09 Anos do Rompimento de Fundão: Povo em luta. Rio de Esperança

O rompimento da barragem de Fundão, ocorrido há nove anos, é uma ferida que o Brasil ainda não conseguiu cicatrizar. Em 2015, o desastre chocou o país e o mundo, tornando-se o maior desastre-crime socioambiental da história brasileira. De responsabilidade das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, o rompimento lançou mais de 40 metros cúbicos de lama tóxica com rejeitos da mineração, atingindo 49 municípios ao longo da Bacia do Rio Doce, tirando a vidas de 19 pessoas e destruindo ecossistemas inteiros, poluindo o rio Doce e o litoral norte capixaba.
Quase uma década depois, a realidade para muitos atingidos é de luta contínua por reconhecimento e reparação. Danos como abalo à renda, acesso limitado à água potável e segura, negligência na reparação das mulheres atingidas e outras categorias; e a falta de pagamento justo de indenizações considerando a complexidade do desastre-crime ainda persistem.
Para compreender os efeitos e as percepções do rompimento da barragem de Fundão na vida das pessoas atingidas, bem como o contexto social onde estão inseridas, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), a assessoria técnica independente (ATI) das pessoas atingidas nas regiões do Vale do Aço e Leste de Minas Gerais, deu início ao levantamento de informações intitulado Registro Familiar. O levantamento já alcançou mais de 5000 pessoas atingidas e considerou 600 núcleos familiares para a construção do plano amostral coletado entre os meses de junho de 2023 e outubro deste ano nos 15 municípios assessorados pela ATI ao longo da bacia do Rio Doce. O levantamento nos permite, por exemplo, apresentar que 92,04% dos atingidos dos territórios assessorados pela Aedas não receberam o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), gerando abalo à renda das famílias atingidas.
Abalo à renda
O rompimento da barragem de Fundão trouxe um dano significativo à renda das famílias atingidas, que ainda enfrentam dificuldades na recuperação econômica e financeira de seus núcleos familiares. De acordo com o levantamento do Registro Familiar, conduzido pela Aedas, 92,04% das pessoas atingidas nos territórios assessorados pela Aedas não receberam o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), o que gerou um dano profundo na economia doméstica dessas famílias. Além disso, 69,89% dos atingidos não obtiveram qualquer indenização individual, agravando ainda mais a precariedade financeira. Com o aumento nas despesas, especialmente com alimentação, que atingiu 84,89% dos núcleos familiares, muitos ainda continuam lutando para garantir suas necessidades básicas.
A insatisfação com os programas de ressarcimento e indenizações é alta, refletindo um sentimento generalizado de desamparo entre os atingidos. Aproximadamente 93,46% consideram os valores recebidos pelo PIM e/ou Novel inadequados, destacando a percepção de que a indenização não corresponde à gravidade dos danos sofridos. Além disso, 72,70% das pessoas expressaram descontentamento com os programas de indenização, apontando falhas como a ausência de justificativas claras sobre o não recebimento do AFE, que é uma medida mitigatória, ou de qualquer indenização individual. Esse cenário evidencia a necessidade urgente de medidas justas para mitigar os danos financeiros contínuos nas vidas das famílias atingidas.
Indenizações
As indenizações previstas no novo acordo de Mariana têm gerado insatisfação entre as pessoas atingidas, que consideram os valores insuficientes para reparar os danos sofridos desde o rompimento da barragem de Fundão. O acordo estabelece indenizações que variam entre R$ 35.000 e R$ 95.000, valores que muitos atingidos avaliam como inadequados para cobrir as perdas acumuladas ao longo de quase uma década. Além das dívidas acumuladas desde 2015, as famílias continuam enfrentando desafios financeiros e sociais significativos, como a perda de meios de subsistência e a reconstrução de suas vidas e comunidades.
Outro ponto de crítica está na forma como os valores foram definidos, sem a participação efetiva das pessoas atingidas no processo de decisão. A falta de diálogo e transparência na construção das indenizações reforça o sentimento de exclusão e desamparo. Muitos atingidos esperavam indenizações mais justas e condizentes com a gravidade dos danos sofridos, tanto materiais quanto emocionais, e continuam a lutar por uma reparação justa e integral.
Para Valeriana Gomes, atingida do município de Naque, as indenizações que aparecerem no novo acordo são profundamente insatisfatórias:
“O valor das indenizações não foi construído pelos atingidos. Infelizmente, a gente não participou da construção desses valores. É muito triste! Esses valores que estão colocando na repactuação não são suficientes para os atingidos pagarem nem as dívidas que nós tínhamos em 2015. Você já imaginou? Nove anos se passaram e os atingidos têm que conviver com o crime todos os dias sem receber uma indenização. Na repactuação, os valores de R$ 30.000 e R$ 95.000 não são adequados. O que a gente consegue fazer com esse dinheiro? Como um pai de família, um trabalhador, produtores rurais, agricultores, pescadores, ilheiros vão sobreviver somente com isso? E as dívidas que todos os atingidos ficaram desde 2015? Como vai ser feito? É muito triste! Nós, atingidos, esperávamos muito mais.”
Mulheres
Ao longo dos últimos nove anos, as mulheres atingidas nos diversos territórios da bacia do rio Doce sofreram discriminação de gênero. Uma ação civil pública evidenciou algo que os dados do Registro Familiar da Aedas também revelaram: 75,03% das mulheres não receberam nenhuma indenização individual, demonstrando a desigualdade no acesso às reparações.
Além disso, cerca de 85,88% dos entrevistados indicaram um aumento significativo nas tarefas domésticas realizadas pelas mulheres após o desastre, evidenciando a sobrecarga de trabalho não remunerado. O desastre-crime também se refletiu na vida social das mulheres. Aproximadamente 79,35% dos atingidos relataram que as atividades de lazer das mulheres foram reduzidas, reforçando o isolamento e a sobrecarga emocional.
Para reparar os danos causados às mulheres atingidas e atendendo a uma reivindicação importante, com o apoio da Defensoria Pública e do Ministério Público e o trabalho das Assessorias Técnicas Independentes, o novo acordo de Mariana destinou o valor de R$ 1 bilhão de reais para a criação de um Programa para Mulheres, voltado para as mulheres que sofreram discriminação de gênero ao longo do processo de reparação. As mulheres também terão prioridade na alocação de vários recursos que serão construídos pelos territórios atingidos.
Falta de informação e participação prejudicam atingidos
A falta de transparência e de informações foi um dos maiores obstáculos enfrentados pelas pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. Estima-se que 79,37% dos atingidos nos territórios assessorados pela Aedas não foram informados de que o aceite da proposta do NOVEL implicaria na quitação geral dos danos. Esse desconhecimento deixou muitas famílias desamparadas, sem compreender plenamente as consequências de suas decisões.
A situação é ainda mais preocupante em relação ao Programa de Indenização Mediada (PIM), onde 86,26% dos atingidos afirmaram não ter sido informados de que a aceitação da proposta significaria a quitação total dos danos sofridos. A ausência de esclarecimento sobre os danos das decisões tomadas nos processos de reparação compromete a confiança das comunidades atingidas, que se sentem excluídas e desinformadas.
Além disso, cerca de 91,33% dos atingidos relataram não terem sido avisados de que a aceitação das propostas indenizatórias resultaria na interrupção do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE).
O coordenador institucional da Aedas, economista Henrique Lacerda, explica que muitas dessas medidas ocorreram antes de dezembro de 2022, momento em que houve a conquista do povo atingido pelo direito de instalação das Assessorias Técnicas Independentes. “Esse cenário evidencia uma grave falha no direito à informação das pessoas atingidas, agravando o sentimento de desamparo entre as famílias atingidas, que continuam a lutar por seus direitos em meio a um processo de reparação marcado pela falta de informação e participação efetiva”, afirma.
Danos à saúde
Um acontecimento como o rompimento da barragem de Fundão não poderia deixar de afetar diretamente a saúde mental da população atingida, com maior incidência nos grupos prioritários. Para a Fundação Getúlio Vargas (FGV), uma das experts contratadas pelo Ministério Público Federal, o rompimento da barragem de Fundão provocou um intenso e alastrado sofrimento social, que se refletiu bastante na ocorrência de doenças clínicas. Os danos ligados à insegurança hídrica, alimentar e econômica, causados pelo rompimento, gerou e continua gerando uma série de preocupações, tristezas, inseguranças, medos, ansiedades, incertezas e perda de interesse, agravando diagnósticos pré-existentes e os quadros de violência, conflitos e uso de álcool e outras drogas nos territórios. Sem falar nos danos possivelmente provocados pelo contato com a água contaminada, ainda não investigados e estudados de maneira adequada.
Dados como esses também são verificados pela Aedas em seu trabalho de assessoria técnica no Programa Médio Rio Doce. De acordo com a amostra do Registro Familiar, aplicado pela instituição, 74,68% dos respondentes consideram que, devido ao rompimento da barragem de Fundão, a perda do trabalho/renda foi um dos fatores que mais influenciou na condição de saúde da comunidade, seguido por saúde mental (71,70%), saúde física (69,04%), lazer e esporte (65,69%) e aumento do uso de álcool e outras drogas (60,15%), danos que também são citados com regularidade nos espaços participativos (como grupos, rodas de diálogo e seminários) promovidos pela Aedas.
A ampliação dos casos de sofrimento mental, provocados ou piorados pelo rompimento, sobrecarregam o Sistema Único de Saúde (SUS) e aumentam os gastos da população. Porém, é preciso estarmos atentos que, para reparar esses danos, não basta investir na melhoria da assistência em saúde. Sim, isso é muito importante e precisa ser defendido por todos e todas. Mas é igualmente necessário que sejam realizadas medidas programadas que tragam avanços concretos para a vida da população atingida em relação ao trabalho, à renda e à alimentação, com especial atenção ao lazer, ao esporte e ao fortalecimento dos vínculos comunitários. Pois, como dissemos no início, a saúde mental não diz respeito só ao que acontece dentro dos indivíduos, mas também ao que é semeado, nutrido e desenvolvido coletivamente. Isto é, precisamos reforçar, cada vez mais, a importância da Promoção à Saúde Mental nos territórios atingidos.
Novo Acordo de Repactuação
Às vésperas de completar nove anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), um novo acordo para reparar os danos causados pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton foi firmado, em Brasília, entre as mineradoras responsáveis pelo desastre-crime de Mariana e o poder público. O valor total do acordo celebrado é de R$ 132 bilhões. O rompimento, ocorrido em 5 de novembro de 2015, é considerado o maior desastre-crime socioambiental da história do Brasil, com danos devastadores que ainda persistem ao longo da Bacia do Rio Doce e litoral capixaba.
O acordo prevê o pagamento de R$ 132 bilhões, dos quais R$ 100 bilhões representam novos recursos que devem ser pagos em até 20 anos pelas empresas envolvidas na tragédia ao poder público para serem aplicados em diversas destinações. As mineradoras também destinarão outros R$ 32 bilhões para custeio de indenizações a pessoas atingidas e de ações reparatórias que permanecerão sob sua responsabilidade, além dos R$ 38 bilhões que eles alegam já terem desembolsado.
Texto: Equipe de Comunicação Programa Médio Rio Doce da Aedas