Conheça os projetos de vida interrompidos pelo desastre da Vale que contaminou o Rio Paraopeba
A ruptura da barragem da mineradora Vale de Brumadinho tirou a vida de 272 pessoas e deixou milhares sem acesso à água na Bacia do Paraopeba. Muitos são pescadores e produtores rurais, que convivem com uma situação de calamidade socioambiental, já que a lama de rejeitos tóxicos permanece no fundo do rio, e chega próximo às casas em períodos chuvosos e de enchente.

A Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) vai contar algumas histórias de pessoas atingidas que sofrem no dia a dia com as consequências do desastre ambiental ocorrido em 25 de janeiro de 2019, que vão desde danos à saúde física e mental até danos econômicos. Queremos mostrar alguns rostos e ouvir as vozes das pessoas atingidas que residem nos seis municípios (Brumadinho, Betim, Igarapé, Juatuba, Mário Campos e São Joaquim de Bicas) que contam com Assessoria Técnica Independente (ATI) da Aedas.
Brumadinho
O bairro Pires fica a 3 km do centro de Brumadinho, em uma região bastante afetada pelo rompimento da barragem da Vale, e por isso chamada de Zona Quente. Próximo a esse bairro, existia um local, às margens do Rio Paraopeba, chamado de Ribeirão. Era lá que boa parte das pessoas da região passavam momentos de lazer nas horas vagas. “Era o que a gente tinha pra se divertir, um espaço bem bacana com areia. Todo mundo ia pra tomar banho, sentar, conversar. Esse lugar não existe mais, tá coberto de lama, não tenho coragem nem de passar lá perto mais”. Quem nos contou isso foi Rejane Reis, moradora do bairro Pires, com residência fixa a aproximadamente 300 metros do rio.

A água que Rejane consome vem da Copasa, e ela nos conta que começou a adquirir doenças no estômago depois do rompimento, devido o consumo da água. “Muita gente aqui têm sofrido com isso. Eu tenho uma netinha de cinco anos, e quando consome a água ela apresenta diarréia e vômito e nada disso nós tínhamos aqui antes”, conta.
Além do lazer, muitas famílias como a de Rejane (foto abaixo), também utilizavam o rio para a pesca. Mas hoje, todas essas atividades foram prejudicadas com a contaminação de rejeitos no Rio Paraopeba. Nem mesmo água potável para consumo humano a poluidora Vale tem garantido.
Já seus pais, que moravam no mesmo bairro de Pires, e utilizavam poço e cisterna, tiveram a casa interditada pela Defesa Civil após as enchentes de janeiro de 2020 e foram obrigados a sair do local. “A Vale não pagou nada por essa saída. A água contaminada chegou na porta da cozinha de minha mãe e a casa começou a apresentar rachaduras”, lamenta, dizendo que seus pais tiveram prejuízo inclusive com os animais de criação, como gado que criavam para sobreviver, indo morar em Pará de Minas. “Lá não tem água também, nem pra beber, a água de lá é suja. Está uma situação muito constrangedora”, denunciou a moradora atingida. A assessoria técnica que atua em Pará de Minas é o Nacab.
Igarapé
Em Igarapé, cidade que fica a 23 km de Brumadinho, o epicentro do desastre, a situação do Rio Paraopeba não muda muito. A pesca foi proibida e é muito comum ouvir a frase “o único lazer que nós tínhamos acabou” quando se pergunta do rio, uma vez que era lá onde as pessoas faziam a maior parte de suas atividades, da pesca para sobrevivência ao lazer, já que a água era limpa.
Rosângela Ferreira, do bairro Beverly, mora a menos de 300 metros do rio e de seu quintal é possível ver o Rio Paraopeba (foto abaixo). Ela diz que possui exames médicos que comprovam a situação da água. “Eu comecei a me sentir mal. Não sabia que era da água e o médico me disse que era um tipo de verme que se dá em água contaminada. Aqui tá cheio de gente com problemas gastrointestinais”, explica ela.

Rosângela nos conta que na época do desastre eles não recebiam água da Copasa, e então ela tentou receber a água da Vale, mas alegaram que ela não estava dentro da área. “Dá de ver o rio do meu quintal, se eu não estou dentro da área, quem vai estar?”, denúncia. “Hoje a água é fornecida pela Copasa, mas quando você sai do banho, nossa senhora…dá muita coceira na pele, o jeito é se virar e comprar água mineral pelo menos para beber”, afirma a moradora de Igarapé, dizendo que às vezes, quando estão sem dinheiro, bebem da própria água mesmo porque “nem sempre a gente tá com condição de comprar, e assim vai a luta”, relata.
“Emergencial só eu recebo, o do meu marido foi cortado há muito tempo, como o de muita gente aí. Mas nós vivíamos dessas coisas. Das nossas plantações, da horta, pesca. Morreu tudo, não vinga mais, não vinga! As plantas agora ficam horríveis. A gente não consegue nem recomeçar”, desabafa a moradora de Igarapé.
São Joaquim de Bicas
“Morar no Residencial Fhemig é como morar em uma ilha, nós somos cercados pelo Rio Paraopeba”, diz com saudade Dinalva Barbosa, moradora do local. Sua fala é saudosista porque já houve momentos em que as pessoas do local viviam de outra maneira. “Nós vivíamos da seguinte forma, tínhamos o rio Paraopeba que a gente podia plantar, eu mesma plantava cinco mil metros lá perto do rio, e a gente podia captar aquela água pra tá fazendo a irrigação da nossa plantação”, conta.
Dinalva diz que seu plano sempre foi criar galinha, vender seus ovos, assim como vender ela viva e abatida na hora. “Tínhamos nossas criações para cuidar e vender. Porco, cavalo, bezerro…de repente, quando rompeu a barragem, ali foram nossos sonhos, foi tudo embora”, lamenta e diz ainda que após o rompimento começaram a morrer várias galinhas. “Nós tivemos um prejuízo muito grande com criação, outros vizinhos também perderam, tudo decorrente do crime da Vale no Rio Paraopeba”, revela.
Pescar, acampar na beira do rio, eram atividades comuns e que faziam parte do modo de viver do local. “Hoje não vamos mais, não pode fazer isso”, disse Dinalva, abrindo a discussão para um novo conjunto de danos ocasionados pela quebra de vínculos e relações comunitárias. Essa soma de problemas ocasionou, inclusive, tentativa de suicídio em pessoas próximas a Dinalva. Abaixo, nesta matéria, você pode encontrar locais de amparo caso esteja precisando de apoio psicológico, para você, familiares ou amigos.
De acordo com ela “é necessário ligar quando se precisa de água, ligar pra conseguir abastecer a caixa d’água, além do que a Vale não fornece água para irrigação das plantações. Nós plantávamos para poder colher e sustentar os nossos animais. Isso a gente não tem mais”, desabafou.
Além disso, um problema que assola todas as cidades das regiões 1 e 2 é a qualidade da água, que ocasiona várias doenças de pele e físicas a longo prazo (Na foto ao lado, V., filho de Dinalva). “Até o meu cabelo está caindo e eu tenho certeza que é o cloro da água potável que vem pra gente”, disse a moradora de São Joaquim de Bicas.

O contexto é de caos e crise hídrica generalizada na cidade. Moradora de uma das cidades que mais fizeram protestos no último mês, Dinalva conta que a filha ingeriu uma comida feita com água potável, e não passou bem. “Minha filha estava grávida de quatro meses, e depois de comer começou a vomitar sangue vivo. Eu registrei, tenho fotos”, alerta. Sem falar nas plantações, onde ela afirma que “nada do que estamos plantando tá fluindo… repolho, cenoura, couve, cebolinha. Quando a gente reclama com a Vale sobre isso, eles falam pra gente que é porque nós não estamos cuidando do solo. Ainda falam que a culpa é nossa, diante de um crime ambiental”, desabafou dizendo ainda que a água que recebe é insuficiente e não confiável, e por isso não plantam mais em grande quantidade.
Para Dinalva, a população se sente totalmente dependente e sendo humilhados pela Vale. Dinalva finalizou falando que a cisterna que usavam, está interditada sem poder ser usada, devido a contaminação do solo e da água. “Porque ainda não foi feita uma análise nem nada, mas se a própria empresa fala pra você não usar…é tanto que eles vieram e instalaram os reservatórios pra gente não usar a água das cisternas”, indagou.
Betim
A pescadora Merita de Jesus Oliveira (na foto), 50 anos, mostra fotos de seu neto na beira do Rio Paraopeba e desabafa. “Dá até vontade de chorar ao ver a foto do meu menino na beira do Rio. Essa hora era para a gente estar lá pescando. Essa tragédia da Vale acabou com tudo”. Ela mora com o marido, a filha e quatro netos, de doze, dez, oito e seis anos, no bairro Cruzeiro, em Betim. Merita estava, inclusive, em seu barco quando a barragem Córrego do Feijão se rompeu em Brumadinho.

No primeiro aviso, ela duvidou que fosse possível. “Que barragem? Se não estava chovendo nem nada”. Só se deu conta da gravidade da tragédia quando policiais vieram avisar. “A Polícia chegou e disse: sai da beira do rio que é verdade, sai daí agora, larga tudo, que senão vocês vão morrer”.
A abundância de peixes sustentava a família e garantia o alimento na mesa todos os dias: curimatã, tilápia, dourado, piau, cascudo e lambari. “A gente pescava para comer, para vender para os amigos e vizinhos e para ajudar no sustento da casa. Quando eu pescava já mandava foto no WhatsApp. A gente vivia disso”. Hoje Merita recebe o pagamento emergencial integral, mas seu marido já não recebe desde dezembro de 2019. “Meu marido trabalha de pedreiro, não tem serviço fixo e aqui em Betim não há muito emprego”.
Agora a rotina de trabalho da família de Merita à beira do rio deu lugar à angústia da incerteza do futuro sem o pagamento emergencial. “Até hoje o rio não limpou. O pagamento emergencial tem segurado a barra da gente, mas como nós vamos sobreviver a partir de dezembro?”, questiona.
Mário Campos
O pequeno produtor e piscicultor Adilson Ramos Martins, de 44 anos, viu seu projeto de vida mudar de uma hora para outra após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Ele mora há sete anos na cidade de Mário Campos, na Reta do Jacaré, às margens do Rio Paraopeba. “É um sentimento que não dá para explicar, era uma vida bem tranquila que imaginava levar para o resto da vida. Envelhecer no lugar, criar os filhos, mostrar para eles o processo, tirar dali o sustento e de repente tudo mudou”, conta.

No dia em que a enxurrada de lama contaminou o Paraopeba, Adilson, que mora com a esposa e duas filhas, uma de sete e doze anos, teve que sair às pressas pois a contaminação no ar estava insuportável. “Ficou tão ruim o ar que tive que sair e ir para a casa de parentes”, relata. Hoje Adilson precisa tomar remédios para dormir para suportar o barulho do trem da Vale que segue retirando minério de ferro para exportação. “A cabeça da gente não ficou boa, tive que fazer tratamento psicológico. Eu moro bem próximo da linha do trem, isso me incomoda tanto que eu não consigo dormir”, desabafa.
Desde o rompimento, a mineradora Vale também foi obrigada a fornecer água para piscicultura. “Porém a água que eles fornecem contém cloro e mata os peixes e não dá um desenvolvimento saudável para os animais”, contextualiza Adilson. Ele também relata que tiveram que reduzir as plantações por conta da falta de água constante na região. “Desde então recebemos caminhões de água potável, porém, essa água é imprópria e insuficiente para produção e até mesmo para qualidade e desenvolvimento da horta”, explica.
E para complicar ainda mais a história, desde outubro Adilson deixou de receber o pagamento emergencial concedido pela mineradora Vale. “A gente se sente largado porque a Vale tem muito poder. É uma realidade que a gente nunca imaginava e não temos nenhuma expectativa de volta ao normal. Sem água a gente não consegue fazer nada”.
Juatuba
O Rio Paraopeba passa no fundo da casa de Lilian Gonçalves dos Santos, de 43 anos, moradora do bairro Francelinos, em Juatuba. Ela conta que a vida mudou completamente após o rompimento da barragem da Vale. “O rio ficava cheio no final de semana, até era difícil achar um cantinho”, relembra. “A gente está num abandono. Minha família e meus amigos vinham por causa do rio para pescar e hoje não vem mais ninguém”, lamenta.
Ela costumava pescar no Paraopeba e também usava a água do rio para criação de minhocas e produção agrícola. Plantava banana, milho, quiabo, couve, alface, mostarda e cebolinha. “São esses trens simples que a gente plantava para comprar outros tipos de verdura. Hoje ninguém quer comprar nada, as pessoas têm medo”.

Ela relata que já ficou uma semana sem água e convive com a incerteza de ter fornecimento para os usos domésticos em geral. Desde o rompimento, não consegue produzir sequer para sustento próprio e da família. “Vida ficou péssima, tudo ficou chato e difícil. Começou até a me dar um pouco de depressão, pois eu sempre gostei de trabalhar”. Viúva, ela é mãe de dois filhos, um de 14 e outro de 19.
Lilian também é uma das pessoas atingidas que vem relatando contas abusivas de água cobradas pela Copasa. Ficou em choque ao receber faturas abusivas de até R$ 500. “Eu desesperei. Sou viúva e meus filhos estão desempregados. Como estou gastando se eu não tenho água? Ficamos o dia inteiro sem água. Tivemos que pagar para eles não cortarem”. Ela nunca recebeu água mineral da Vale ou da Copasa e hoje consome água da torneira no filtro de barro. “A promessa era vir essa água, mas não apareceu essa água aqui não.
Mesmo morando a 300m da calha do Rio, recebe apenas 50% do valor do pagamento emergencial depositado pela Vale como medida de mitigação do desastre. “A Vale é uma firma que ganha muito dinheiro e matou o nosso rio. Como vai ser da nossa vida? Eu acho que ele devia nos pagar até devolver a nosso Rio. Só devolvendo o Rio nossa vida vai voltar ao normal”.
Confira locais para atendimento psicológico neste link.
Texto: Carmen Kemoly e Vivian Viríssimo