Na Comissão de Direitos Humanos da ALMG, atingidos do quilombo Família Sanhudo afirmam que comunidade não foi consultada sobre termo que estabelece o fornecimento de água
Comunidade relata problemas agravados com TAC Água e reivindica autonomia para o abastecimento. Foto: Júlia Rohden/Aedas

“A gente tinha água e era muita, muita mesmo, dava para lavar todo o quintal. Hoje, a água é pingada, não dá nem para aguar as plantas. A gente fica mendigando água. Eles querem cobrar uma taxa, mas não fomos nós que estragamos. Nós vamos ter que pagar? Você acha justo isso?”, questionou Camila Caldeira, da comunidade quilombola do Sanhudo, em Brumadinho, durante a Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizada na tarde da última segunda-feira (26/08).

A audiência debateu a situação da comunidade que convive com graves problemas de acesso à água que pioraram com o Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) Água, assinado pelo Governo de MG, Defensoria Pública e Ministério Público estadual. O TAC faz parte das ações de reparação pelo rompimento da barragem no Córrego do Feijão.

“Desde o rompimento, a captação de água da comunidade foi comprometida. Antes, a própria comunidade fazia a gestão da água, mas a partir do rompimento e do que foi determinado em juízo, a Vale passou a fazer a gestão das águas pelo fato do dever de reparar os danos causados, devido ao desastre crime. Por isso, a principal reivindicação da comunidade hoje é que ela possa voltar a fazer essa gestão, considerando que é cercada por um manancial de água muito rico e que a Vale enquanto responsável pelo desastre crime, faça apenas a manutenção da rede hídrica e troque a tubulação para a comunidade administrar”, explica Darliane Soares, assessora da equipe de Estratégias Jurídicas da Reparação da Aedas.

Ela também ressalta que a comunidade quilombola não foi ouvida antes da assinatura do 6º aditivo do TAC Água, que prevê a construção de uma rede de abastecimento vindo da bacia do rio Manso, e que ficará posteriormente sob a gestão da COPASA, o que irá incidir em cobrança para a comunidade. Sem essa consulta, há violação à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que prevê a realização de consulta livre, prévia e informada aos povos e comunidades tradicionais que precisam ser consultada sobre qualquer decisão que venha afetar seus modos de vida.

Família Sanhudo relata cotidiano de violações

Evandro França de Paula, integrante do quilombo Família Sanhudo, criticou o TAC Água e mostrou fotos, vídeos e áudios da comunidade que retratam recorrente falta de água na torneira, além de contaminação das nascentes e poeira causada por mineradoras.

Ele também denunciou que a Vale contaminou um reservatório de água que era tradicionalmente usado pela comunidade e que funcionários da empresa controlam a quantidade de água disponível para as famílias com constantes cortes. “Será que eles têm família? Será que a família deles suportaria um ano o que estamos suportando há quatro anos?”, questiona.

Maria de Fátima, também do quilombo Família Sanhudo, falou das diversas perdas da comunidade a partir da chegada da mineradora. “A Vale começou a acabar com nossa vida desde 2019. Acabou com nossos parentes, nossos amigos, não só com a água. Nossos parentes que foram trabalhar e não voltaram. Meu primo morreu sufocado no ônibus. A vale não está nem aí”, disse.

Maria de Fátima, integrante do quilombo Família Sanhudo relata as violações após rompimento da barragem da Vale. Foto: Júlia Rohden/Aedas

A deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), que solicitou a Audiência Pública, ressaltou que a comunidade passou a ser cercada pelas mineradoras e hoje vive um caso emblemático de controle territorial. “O que aconteceu é absolutamente inacreditável. Quando fui lá pela primeira vez, entendi que a mineradora foi com o caminhão de rejeitos e jogou no reservatório de água para avançar no controle da água que é o controle da existência da comunidade. Quem controla a água, controla todo o cotidiano da comunidade. O que vemos é uma forma de controle do território e das pessoas”, destacou Bella.

O professor da PUC Minas e Advogado da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais – NGolo, Matheus Leite, destacou a gravidade da situação em Minas Gerais onde haveria uma violação sistemática aos direitos de povos e comunidades tradicionais promovidos pelo Estado. “A Secretaria de Meio Ambiente quer exterminar todas as comunidades quilombolas em Minas Gerais e é por isso que concede licenças ambientais aos empreendimentos predatórios sem a consulta às comunidades diretamente afetadas”, afirmou, relembrando casos de mineradoras na Serra do Curral e no Serro.

O advogado leu o Artigo 15 da Convenção 169 da OIT e afirmou que o TAC Água viola tal artigo e, por isso, não teria validade. “A comunidade quilombola do Sanhudo tem o direito de usar, administrar e gerir todos os recursos naturais existentes no seu território, inclusive a água”, disse. “Não admitam que o Estado e uma empresa possam fazer gestão de um bem que é central para restituir aos povos tradicionais o direito de decidir sobre sua própria vida, sem estar submetido a uma administração colonial e covarde, como a que é feita pelo Estado de Minas Gerais”, concluiu Leite.

Aedas apresenta análise hídrica

Kalahan Battiston, engenheiro hídrico, técnico da equipe de Marcadores Sociais das Diferenças da Aedas, apresentou mapas e estudos feitos em conjunto com a comunidade que demonstram o potencial hídrico do território repleto de nascentes, bem como os mananciais de água que tradicionalmente abasteciam o local.

Os estudos apontam que o desejo dos quilombolas de retomar um sistema autônomo de abastecimento de água é tecnicamente viável. Battiston mostrou que a capacidade de armazenamento da comunidade poderia abastecer todas as famílias por três dias, ou seja, há estrutura para atender às demandas do território. Além disso, as análises da qualidade da água apontaram que seria necessário um tratamento simples para ficar apta ao consumo humano.

Kalahan Battiston, engenheiro hídrico da Aedas, mostrou estudos de viabilidade técnica para sistema autônomo de abastecimento de água. Foto: Júlia Rohden/Aedas

Instituições de Justiça apontam violação

Os dois representantes das Instituições de Justiça presentes na Audiência Pública ressaltaram as violações de direitos as quais a comunidade está submetida e criticaram a assinatura do 6º aditivo do TAC Água sem a consulta livre, prévia e informada ao quilombo Família Sanhudo, contrariando a Convenção 169 da OIT.

O procurador Edmundo Antônio Dias Netto Júnior também destacou que a comunidade, cercada por mineradoras, vive várias violações a direitos que se sobrepõem, como o barulho incessante das máquinas, a poeira e a falta de água. “Estive lá no Sanhudo e a situação é realmente desoladora, o fornecimento de água é interrompido diuturnamente e a comunidade tem que conviver com isso. Na realidade, isso transparece uma tentativa de expulsão da comunidade do Sanhudo”, afirmou o procurador.

“O que a comunidade pleiteia é um direito e está garantido pela Constituição”, disse a defensora pública Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch. Ela destacou que a forma de abastecimento de água atual desconsidera os interesses da comunidade e viola direitos das comunidades quilombolas.

Caso explicita racismo ambiental

Ao final da Audiência Pública, a deputada Bella Gonçalves destacou os encaminhamentos da reunião, incluindo melhorias no abastecimento emergencial de água e pedido de providências para que o TAC Água seja revisto.

A gerente geral do Eixo Diretrizes da Reparação do Acordo Judicial da Aedas Nina de Castro informou que muitas daquelas demandas debatidas na reunião já foram oficiadas a pedido das pessoas atingidas para os órgãos competentes e não houve respostas. Ela também destacou que a comunidade vivencia o racismo ambiental. “Estamos falando do Sanhudo que é uma Zona de Sacrifício, é assim que os termos científicos falam da região. É o caso de racismo ambiental com uma comunidade colocada na Zona de Sacrifício. As contas dizem que é possível sacrificar aquela região, aquelas pessoas”, afirmou.

Nina de Castro também reforçou a prioridade da reparação socioambiental para as pessoas atingidas em toda a Bacia do Paraopeba e Lago de Três Marias. “Hoje, as atingidas não tem participação efetiva dentro da reparação socioambiental quando falamos do Acordo. Fica o pedido para que as pessoas tenham participação efetiva dentro da reparação socioambiental”, finalizou.

Clique aqui e assista ao Audiência Pública na íntegra.

Texto: Júlia Rohden/Aedas