de danos às mulheres atingidas, que terão R$ 1 bilhão destinados a um Programa específico, resultado de mobilização das mulheres atingidas junto às Instituições de Justiça, com apoio das Assessorias Técnicas Independentes.  

O novo acordo também garante a continuidade das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) por até quatro anos, reafirmando a importância do acompanhamento técnico, da participação informada e da escuta qualificada das comunidades. 

Seu Itamar é um homem negro, idoso, vestindo uma camiseta com os dizeres "Comissão Territorial Cachoeira Escura". Ele está de frente para a câmera, com o Rio Doce às suas costas.

Seu Itamar, esperança e fé no que virá com a luta coletiva 

Antes do rompimento da barragem de Fundão, Seu Itamar vivia do que a terra dava. Na chácara que mantem até hoje no Córrego do Café, sua rotina girava em torno da agropecuária e da produção de frutas, legumes, leite e queijos. “Minha fatura era excelente”, lembra seu Itamar. A renda diária chegava a R$600 com a venda de leite e derivados. Era o sustento de casa e o orgulho de uma vida construída com o trabalho das próprias mãos. 

Mas tudo mudou em novembro de 2015. Três dias depois do rompimento da barragem, a lama chegou ao local e transformou a paisagem fértil em um terreno devastado. “A enchente chegou aqui no dia 8 de novembro. A gente salvou algumas coisas, mas o resto se perdeu. O solo ficou contaminado, as plantações morreram, e depois, com as enchentes de 2021 e 2022, acabou tudo de vez.” Hoje, interditado pela Defesa Civil e sem condições de produção, Seu Itamar sobrevive apenas com a aposentadoria. “Se eu tivesse uma terra boa, eu estaria produzindo normal. Mas não tem mais como. A água está contaminada, o solo fraco, e a gente fica sem saída.” 

O momento mais difícil, ele conta, não foi a perda do gado, das plantações ou da renda. Foi o sentimento de impotência diante da família. “O mais marcante para mim é quando minhas filhas pediam alguma coisa e eu não podia dar. Eu tinha propriedade, mas não tinha como tirar o sustento dela. Isso me doía.” A virada nesse sentimento veio com a organização popular. Em 2019, ele passou a integrar o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e, junto à comunidade, começou a lutar por reconhecimento e por direitos. “A gente teve que provar que era atingido. Mesmo tendo propriedade na beira do Rio Doce. Foi com muita luta que conseguimos trazer a assessoria técnica independente. Com fé em Deus e com união, conseguimos algumas conquistas, mas ainda falta muito.” 

Entre as pequenas vitórias, Seu Itamar destaca o acesso ao PTR Rural e a regularização de cadastros como o CAF. “Antes a gente não podia comprovar renda, e por isso não tinha direito. Só com a chegada da assessoria e do MAB é que conseguimos resolver. Agora pelo menos temos um alívio.” 

Mesmo com as perdas, ele não desistiu de trabalhar. A partir de 2018, começou a produzir mudas de plantas, primeiro para replantar, depois para vender. “Perdi mais de 700 mudas nas enchentes, mas recomecei tudo de novo. Hoje eu vendo minhas mudas lá no fundo da minha casa, no distrito de Cachoeira Escura. É o que ainda me mantém de pé.” Para seu Itamar é a luta coletiva quem mantém viva a esperança por justiça e reparação. “Não existe conquista sem luta. Se não lutar, você não consegue nada. Tudo que eu tenho hoje foi com luta. E eu fico triste de ver amigos que não participam, porque se eles soubessem o valor disso, estariam junto.” 

Com a firmeza de quem tem fé na vida e no que virá, seu Itamar conclui esperançoso: “Eu só consegui seguir em frente porque tive fé em Deus, bons amigos e uma assessoria que olha pela gente. Não há nada sem Deus e sem união. É isso que me dá força pra continuar lutando. Queria ver tudo voltar ao normal, poder trabalhar com tranquilidade e viver do meu suor. É mais gratificante conseguir as coisas com o próprio trabalho do que com qualquer indenização”. 

Geraldo Magela é um senhor grisalho, que olha para a câmera em frente a uma casa de cor salmão. Entre ele e a casa há um pátio descampado. O céu está nublado e acima da casa pode-se ver um palmeira bem alta.

Geraldo Magela, a firmeza de quem sabe que é o sol da luta que ilumina e dá unidade ao povo atingido 

Há sessenta anos, Seu Geraldo Magela vive na mesma terra, às margens do Rio Doce, no município de Periquito (MG). Filho e neto de agricultores, construiu a vida dividido entre os trabalhos como advogado no Sindicato e a lida na roça. “Sempre vivi da agricultura familiar. Trabalhava com a irrigação que puxava do Rio Doce. Plantava maracujá, feijão, milho e banana. Tinha um projeto bonito aqui”, recorda com um sorriso largo que quem já teve uma terra abundante e produtiva. 

A tranquilidade do campo, no entanto, se perdeu em novembro de 2015. O rompimento da barragem de Fundão trouxe além da lama de minério, o medo e a desconfiança. “Depois da lama, tive que mudar tudo. A água ficou contaminada, o solo adoeceu. O que era área de plantio virou um terreno endurecido. E o pior foi a rejeição das pessoas ao que produzíamos. Ninguém queria mais comprar o que a gente produzia. Diziam: ‘ah, isso vem de lá da beira do Doce, tem veneno’. E tinham razão, a água estava mesmo envenenada. Contaminada”. 

O dano ambiental gerou danos à renda e veio acompanhado da perda material. “A lama aterrrou cercas, tubulações e a área de irrigação. Perdi quase tudo. Sobrou só o motor e uns tubos de irrigação que estavam mais aqui para cima do terreno. Foi um tempo muito difícil. A gente via os peixes mortos, os bichos morrendo na beira do rio. Um cheiro ruim. Nunca tinha visto nada igual”, conta Magela. 

Por muito tempo, as famílias atingidas ficaram sem resposta e sem reconhecimento. Para ele, foi a organização popular das pessoas atingidas que mudou o rumo da luta por reparação. “Primeiro veio o MAB, depois a Aedas. Eles organizaram o povo, mostraram que a gente tinha direito. Se não fosse o MAB e a assessoria técnica, ninguém aqui teria conseguido nada”.  

Para seu Geraldo Magela, foi a partir da luta que as coisas começaram a melhorar. “É a luta coletiva que dá sentido à reparação. Conquista sem luta, eu não conheço! Toda conquista vem da luta. E quando o povo se organiza e tem quem o oriente, tem voz. E essa voz faz diferença”, pontua Magela, com a firmeza de quem sabe que é o sol da luta que ilumina e dá unidade ao povo atingido, sem deixar que ninguém atrapalhe a passagem dos que lutam por reparação. 

Entre as conquistas, Seu Geraldo também destaca o Programa de Transferência de Renda (PTR). “O PTR veio pra corrigir uma injustiça. Ele ajuda quem foi mais atingido, quem perdeu a renda da terra. É um alívio pra quem vive da agricultura. Se não fosse ele, o caos era maior. A agricultura familiar é a salvação do país. Mesmo que a gente produza pouco, é daqui que vem o alimento do povo. O que vai pra exportação não enche barriga de ninguém.” 

Ao falar do futuro, ele mantém a esperança de ver o solo e o rio recuperados. “O que a gente quer é ver o Rio Doce limpo, o solo fértil como era antes. Quero poder devolver pros meus filhos e netos a terra do jeito que recebi: viva e produtiva.” 

Mesmo após uma década, Seu Geraldo segue firme na luta sem deixar uns e outros melar, como canta Gonzaguinha. Participa das reuniões do da Aedas, do sindicato, MAB, e de todos os espaços de mobilização popular. “Eu tenho orgulho de participar. Qualquer lugar que tiver reunião, eu vou. Fui pra Resplendor, pra Ipatinga, pra Belo Horizonte, pra Brasília. Onde tiver luta, eu tô junto. Eu já tive diversas chances de ir embora, mas quis ficar aqui. Quero ver isso se resolver. Nós ainda vamos vencer”. E venceremos! 

Maru Orutum Puri, a Maria José, é uma liderança indígena. Na foto, ela aponta para o lado esquerdo da tela. Ela usa um vestido azul com cinto da mesma cor, e adereços indígenas ao redor do pescoço. Na cabeça, usa um cocar de penas verdes e vermelhas, com penas azuis no centro. Ela usa um crachá, e segura um microfone. Atrás dela, um espaço com paredes e grades azuis.

Maru, a mulher indígena atingida que luta por reparação e pelo direito ao chão da vida 

Maria José Batista Meireles se apresenta com firmeza: “Meu nome indígena é Maru Orutum Puri. Sou do povo Ñamantuza Koya Puri, de Resplendor, no território 7”. É assim, afirmando o nome e a origem, que ela começa a contar sua história. Uma história que atravessa dez anos de luta, resistência e esperança às margens do Rio Doce. 

O rompimento da barragem de Fundão, em 2015, mudou os modos de vida dos diversos povos indígenas. A lama destruiu não apenas o rio, mas também as formas como as comunidades tradicionais viviam dele. “O Rio Doce era o nosso sustento. A gente vivia à mercê das águas. Depois do crime, a água ficou impura, o solo enfraqueceu e a vida mudou. Não aceitamos o que aconteceu, porque foi um crime contra nós, contra a natureza e contra nossa cultura.” 

Para Maru, o que mais marca esse longo processo é o cansaço de uma espera que parece não ter fim. “São dez anos de incertezas, de promessas. Essa espera prolongada traz preocupação, traz doença. A gente quer solução, quer que o nosso povo tenha futuro”. Ela lembra, com emoção, o dia em que os povos indígenas da Bacia do Rio Doce foram reconhecidos oficialmente. “Foi um momento muito importante em Brasília. Até então, diziam que os povos indígenas da região não existiam. E nós mostramos que estamos vivos, que existimos e que resistimos. Aquilo foi uma vitória.” 

Para o povo Purí, a reparação passa, antes de tudo, pelo direito ao território. “Nosso futuro depende dessa terra. Precisamos estar assentados, ter o nosso território garantido. Fora dele, tudo fica mais difícil. Temos nossa língua, nossa cultura, nossos artesanatos…, mas sem terra, é como se tirassem o chão da nossa vida”. Maru também fala sobre a importância da assessoria técnica indígena própria, prevista no Anexo 3 do Novo Acordo Rio Doce. “Essa assessoria é essencial. Nós temos jovens capacitados, temos quem possa trabalhar e representar o nosso povo. Queremos participar com autonomia, construir soluções a partir da nossa visão. É o nosso direito, garantido pela consulta livre, prévia e informada.” 

Ao longo desses dez anos, ela aprendeu que nenhuma conquista vem sem luta. “Nós lutamos incansavelmente. Muitas vezes deixamos nossas casas, viajamos para longe, sem saber se iríamos voltar, só pra garantir que a voz do nosso povo seja ouvida. A luta já faz parte da nossa vida.” 

No encerramento do seminário de mulheres atingidas, ela deixou uma mensagem firme, olhando para as outras mulheres atingidas, agricultoras, pescadoras, indígenas e ribeirinhas presentes: “Que as mulheres não deixem sua voz ser calada. Nós somos valorosas. Se continuarmos de pé, unidas, alcançaremos o que traçamos nesses anos de luta”. 

Drª. Graça está sentada na garagem de sua casa, com uma camisa rosa. Ela conversa com alguém fora do campo da imagem, e sorri. Tem cabelos levemente grisalhos e amarrados. Usa um brinco na orelha esquerda, e à sua frente há várias pastas com seus óculos repousando no topo. Ao fundo, uma janela e uma porta, com quadros aparecendo de relance na parede.

Dra Graça – Indignar-se, ter coragem e continuar lutando 

Entre o passar dos trens de carga e o apito dos de passageiros, conversamos com Maria das Graças Cruz Seriaco, mais conhecida por Dra Graça, na varanda de sua casa em Resplendor, no Leste de Minas Gerais. Aos 76 anos, voz firme e olhar sereno, ela carrega no semblante a sabedoria de quem fez da vida uma travessia de lutas e de conquistas. 

“Eu sou Maria das Graças Cruz Seriaco, hoje, com 76 anos de vida bem vividos. Venho de uma família humilde, meu pai era lavrador, semianalfabeto, e minha mãe também. Somos sete irmãos. Já passei por muitas lutas. Às vezes a gente se entristece, porque com o tempo vai perdendo pessoas queridas. Mas, mesmo com as dificuldades, eu sempre as vi como estímulos para continuar lutando”, conta. 

A educação foi o primeiro campo onde doutora Graça semeou resistência. Atuou no magistério até a aposentadoria, depois, fez pedagogia e, já aposentada, formeu-se em Direito movida pelo desejo de ver mais justiça no meu entorno.  

Quando a barragem de Fundão se rompeu, em 2015, o Rio Doce trouxe uma onda de destruição que atingiu também o coração de Resplendor. Ela recorda o dia da chegada da lama: “Foi desesperador. Tudo que é novo assusta, e uma novidade ruim assusta mais ainda. Uns ficaram atônitos, outros revoltados. No dia seguinte, vimos que não era algo passageiro… ia afetar a vida da gente, principalmente a água.” 

Na época, dra. Graça trabalhava como assessora jurídica da Prefeitura. “Deixamos tudo para ajudar na distribuição de água mineral. Fui para as filas, ajudar a organizar, acalmar as pessoas. Era um momento de tensão. O dia seguinte foi pior que a chegada da lama: a dor e a preocupação só aumentavam. O comércio parou, as escolas suspenderam as aulas, a área rural ficou isolada. Cada dia trazia uma nova dificuldade.” 

Dez anos depois, ao lembrar o caminho percorrido, dra. Graça fala de derrotas e vitórias. “Negativamente, lembro das vezes em que saímos das reuniões desanimados, sem esperança. E ver laudos dizendo que a água estava ‘própria para consumo’ foi frustrante. Mas houve momentos de força também: quando percebemos que sozinhos não somos nada. A coletividade manteve nossa luta viva. A tragédia uniu todos – diplomados e analfabetos, negros e brancos, ricos e pobres – com o mesmo objetivo: reconstruir a vida.” 

A advogada lembra que o espírito de organização já existia desde o tempo da construção da usina hidrelétrica de Aimorés. “Já tínhamos grupos de atingidos, cadastros de pescadores. Então demos continuidade. Produzimos camisetas, realizamos encontros, e o apoio de movimentos e instituições foi essencial. O Fundo Brasil, o MAB e, depois, a chegada da assessoria técnica independente. A escolha da assessoria foi um momento importante: uma disputa saudável, mas necessária. Precisávamos de quem caminhasse conosco.” 

Questionada se existe conquista sem luta, responde firme: “Não, o que vem sem luta não é conquista. A conquista é fruto da resistência e da busca pela equidade. É isso que dá sentido à caminhada, saber que a gente está deixando um legado, plantando uma semente que pode florescer agora ou no futuro.” 

Ao refletir sobre o tema que dá nome ao documentário lanço pela equipe de comunicação do Programa Médio Rio Doce da Aedas, dra Graça reflete. “Essa frase significa continuidade. Nesses dez anos, crescemos em consciência social. Lembro de Santo Agostinho: ‘A esperança tem duas filhas, a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão, e a coragem nos move a transformá-las’. É isso que vivemos: nos indignamos, lutamos e seguimos transformando, passo a passo.” 

Atingidos fazem passeata em Brasília, ocupando uma faixa de uma extensa avenida. Eles seguram bandeiras e há um balão escrito "8 anos", o que situa a passeata no final de 2023. Eles estão cercados por áreas verdes e o céu é bem azulado.

Texto: Thiago Matos com colaboração de Camila Quintana – Equipe de Comunicação do Programa Médio Rio Doce