A data que marca este desastre-crime é também um lembrete doloroso. Pois muitas pessoas atingidas pelo rompimento da barragem nunca tiveram reparados qualquer dos danos sofridos.
Marcha das Pessoas Atingidas marca os 8 anos do rompimento da barragem de Fundão (Mariana-MG) – Foto: Cleiton Santos

Há exatos oito anos, na tarde do dia 05 de novembro de 2015, rompia a barragem de rejeitos de Fundão, em Mariana (MG), no distrito de Bento Rodrigues. Naquele dia, 19 pessoas perderam a vida e milhares, ao longo de toda a Bacia do Rio Doce, tiveram suas histórias alteradas. A data que marca este desastre-crime é também um lembrete doloroso. Pois muitas pessoas atingidas pelo rompimento da barragem nunca tiveram reparados qualquer dos danos sofridos. Mesmo assim, as empresas proprietárias da barragem, Samarco/Vale (brasileira) e BHP Billiton (anglo-australiana), seguem sem punição pela Justiça do Brasil. 

Em dezembro de 2022, houve a conquista do povo atingido pelo direito de instalação das Assessorias Técnicas Independentes e também a retomada das negociações para repactuação, infelizmente, ainda sem participação popular. Na Justiça inglesa, mais de 700 mil pessoas atingidas entraram com ação judicial contra as empresas rés, entre outros processos que empurram a luta da Bacia do Rio Doce até o sonho da justiça, uma vez que a única coisa que não mudou foi a esperança, refletida na resistência do povo atingido. 

Assim como uma criança de oito anos já é, normalmente, mais expansiva, agitada pelo ganho de maturidade, o povo atingido, com os anos de experiência na luta, tem resistido e tomado uma posição ativa a cada vez que o tema “Rio Doce” é tratado sem abertura para consulta. Exemplo disso, são as últimas mobilizações organizadas no fim de agosto deste ano, em Governador Valadares e, logo depois, na capital mineira, em setembro. Pessoas atingidas de várias partes uniram-se para gritar palavras de ordem pelas ruas destas cidades clamando o direito à participação popular na mesa de negociação da repactuação. 

Hoje, 05 de novembro, data que o desastre-crime alcança seu oitavo ano, os atingidos e atingidas consolidam a Jornada de Lutas em Brasília.

Ato político e Inter-religioso “É Tempo de Avançar – Revida Mariana. Justiça para Limpar essa Lama”, em Brasília Foto: Cleiton Santos
Histórias Atingidas 

Apesar da luta incansável, muitas famílias ainda tentam se reerguer. É o caso do Sr. Anael Lima, de São Sebastião da Barra, em Ipaba (MG), pescador há 12 anos. Ele relata que antes do rompimento da barragem de Fundão conseguia ganhar a vida com a pesca de grandes quantidades de peixe e plantação. 

Sr. Anael Lima, de São Sebastião da Barra. Foto: Glenda Uchôa 

“Pescava os peixes e trazia na bicicleta e fazia de 2 mil a 2.500 mil reais. Hoje, sempre tenho 20, 30 pedaços de rede, mas não tem peixe. Depois que a barragem que correu [do rompimento], fazia até dó de ver peixe morto, morria de descer urubu. Agora o rio sobe vem a enchente, lava. Plantação? Você plantava de cinco, seis quilos de semente de quiabo e comia o ano todo, hoje em dia você planta e logo morre tudo. Não tive indenização, fiz cadastro, mas tão pra lá na Renova e não deu solução de nada. Eu perdi e tô perdendo. Não posso pescar porque tá proibido, inclusive, eu tinha uma saúde tremenda e agora de vez em quando tem que tá no médico”, desabafa. 

Leia mais depoimentos de pessoas atingidas do Médio Rio Doce AQUI.

Registro familiar 

Para compreender os efeitos e as percepções do rompimento da barragem de Fundão na vida das pessoas atingidas assessoradas pela AEDAS, bem como o contexto social onde estão inseridas após quase 8 anos do maior crime socioambiental brasileiro, a assessoria técnica independente (ATI) realizou uma coleta de dados intitulado Registro Familiar. O levantamento alcançou mais de 3900 pessoas atingidas e considerou 600 núcleos familiares para a construção do plano amostral coletado entre os meses de junho e setembro deste ano nos 15 municípios atendidos pela ATI ao longo da bacia do Rio Doce.

Aplicação Registro Familiar. Foto: Thais Martins
Aplicação Registro Familiar. Foto: Thais Martins

Os dados obtidos pelo Registro Familiar apontam que a lama tóxica de minério – que correu todo o Rio Doce e desaguou no mar – provocou danos em larga escala e afetou de maneira significativa a vida do povo atingido. Os principais danos enfrentados são problemas relacionados à renda, alimentação, acesso à água e à indenização.

Para Franciene Vasconcelos, coordenadora institucional da Aedas do Programa Médio Rio Doce, as informações levantadas pelo Registro Familiar, denunciam como os danos trazidos pelo rompimento da barragem de Fundão têm ligação direta com a perda de renda e insegurança alimentar encontrada em territórios atendidos pela assessoria.

A pesquisa identificou complicações em diferentes aspectos sobre insegurança alimentar e vulnerabilidade, a saber: falta de recursos financeiros para compra de alimentos, dificuldade de acesso à produção agrícola, piora na qualidade dos alimentos e, como principal sintoma, a fome. Esse aspecto está relacionado à impossibilidade de uso do Rio Doce para pesca e outras atividades econômicas. Mais de 87% das pessoas ouvidas deixaram de utilizar o rio como fonte de alimentação.

“Nos territórios que atendemos, 88% das pessoas declararam que perderam renda depois do rompimento da barragem, isso significa dizer que a cada 10 pessoas, 9 empobreceram quando a barragem se rompeu. Destas pessoas que nós atendemos, 93% delas realizavam alguma atividade de subsistência para viver, as pessoas pescavam, plantavam, utilizavam seus quintais ali para prover sua segurança alimentar. Só que hoje, depois do rompimento da barragem estas mesmas pessoas que eram produtoras, 81,5% está enfrentando algum tipo de insegurança alimentar. Então a gente traz a denúncia de que o rompimento da barragem causou fome na bacia do Rio Doce”, afirma Franciene.

Franciene Vasconcelos, coordenadora institucional da Aedas no Programa Médio Rio Doce. Foto: Cleiton Santos

As pessoas atingidas também tiveram seus patrimônios materiais e imateriais afetados. Terrenos, imóveis e outros bens sofreram danos, tiveram seus valores de mercado reduzidos ou perdidos após o rompimento da barragem de Fundão. Os dados apontam que 56,31% das pessoas tiverem algum patrimônio desvalorizado.

Para a advogada Verônica Sousa, coordenadora de Diretrizes de Reparação Integral da Aedas, os dados do Registro Familiar podem ajudar os membros da mesa de repactuação a entenderem algo que as pessoas atingidas sempre repetem: a reparação ainda não ocorreu. “O papel da assessoria técnica é sistematizar os dados coletados no Registro Familiar para que possam ser apresentados nas diversas instâncias de tomada de decisão que buscam a reparação”, afirma Sousa.

Dano à renda

O abalo à renda das pessoas atingidas é sentido até os dias de hoje. Dentre os maiores gastos no orçamento familiar, 84,89% apontam que despesas com alimentação aumentaram.

As dificuldades com a renda e o acesso à água também foram danos sofridos por Maria Antônia de Oliveira Ferreira, atingida de Resplendor, no Leste de Minas. “Ficamos [família] desabastecidos. Principalmente eu, que na época eu morava na parte mais alta, fui bem prejudicada. Eu fiquei mais tempo sem água do que o pessoal que morava mais na baixa. Por um tempo eu comprei água, não tive ajuda nenhuma. A [renda] ficou muito prejudicada e inclusive na época, eu tinha um bebê de 1 ano”, relata.

A pesquisa também identificou que cerca de 72,70% das pessoas atingidas não estão satisfeitas com os programas de ressarcimento e indenizações capitaneados pela Fundação Renova. Dentre os principais pontos estão: não recebimento de nenhuma indenização individual e o não recebimento ou falta de justificativa sobre o recebimento do Auxílio Financeiro Emergencial.

Para Franciene, a postura das mineradoras é de não reconhecer sua responsabilidade sobre o rompimento e a necessidade de reparar danos decorrentes de um crime ambiental. “Na prática, muito embora o TTAC preveja que a Fundação Renova precisa executar os 42 programas de reparação, ela nunca fez isso, seja através da inércia em dar respostas simples ou divulgar dados, ou seja pelos inúmeros recursos judiciais das empresas contra as deliberações do sistema CIF (Comitê Interfederativo), que obrigam a Fundação Renova a cumprir sua finalidade estatutária”, afirma a coordenadora.

O levantamento de informações auxiliou ainda na construção de propostas para reparação dos danos sofridos. Construída com a participação das pessoas atingidas assessoradas pela Aedas, as propostas podem contribuir no processo de repactuação e na implementação de programas, projetos e ações ao longo da Bacia do Rio Doce.

PNAB 

Todos estes impasses e incertezas podem estar com os dias contados. É que para demarcar os direitos das Populações Atingidas por Barragens, está em tramitação no Senado o Projeto de Lei (PL 2.788/2019) que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB). O Projeto será votado nesta terça-feira, 07 de novembro. 

Thiago Alves, do MAB-MG, durante Jornada de Lutas em BH. Foto: Mariana Duarte 

Já aprovada na Câmara dos Deputados, o PL prevê o Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PDPAB); estabelece regras de responsabilidade social do empreendedor e revoga dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). 

Para o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), a aprovação desta legislação é importante porque criaria um Fundo específico para pagar a reparação dos danos em cada contexto, além de criar um órgão para cuidar das pautas das pessoas atingidas.  
 
“Tem três coisas fundamentais que nós temos expectativa com essa lei que é: a gente afirmar uma legislação federal que diga o conceito de atingido e organize os critérios para você afirmar isso em cada contexto; um Fundo, com recursos públicos necessários, públicos ou privados, fundos específicos para pagar a reparação dos danos em cada contexto. Essa organização do dinheiro é muito importante; e um órgão, órgãos públicos que cuidem da pauta do atingido, seja um órgão federal, sejam órgãos estaduais. Esses são os 3 pilares do que nós temos de expectativa que a PNAB possa fortalecer a nível nacional a luta dos atingidos”, pontua Thiago Alves, do Movimento dos Atingidos por Barragens de Minas Gerais (MAB-MG).

Marcha das pessoas atingidas em Brasília 

Com o tema “É tempo de avançar”, mais de 2.500 pessoas atingidas por barragens marcharam em Brasília por reparação justa e integral após ato inter-religioso ocorrido no ginásio Nilson Nelson. O ato faz parte da programação da Jornada de Lutas do Povo Atingido e denuncia a morosidade no processo de reparação dos danos. 

A marcha contou com a presença de lideranças religiosas e de atingidos de mais de 20 estados brasileiros. “Estamos aqui para dar o nosso grito de revolta. Estamos aqui para buscar os nossos direitos. Eles falam que foi um acidente, mas a gente sabe que não foi! A gente sabe que foi crime e continua cada vez mais, né? Porque quando a gente não é reconhecido [como pessoa atingida] as pessoas começam a sofrer. Nós estamos tendo um índice muito grande de depressão igual nós nunca tivemos. Mas, apesar de tudo, ainda há Esperança! Muita, muita Esperança! Eu acho que enquanto a gente puder a gente vai lutar. Esperança nós temos muita”, desabafa Vivian Esteves, atingida do município de Pedra Corrida. 

Maria José, indígena da etnia Pury de Resplendor, ressaltou a importância da presença de comunidades e povos tradicionais na jornada e a busca por reconhecimento como atingidos dentro do processo reparatório. “Para nós é muito importante a gente estar aqui em Brasília. Hoje, reivindicando os nossos direitos, devido os 8 anos que foram passados e até hoje ninguém fez nada. A respeito dos nossos direitos, né? E o povo está aí na luta, pelejando para que seja totalmente reconhecido como os demais povos, né? E a gente está aí lutando sempre”, disse. 

Franciene Vasconcelos, coordenadora institucional da Aedas, também fez coro à fala de Vivian quando o assunto é esperança. “Os atingidos da Bacia do Rio Doce têm tido uma janela de oportunidade que não foi dada para os atingidos da Bacia do Paraopeba – que foi poder influenciar no acordo da repactuação. A repactuação do Rio Doce está prevista nos acordos anteriores. A mesa [de negociação sobre a reparação] está aberta e existem instituições de justiça como, por exemplo, a AGU [Advocacia Geral da União], que está disposta a receber os dados vindos das assessorias técnicas independentes”, aponta a coordenadora.

(Texto: Mariana Duarte e Thiago Matos / Equipe de comunicação do Programa Médio Rio Doce)

Confira imagens da Jornada de Lutas das pessoas atingidas (05 de novembro de 2023. 8 anos do rompimento da barragem de Fundão)