2 anos de desastre l Quilombos de Brumadinho levantam propostas de reparação imediata
Quatro quilombos de Brumadinho tiveram suas vidas modificadas após o desastre sociotecnológico que a poluidora Vale ocasionou na Bacia do Paraopeba. As quilombolas e os quilombolas de Sapé, Ribeirão, Rodrigues e Marinhos, escolheram a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) como sua assessoria técnica independente e estiveram desde junho de 2019 em constantes diálogos, a fim de levantar quais danos continuam sofrendo no território em consequência do rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão, em 25 de janeiro de 2019.
Após intensos espaços de diálogo, e a construção do Protocolo de Consulta direcionado aos trabalhos da Aedas, a assessoria pôde dar início aos seus espaços participativos específicos às comunidades quilombolas, com os Grupos de Atingidos e Atingidas (GAA) e as Rodas de Diálogo.
O resultado foi a construção de medidas que devem ser solucionadas com urgência, reunidas no documento “Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais” e lançado pela Aedas em janeiro. O documento tem origem a partir de uma ação conjunta, em que as pessoas atingidas relatam seus problemas e a assessoria sistematiza tecnicamente as demandas levantadas, possível através de uma metodologia que se chama Diagnóstico Rápido e Participativo, onde foi possível organizar mais de 200 medidas emergenciais.
Já foi identificado que o desastre sociotecnológico isolou parcialmente as comunidades quilombolas do território como um todo, limitando a mobilidade, o acesso a centros de saúde e de espaços onde possam desenvolver seus modos de produzir cultura. Após o rompimento da barragem, a Ponte na estrada Alberto Flores que liga as comunidades ao centro de Brumadinho foi interditada. A moradora do Quilombo Ribeirão, Fabiana Paula, relatou expressamente em um Grupo de Atingidos e Atingidas, de que forma aconteceu esse isolamento:
“O problema maior, tanto psicológico quanto mental, foi o trajeto. Porque a lama cortou o nosso acesso de ônibus, a nossa principal estrada de acesso a Brumadinho, até hoje. Ficamos meses sem acesso a Brumadinho. Quem trabalhava, ou tinha consulta médica, não podíamos fazer nada, foram quase três meses após o rompimento, nós nesse isolamento. Quando liberaram, o acesso era lá por dentro da Vale. Só quem passou por lá sabe. Você ia por dentro do acontecido, passava por outra barragem, a barragem nova e a que foi destruída. Pra quem não sabia, como eu, o que era uma barragem, foi terrível. Aquela cena, passando por dentro da Vale. Essa bagunça que aconteceu mudou a vida de todo mundo. Aqui, por ter pessoas mais idosas, ficou na cabeça de todo mundo, o transtorno foi demais. Até hoje não tem como você passar sem ver aquela cena de lama, todo mundo ficou com o psicológico abalado. A gente fala o que lembra, porque o estrago foi grande. Pagar uma indenização é o mínimo que podemos tirar da Vale”, relata a quilombola atingida.
As medidas emergenciais apresentadas no documento da Matriz apontam formas de mitigar os danos sofridos por diversos grupos vulnerabilizados socialmente. Além de todas as desigualdades estruturais que os povos quilombolas já passam no Brasil, acrescenta-se agora, novos danos às suas vidas. Desde a finalização do Protocolo de Consulta, que vem anexado ao documento da Matriz Emergencial (disponível abaixo), as comunidades já relatavam que era necessário a construção de vias de acesso terrestre dignas entre as quatro comunidades, bem como a construção de mais de uma via que os conecte às demais comunidades e centro de Brumadinho, de modo a garantir que não mais sejam submetidos ao isolamento e nem precisem reviver a situação traumática de lembrar do desastre a cada vez que precisam se locomover.
As comunidades quilombolas também reivindicam o aumento da frota nos transportes públicos em preço acessível para toda a comunidade, inclusive aos fins de semana e feriados. Como exemplo, sugerem a retomada da linha de ônibus de Aranhas que atendia as comunidades da região, facilitando o deslocamento a Belo Horizonte e o centro de Brumadinho. Atualmente, com as obras de infraestrutura realizadas na rede viária, o trajeto que liga as comunidades ao centro da cidade foi alterado e devido a essa mudança o percurso aumentou consideravelmente, durando em média de duas a três horas. Esta situação impactou diferentes aspectos da vida das pessoas, e também o circuito artístico, cultural e turístico das comunidades, quebrando a normalidade da vida coletiva, impedindo ou diminuindo o fluxo entre pessoas, mercadorias, renda, saberes, dentre outros.
A Constituição Federal e diversas outras leis já amparam, protegem e garantem aos povos e comunidades tradicionais um amplo arcabouço jurídico que deve ser visto em conjunto, e aplicado na prática em situações dessa dimensão. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, bem como leis estaduais de Minas Gerais, versam sobre direitos à preservação dos costumes desses povos.
Uma das violações que tem acometido os povos quilombolas de Brumadinho é justamente a impossibilidade de exercer seus direitos culturais, violando também o acesso e direito ao território. O espaço dos quatro quilombos da cidade eram locais de efervescência cultural, com rotas de turismo próprias, protagonizadas pelas comunidades. O desastre afetou esse acesso, devido ao estigma que o local passou a carregar, afetando assim, a renda dessas comunidades, que comercializavam seus produtos em atividades culturais e turísticas.
É por essas razões que as comunidades quilombolas organizadas nos espaços participativos da assessoria, levantaram propostas urgentes que devem ser reparadas a curto prazo. Uma delas é a reparação e melhoria de iniciativas, políticas e programas para viabilizar e fortalecer as práticas culturais dos povos e comunidades tradicionais quilombolas. Essa medida é urgente porque sua efetivação contribuirá para dinamizar a geração e circulação da renda da população, especialmente dos artistas e artesãos.
Esta medida agrupa ações voltadas para a retomada e a continuidade das práticas culturais dos povos e comunidades tradicionais quilombolas, partindo-se do reconhecimento destes enquanto atingidos pelo desastre. Nesse sentido, são medidas relacionadas ao reconhecimento da cosmologia desses povos, à valorização dos conhecimentos e preservação dos saberes tradicionais e dos modos de vida transmitidos de geração em geração, através de suas práticas culturais.
A religiosidade, a música, a dança e o trabalho em mutirão são práticas basilares de sua existência. Guarda de Moçambique, Congados e Folia de Reis, são práticas comuns nos quilombos, fazendo parte da herança cultural que carregam. Dessa forma, a garantia da mobilidade e acesso a espaços onde possam desenvolver seus modos de produzir cultura, tais como circuitos culturais e educativos são primordiais. O acesso a políticas educacionais voltadas ao contexto quilombola como incentivo à permanência da juventude no território é uma demanda latente das comunidades.
A já mencionada Convenção 169 da OIT, assinada pelo Brasil em 2002, afirma que é responsabilidade dos governos desenvolverem ações coordenadas e sistemáticas com vistas a proteger os direitos dos povos interessados, sempre com a participação destes. A lei ressalta também que os recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos, bem como é direito desses povos participar da utilização, administração e conservação desses recursos.
São justamente as relações específicas que esses grupos estabelecem com as terras
tradicionalmente ocupadas e seus bens naturais, que fazem com que esses lugares sejam
mais do que terras, ou simples bens econômicos, e sim territórios tradicionais.
No âmbito do estado, a Lei Estadual de Minas Gerais, quando dispõe sobre a política estadual para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, estabelece como um de seus objetivos gerais, garantir que empresas responsáveis por projetos, obras e empreendimentos compensem ou indenizem os povos e comunidades tradicionais pelos prejuízos causados nos territórios ocupados e reparem os danos físicos, culturais, ambientais ou socioeconômicos.
Respaldadas nessas legislações, as comunidades reivindicam ainda a criação de um espaço de diálogo e participação social das comunidades quilombolas atingidas e a inserção de uma equipe multiprofissional nas escolas localizadas em comunidades quilombolas, ou que tenham estudantes quilombolas, revertendo principalmente, os danos à saúde mental causados pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão.
Confira a íntegra da Matriz da R1: (Brumadinho)
