Com críticas à condução de possível acordo entre a mineradora Vale e o Estado de Minas Gerais, que vem sendo discutido a portas fechadas, a deputada estadual de Minas Gerais Beatriz Cerqueira (PT) propôs a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra a negociação. A proposta já conta com 17 assinaturas, mas precisa de 26 para que seja protocolada e enviada à Mesa Diretora.

Em entrevista à Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), a parlamentar comenta sobre a falta de participação das famílias atingidas, principais afetadas pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, e critica a confidencialidade do processo. Confira a entrevista a seguir.

(Foto: Sarah Torres / ALMG)

Repórter Aedas: Deputada, recentemente uma possibilidade de acordo entre o governo de Minas Gerais e a mineradora Vale causou grande preocupação entre as famílias atingidas pelo rompimento em virtude da falta de informação e participação das principais pessoas afetadas pelo desastre. Qual sua opinião sobre essa questão?




Beatriz Cerqueira: Em relação ao acordo, a situação é muito grave e muito preocupante. O governo do Estado tocou de forma secreta, sigilosa, entre quatro paredes, um acordo, ou possibilidade de um acordo, de bilhões de reais, sem que houvesse transparência, participação popular, sem que a sociedade pudesse ter acesso ao conteúdo do que estaria sendo proposto. E, o mais grave, sem a participação direta daqueles e daquelas que foram atingidos pelo crime da Vale. São milhares de pessoas, que viram seu modo de vida completamente destruído. E que, portanto, têm o direito de ter voz naquilo que afeta na sua vida.

O governo tem dito que essa negociação não discute ações individuais, reparações individuais. Não importa. No coletivo, nas ações que são para o conjunto da sociedade, aqueles que são atingidos também têm o direito da participação. A participação de quem foi atingido pelo crime da Vale não está restrita a questões que são danos morais, individuais, a um ressarcimento individual. Atingiu toda a sociedade e aqueles que são atingidos têm o direito também de acompanhar, fiscalizar, ser ouvido, naquilo que for definição coletiva. Mais grave, ainda, é essa dinâmica de valores. Quantos bilhões serão? Quem vai decidir isso? Como ninguém tem acesso às minutas, ao que é proposto, ao que é negociado, por que continua uma negociação de porta fechada, não tem transparência.

Portanto, não é um acordo que pode prosperar. Porque me parece que a maior beneficiada será a Vale, porque fará um acordo, de acordo com seus próprios interesses. O governo tem falado muito que é um acordo melhor do que foi Mariana. Que em Mariana tiveram muitas questões, como, por exemplo, a própria constituição da Renova, mas o governo só fala isso no discurso. Porque aquilo identificado como ruim ou errado em relação à Renova, que tem muita coisa, o governo não contestou. O governo não fez nenhuma medida de fiscalização, de contestação de tudo o que a Renova tem feito. Ao contrário, os atingidos do crime da Vale em Mariana ficam sozinhos nessa luta insana contra o poder econômico e político das mineradoras.




Repórter Aedas: Na sua opinião, de que forma o legislativo pode atuar para contribuir que os danos causados pela barragem sejam reparados e que outros desastres desse porte não voltem a acontecer em nosso estado?




Beatriz Cerqueira: Na minha avaliação, a Assembleia Legislativa tem atuado em relação ao crime da Vale em Brumadinho. Primeiro, a própria constituição de uma comissão parlamentar de inquérito, que por seis meses trabalhou na investigação do crime cometido pela Vale. Uma CPI, inclusive, que contribuiu com vários elementos para as próprias investigações que estavam sendo feitas à época. A própria CPI foi o lugar que as pessoas tiveram acesso para acompanhar depoimentos, acompanhar discussões, que é o papel de uma casa política como a Assembleia.

Nós, em 2019, votamos o projeto Mar de Lama Nunca Mais, construído a partir da participação da sociedade, e, portanto, importante, porque era uma resposta que o povo mineiro merecia desde a legislatura passada. Outra questão é exatamente um Projeto de Lei sobre os direitos dos atingidos, que já foi votado em primeiro turno e está pronto para votação em segundo turno na Assembleia Legislativa. E a própria fiscalização, porque após a CPI, foi criada uma comissão para dar continuidade e fiscalização do próprio cumprimento das recomendações da comissão parlamentar de inquérito. Além de ações em relação a vários outros territórios que enfrentam poder político, o poder econômico das mineradoras e que, portanto, a Assembleia deu voz, esteve ao lado, questionou o contraditório em várias dessas situações, se colocando ao lado dos atingidos das populações que tinham seus direitos violados.

Então, é uma atuação importante e, talvez, exatamente por ter uma atuação tão propositiva, o governo deixa de fora um poder tão importante nas próprias discussões em relação ao acordo da Vale. Porque sabe que na Assembleia tem o contraditório, tem o plural e, evidentemente, nós jamais concordaríamos com um acordo sendo feito de portas fechadas.




Repórter Aedas: Após o rompimento da barragem em Brumadinho, a deputada acompanhou a CPI da Mineração. Qual foi o objetivo dessa CPI e a que conclusões chegou?




Beatriz Cerqueira: Uma Comissão Parlamentar de Inquérito tem uma função muito eficaz na investigação, na solicitação de documentos. Tão eficaz que a Vale, temendo vir à CPI em Minas Gerais, conseguiu recorrer ao poder Judiciário para que lhe fosse resguardado o direito de não comparecimento. Para matar as pessoas, a Vale está presente, mas, para responder pelos seus crimes, ela não quis comparecer. E só não compareceu seu diretor-presidente, exatamente resguardado por uma decisão judicial. Então, uma comissão parlamentar de inquérito teve a sua importância, foi um lugar que fez a escuta de pessoas atingidas, audiências públicas foram realizadas, visitas em vários locais também foram feitas.

Agora, diante da falta de transparência, nós não temos acesso ao conteúdo do que está sendo negociado. Nós damos destaque aos próprios valores, porque eles são enormes e, portanto, chamam atenção. Mas, quais são as outras cláusulas? Ninguém sabe. A sociedade não tem acesso e, portanto, não tem como formar opinião. E o poder legislativo, que tem a função de fiscalizar, tem sido tolhido do seu papel nesse momento. Por isso eu propus uma investigação dos termos do acordo da Vale e governo do Estado. Já está apresentado na Assembleia Legislativa, precisa de um número mínimo de assinaturas de deputados e deputadas. Nós estamos aguardando a conquista desse número, para que possamos protocolar esse pedido de investigação. Ele só foi feito, exatamente, porque mesmo após a audiência pública realizada na Assembleia na comissão de Direitos Humanos a meu pedido, nós não obtivemos informações, as coisas não ficaram transparentes, não há participação dos atingidos pelo crime.

Portanto, esse é um assunto que merece uma reação do poder Legislativo e ficará constrangedor se a Assembleia Legislativa não tiver nenhuma postura, porque a Câmara dos Deputados já instaurou uma comissão externa para fazer o acompanhamento deste acordo que tem sido discutido de porta fechada. Não é possível que o poder legislativo mineiro não vá ter uma posição que faça fiscalização efetiva do que está sendo feito e do que pode ser feito, inclusive com o Estado abrindo mão de bilhões de reais do que ele mesmo alegou que era o mínimo que a Vale devia por todos os prejuízos causados.